Interesse Público

O seguro-garantia no âmbito do Projeto de Lei nº 1.292/1995

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12 de novembro de 2020, 8h02

A centralidade das "compras públicas" é reconhecida mundialmente. A despeito de orientações político-ideológicas de matizes distintas, de concepções não uniformes sobre as finalidades das licitações e, logo, de regras jurídicas que não são idênticas, todos os países realizam contratações públicas.

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O volume expressivo de recursos envolvidos, o risco de corrupção [1] e os impactos positivos ou negativos que decorrem das contratações públicas para o agir estatal são usualmente referenciados como razões que justificam um olhar atento sobre o tema [2] [3].

De fato, os problemas relacionados às contratações públicas podem desencadear diversos outros na materialização das atividades a cargo do Estado. Isso porque todas as políticas públicas dependem das contratações realizadas pelo ente estatal. Para além da esfera de atuação da Administração Pública, também o Judiciário e o Legislativo realizam contratações sem as quais as suas missões estariam comprometidas.

Portanto, como podem ocasionar externalidades negativas que impactam toda a população, a busca de soluções para os problemas em licitações e contratos deve ser prioritária, como forma de potencializar a capacidade de ação estatal e a satisfação das necessidades públicas. 

Nesse sentido, as obras inconclusas são objeto constante de preocupações porque ocasionam prejuízos econômicos e sociais elevados, decorrentes da deterioração do que já foi executado pelo contratado e do desatendimento do interesse da coletividade, que não usufrui dos benefícios que seriam proporcionados.

O Acórdãos nºs 1188/2007-TCU/Plenário e 1079/2019-TCU/Plenário [4] revelam que a grande causa da paralisação está quase sempre relacionada a problemas ocasionados pelo poder público.

Em conjunto, os trabalhos do TCU, ainda que tenham adotado metodologias diferentes e focado exclusivamente em obras custeadas com recursos federais, revelam que a mitigação dos riscos para o problema em questão envolve, principalmente, a garantia de fluxo orçamentário e financeiro contínuo para garantia do adimplemento da execução contratual, hipótese corroborada pela significativa diminuição desse problema nas obras do PAC analisadas no Acórdão TCU nº 1079/2019-Plenário.

A esse respeito, interessante considerar que as contratações de obras públicas em regra decorrem de procedimentos licitatórios, e que esses se desenvolvem a partir de uma fase de planejamento. As licitações relativas a obras devem observar em especial o artigo 7º da Lei nº 8.666/93, cujo §2º reclama orçamento detalhado e previsão orçamentária.

Sobre o orçamento detalhado, a Lei nº 8.666/93 não desce em detalhes, não explicita como ele deve ser feito, o que contraria seu próprio perfil, conhecida que é como uma lei minuciosa. Restam, nesse aspecto, as regras estabelecidas no Decreto nº 7.983/2013, que disciplinam a elaboração de orçamentos de obras e serviços de engenharia apenas quando contratados e executados com recursos dos orçamentos da União.

A isso se adiciona o fato de que a lei em comento não prevê a necessidade de recursos financeiros para que cada etapa da obra tenha início. Logo, mesmo que tenha sido indicada a disponibilidade orçamentária no decorrer da contratação, se não tiverem recursos financeiros disponíveis em caixa quando autorizada a execução do contrato, não existirá garantia de que a Administração vai honrar tempestivamente os pagamentos devidos após a execução contratual. A isso se alia a regra do artigo 78, inciso XV, considerada cláusula exorbitante por impor um sacrifício do contratado de permanecer executando o que lhe cabe mesmo diante de atrasos nos pagamentos públicos por até 90 dias [5].

Ocorre que os diagnósticos já realizados acerca do problema não têm sido considerados nas discussões a respeito do tema, apontando-se o seguro-garantia como possível solução para as obras paralisadas e inacabadas, sem também considerar que a legislação em vigor já o define como a modalidade de garantia que objetiva proporcionar "o fiel cumprimento das obrigações assumidas por empresas em licitações e contratos" (artigo 6º, VI, da Lei nº 8.666, de 21/6/1993).

As garantias oferecidas pelos privados podem apenas contribuir para mitigação de problemas relativos às obras públicas, mas de nada servem quando a questão nada tem a ver com a performance e o compromisso dos contratados. E, como se vê, a partir dos estudos do TCU já citados, a interrupção das obras no Brasil, ao menos na esfera federal, decorre de problemas relacionados ao aparato estatal. Deve ser de pronto observado que, na seara dos contratos ordinários, quais sejam, os regidos pela Lei nº 8.666/1993, não há regra prescrevendo a exigência de garantia privada como cláusula essencial do instrumento contratual. O artigo 55, VI, e o artigo 56 reverberam no mesmo tom, facultando à Administração exigir ou não a prestação de garantias pelos particulares.

Daí se concluir que, segundo o legislador, responsável pela Lei nº 8.666/93, a salvaguarda do interesse público não está condicionada à apresentação de garantia privada, como regra geral. E não se cuida de legislador desatento à previsão de prerrogativas. Ao contrário, a Lei nº 8.666/93 as traz em número considerável, sob a justificativa de que a proteção do interesse público assim reclama. Esse aspecto precisa ser considerado porque reforça a avaliação do então legislador sobre a desnecessidade ou inconveniência de se prescrever a inafastabilidade das garantias.

Ao exigir as garantias, o administrador há de explicar os motivos que assim o conduziram, sobretudo porque não se trata de escolha indolor.  A atratividade do certame e o valor do contrato poderão ser impactados. Garantias privadas podem de tal sorte onerar a proposta, pelo que o melhor caminho é não vulgarizar seu uso.

O seguro-garantia é, na legislação vigente, uma alternativa à disposição dos particulares, que podem, como já destacado, nas hipóteses em que a Administração exige garantias, por ele optar.

O artigo 6º, inciso VI, da Lei nº 8.666/1993, como dito, define o seguro-garantia como "o seguro que garante o fiel cumprimento das obrigações assumidas por empresas em licitações e contratos". O legislador não disse nada além do óbvio, porque todas as modalidades de garantia preordenam-se exatamente a garantir que o contrato reste cumprido.

Nos debates já realizados pelo Congresso Nacional na tramitação do PL nº 1.292/1995 e dos seus apensados, essa modalidade de garantia foi apontada como possível alternativa, após alguns ajustes, para resolução dos problemas relacionados às obras não concluídas, inclusive fazendo-se referência à experiência dos Estados Unidos.

No modelo norte-americano, o seguro-garantia é, em essência, um instrumento que alcança sua finalidade, o que significa, na prática, a efetiva mitigação dos riscos de obras paralisadas ou inacabadas, com as seguradoras realmente contribuindo para a solução dos problemas nos casos de inadimplemento dos segurados. Isso porque não se trata apenas de impor às seguradoras o ônus indenizatório, mas há a possibilidade de elas assumirem a obra em andamento. Logo, diante de um risco muito superior, as seguradoras adotam maior cautela e investigam mais as empresas antes da emissão das apólices e, depois de emiti-las, ainda promovem contínuo acompanhamento da atuação dos tomadores, com o objetivo de se precaverem de possíveis inadimplementos, caracterizadores de sinistro. Tudo isso favorece o interesse público.

Convém lembrar que o seguro-garantia não configura uma "garantia à primeira demanda", o que significa que, na hipótese de inadimplemento contratual, a Administração não tem a prerrogativa de determinar que a seguradora promova o imediato pagamento dos valores segurados pela apólice [6] [7].

Já por aí se pode antever que o seguro-garantia pode não ter a funcionalidade vivenciada nos Estados Unidos, e o aumento do percentual também pode não ser a solução para sua maior potencialidade.

O PL nº 1292/1995, que, uma vez aprovado, substituirá várias leis, entre elas a Lei nº 8.666/93, valoriza o planejamento das contratações públicas, aqui interessando o inciso III do artigo 18, que disciplina a fase preparatória [8], no bojo da qual há a obrigatoriedade de a Administração avaliar, em cada caso, além dos custos estimados, os riscos existentes, aí se incluindo todas as variáveis capazes de impactar no resultado da contratação pública.

Nos moldes do PL, a Administração Pública manterá a prerrogativa de decidir motivadamente acerca da necessidade de apresentação de garantia, considerando a busca de equilíbrio entre a mitigação de riscos, o custo e a competitividade da licitação.

Nas obras e serviços de engenharia de grande vulto (acima de R$ 200 milhões [9]), revelam-se as grandes inovações do substitutivo, notadamente com a possibilidade de a Administração exigir seguro-garantia, com cláusula de retomada, em percentual equivalente a até 30% valor inicial do contrato (artigo 98).

Os riscos assumidos pelas seguradoras serão mais significativos e com isso mais incentivos para a realização de análises mais aprofundadas, o que poderá possibilitar a seleção de agentes privados mais aptos para a execução contratual. Quando emitir sua apólice, a seguradora terá mais estímulos para efetivamente acompanhar a execução contratual.

Contudo, até mesmo contrariando os objetivos subjacentes às inovações propostas, o parágrafo único do artigo 101 do texto ora analisado abre brecha para as seguradoras não assumirem a execução do contrato na inadimplemento, facultando a elas, nessa hipótese, o simples pagamento da importância segurada pela apólice.

Provavelmente, interessará às seguradoras apenas indenizar, desonerando-se do encargo que seria assumir a obra. Contudo, se o foco é a conclusão da obra, a indenização não resolve.

Não se identificou nenhuma justificativa para que o PL as tenha liberado do dever de executar. Logo, ainda que a experiência norte-americana tenha sido tão ventilada, há um verdadeiro distanciamento dela.

 


[1] A preocupação com a corrupção justifica o movimento de várias entidades e por todo o globo. Daí o advento das várias leis a prever a responsabilidade das pessoas jurídicas por atos de corrupção. No Brasil, a questão é tratada na Lei 12.846/13 e parte considerável dos atos catalogados como corruptos se relaciona ao ambiente das contratações públicas. Nesse sentido: FORTINI, Cristiana; VIEIRA, Ariane Shermam Morais. Corrupção: causas, perspectivas e a discussão sobre o princípio do bis in idem. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 91-112, maio/ago. 2018; FORTINI, Cristiana; DADALTO, Lucas Dutra. Responsabilização na lei anticorrupção: natureza e amplitude subjetiva.  Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 17, n. 25, p.81-106, maio/ago. 2019. No mesmo sentido o FCPA – Foreign Corrupt Practice Act. Nesse sentido: FORTINI, Cristiana. Uma rápida comparação entre a Lei 12.846/13 e o norte-americano foreign corrupt practices act (FCPA). Direito do Estado, 24 nov. 2015. Ademais, importa dizer que a Diretiva Europeia 2014/24 fala abertamente sobre corrupção nas contratações públicas.

[2] Conforme informa a Comissão Europeia, as contratações realizadas por cerca de 250.000 (duzentos e cinquenta) mil autoridades públicas alcançam aproximadamente 14% (quatorze por cento) do GDP – Gross Domestic Product, algo equivalente ao nosso PIB – Produto Interno Bruto.  Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/direito-e-justica/2019/04/05/interna_direito_e_justica,1043972/a-diretiva-europeia-2014-24-e-as-contratacoes-publicas-no-brasil.shtml.
Ainda nesse contexto, importa dizer que a OCDE estima que seus membros gastam cerca de 12% do seu GPD em contratações. Verificar: https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/gov_glance-2011-sum-pt.pdf?expires=1593472637&id=id&accname=guest&checksum=576F613165B840E59EF360DEEEBD582E. Acesso em 31 out. 2020.

[3] A Organização Mundial de Comércio, por meio do Government Procurement Agreement, ou Acordo de Compras Públicas, pretende remover possíveis barreiras para a livre e igualitária participação das empresas, ambicionando um comércio público sem protecionismos. O art. XXII, nº 4, do ACP impõe o dever de adaptação da legislação interna dos Estados-Partes aos termos dispostos no acordo da OMC, a partir da premissa de que a uniformidade das legislações dos países sobre contratação pública é importante para que as empresas possam competir fora do seu ambiente doméstico. A respeito da adesão brasileira ao GPA, conferir: OLIVEIRA, Rafael Sérgio de Lima de; FORTINI, Cristiana. A adesão brasileira ao acordo de compras governamentais da Organização Mundial de Comércio. Revista Opinião Jurídica, v 18, n 29, p. 120-151, set/dez 2020.

[4] Disponível em: www.tcu.gov.br. Acesso em 10 mar. 2020.

[5] Vê-se, pois, com bons olhos algumas das mudanças que o PL n.° 1292/95 propõe, com realce para a redução do prazo de tolerância com o inadimplemento público (dois meses), a preocupação com a garantia dos recursos financeiros para custear a execução de etapas de obras e a previsão de atualização monetária e incidência de juros a partir de 45 dias de atraso. Não são suficientes, mas já representam um avanço.

[6] PEREIRA, Adilson Neri. Seguro de garantia de obrigações em contratos administrativos: a iniciativa privada e a alternativa pública. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: 2017. p. 73.

[7] No Brasil, o seguro-garantia, além de estar subordinado aos ditames da Circular SUSEP n.° 477/2013, também está sujeito a condições gerais aplicáveis ao “ramo 0775: Segurado Setor Público” (Capítulo I do Anexo I), condições especiais de cada produto padronizado pela SUSEP (Capítulos II e III do Anexo I) e condições particulares estabelecidas pelas seguradoras em suas respectivas apólices.

[8] "Artigo 18 – A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos: […] III – a definição das condições de execução e pagamento, das garantias exigidas e ofertadas e das condições de recebimento".

[9] De acordo com o inciso XXII do art. 6º do texto aprovado pela Câmara dos Deputados, obras e serviços de engenharia de grande vulto são aqueles cujo valor estimado da contratação seja superior a R$ 200 milhões.

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

  • é advogado, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, professor de Direito e doutorando em Direito pela UFMG.

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