Opinião

Esclarecimento sobre o ISSQN na construção civil

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12 de novembro de 2020, 13h33

O ano de 2020 já tem sido penoso para os contribuintes, que viram disputas tributárias importantes serem perdidas no Supremo Tribunal Federal (STF) com base em argumentos pouco jurídicos, mas muito econômicos. Pensa-se muito nos cofres públicos, mas esquece-se de quem os abastece.

Ocorre que nem tudo o que parece é. Então é preciso tomar cuidado para não colocar nas costas dos contribuintes uma derrota generalizada que não existiu.

Em julho deste ano, o STF concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 603.497, com repercussão geral reconhecida, em que restou definida a seguinte tese (Tema 247): "O artigo 9º, §2º, do DL nº 406/1968 foi recepcionado pela ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988". Trata-se, portanto, de precedente de observância obrigatória para as demais instâncias do Poder Judiciário (artigo 927, inciso III, CPC/15 [1]) e demais tribunais administrativos (artigo 15, CPC/15 [2]).

O referido dispositivo, tido como recepcionado pela Constituição de 1988, prevê que na execução dos serviços de construção civil está assegurado o direito à dedução do valor dos materiais utilizados na prestação dos serviços bem como o valor das subempreitadas.

Curiosamente, contudo, surgiram publicações especializadas noticiando que o STF teria limitado a dedução da base de cálculo do ISSQN apenas aos materiais de construção produzidos pelo prestador do serviço fora do local da prestação de serviço e que sofreram incidência de ICMS.

Não foi o que decidiu o STF. Primeiramente, é preciso esclarecer que trata-se de um julgamento de recurso interposto em face de um acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferido há mais de uma década. A par disso, o voto condutor do acórdão em análise, por mais de uma vez, esclarece que é "firme a jurisprudência desta Suprema Corte quanto à recepção do Decreto-Lei nº 406/1968 pela Constituição de 1988. No que tange ao alcance específico do seu artigo 9º, §2º, alíneas 'a' e 'b', porém, não há entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, haja vista se tratar de questão infraconstitucional". Se não é da sua competência analisar o alcance da dedução permitida (materiais e subempreitadas), como o STF poderia ter trazido qualquer limitação?

Em momento algum o STF decidiu sobre a extensão do alcance da dedução permitida pelo artigo 9°, §2°, do DL nº 406/68, mas limitou-se a reconhecer a competência do STJ para tanto por se tratar de matéria infraconstitucional.

Basta ver que o STF, no RE nº 603.497, reconhece a existência de duas linhas interpretativas: "A primeira, restritiva, no sentido de que o abatimento a que se refere o artigo 9º, §2º, 'a', somente se aplica às mercadorias mencionadas entre parênteses no item da lista anexa, ou seja, às mercadorias produzidas pelo prestador fora do local da prestação de serviços, que se sujeitavam ao antigo ICM; a segunda, favorável aos contribuintes, no sentido de que o abatimento diria respeito às mercadorias produzidas no próprio local da prestação dos serviços, de modo que o ISS não alcançaria o valor relativo a mercadoria alguma, quer fossem produzidas no local da prestação do serviço (pela determinação do artigo 9º, §2º, 'a'), quer fora dele (pela ressalva do item da lista, que sujeitava tais mercadorias ao ICM)".

Mas, ao decidir, não adentra nesse mérito: "A solução dessa divergência está a cargo do Superior Tribunal de Justiça, no desempenho da sua função constitucional de preservar a autoridade e uniformizar a interpretação das leis federais (artigo 105, III, 'a' e 'c', da CF)". Ainda para a corte, "a este Supremo Tribunal Federal não incumbe revisar a exegese perfilhada pelo Superior Tribunal de Justiça, mas apenas verificar se, ao acolhê-la, aquela corte não incorreu em ofensa à Carta da República, violando o arquétipo constitucional do imposto sobre serviços". E, com efeito, não se reconheceu a inconstitucionalidade da interpretação restritiva adotada pelo acórdão do STJ (há mais de uma década!) objeto do recurso extraordinário.

Porém, e aqui reside a importância do esclarecimento que se propõe: cabendo ao STJ a palavra final sobre o tema, a sua jurisprudência atual não mais acompanha o entendimento estampado no acórdão de 2009. O próprio ministro Humberto Martins, relator do acórdão no STJ, levado à apreciação do STF, que havia decidido que "a base de cálculo do ISS é o preço total do serviço, de maneira que, na hipótese de construção civil, não pode haver a subtração do material empregado", passou a decidir que "revejo o entendimento anterior, a fim de realinhar-me à orientação fixada pela Corte Suprema para reconhecer a possibilidade de dedução da base de cálculo do ISS dos materiais empregados na construção civil" (AgRg no AgRg no REsp 1228175/MG, 01/09/11).

Quanto à extensão da dedução, o STJ tem decidido que "a dedução do valor dos materiais, utilizados na construção civil, da base de cálculo do ISSQN, conforme previsão do Decreto-lei 406/68 e da Lei Complementar 116/2003, abrange tanto os materiais fornecidos pelo próprio prestador do serviço, como aqueles adquiridos de terceiros. O que importa, segundo o entendimento pretoriano atual, é que os materiais sejam empregados na construção civil" (AgRg no AREsp 664.012/RJ, DJe 17/03/2016). Para a ministra Assusete Magalhães, o STJ firmou o entendimento de que "os materiais utilizados na construção civil, pelo prestador do serviço — não importa se foram produzidos pelo mesmo ou adquiridos de outrem, importa que tenham sido 'empregados' na obra —, são plenamente dedutíveis da base de cálculo do ISSQN".

Assim, se restou decidido que: a) o artigo 9º, §2º, do DL nº 406/1968 foi recepcionado pela ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988; b) a solução dessa divergência (extensão da dedução) está a cargo do STJ; e c) se o STJ tem o entendimento, hoje, de que "os materiais utilizados na construção civil, pelo prestador do serviço — não importa se foram produzidos pelo mesmo ou adquiridos de outrem, importa que tenham sido 'empregados' na obra —, são plenamente dedutíveis da base de cálculo do ISSQN", é esse o entendimento a ser replicado pelas demais instâncias do Poder Judiciário, o que já vem acontecendo.

Afirmar que o STF tenha definido pela limitação da dedução dos materiais da base de cálculo do ISSQN àqueles produzidos e fornecidos pelo prestador fora do local da obra é criar um fake precedent que nada contribui para a segurança jurídica do sistema tributário brasileiro, tão cara para a retomada dos investimentos no país.

Que fique claro, uma vez mais, que o Tema 274/STF limitou-se a reafirmar a constitucionalidade da dedução dos materiais utilizados na construção civil da base de cálculo do ISSQN (o preço do serviço). Nada além disso. Eventuais outros apontamentos não passaram de obter dicta, para usar a expressão tão em moda naquela corte.

 


[1] "Artigo 927 — Os juízes e os tribunais observarão:
(…) III. os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos".

[2] "Artigo 15 — Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente".

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