Opinião

Estupro de reputação: reflexões sobre o 'caso Mariana Ferrer'

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12 de novembro de 2020, 16h26

Ao desabrochar mais um mês de primavera no hemisfério Sul, novembro irrompeu com o Brasil a testemunhar o plangente espetáculo de uma jovem influencer — suposta vítima de estupro — moralmente linchada pelo advogado do réu que, sob a premissa sub-reptícia de superioridade moral, teceu as mais abjetas considerações sobre a sua índole. Não houvesse áudio na transmissão, o semblante plácido e indulgente de alguns dos demais participantes da sessão sugeriria que assistiam a uma palestra sobre "mecanismos de hedge cambial" ou a um documentário acerca da "vida dos macacos bonobos da República Democrática do Congo". Empatia, enternecimento e compaixão pareciam sentimentos tão distantes daquela aura masculina quanto a constelação Ursa Maior. Mariana, da tela, num canto, chorou seu pranto, e bradou por respeito às faces taciturnas e fleumáticas que contemplaram, impassíveis, a sua imolação pelo boquirroto causídico.

Não foi um episódio isolado de "brasilidade judiciária" ao lidar com crimes sexuais. O acontecimento teve contornos de revival do assassinato post mortem da reputação de Ângela Diniz. Depois de ser brutalmente executada com quatro disparos — três no rosto e um na nuca — efetuados por Doca Street, o julgamento do facínora, nos idos de 1976, foi convertido em escrutínio inclemente de sua honra, que agonizou até fenecer, com requintes de crueldade, para ovação pública. Diferentemente do "caso Mariana", porém, este despertou insólita piedade. Ao vislumbrar aquele cenário lúgubre, o jornalista Carlos Heitor Cony afirmou: "Desde o momento em que vi o seu cadáver tive imensa pena, não dela, boneca quebrada, mas de seu assassino" [1].

Também obteve sua carraspana retórica uma vítima de "pornografia de revanche" (o ex-namorado havia postado nas redes sociais fotos de momentos íntimos dos dois), ao receber a implacável homilia: "Quem tem moral a tem por inteiro. As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais (…). Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida. (…) A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor próprio e autoestima" (TJ-MG, Apelação Cível nº 1.0701. 09.250262-7/001).

Digna de registro também a recusa à reparação de danos extrapatrimonais — em segunda instância — à atriz Maitê Proença, ao fundamento de que "só a mulher feia pode se sentir humilhada, constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou em revistas. As bonitas, não. Fosse a autora uma mulher feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação de sua fotografia desnuda — ou quase — em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria (…) sofrimentos sem conta, a justificar — aí, sim — o seu pedido de indenização de dano moral" (TJ-RJ, Processo nº 0011236-18.1998.8.19.0000 1999.005). Adaptado o vaticínio do pugilista Joe Louis, a ideia subjacente é a de que "she can run, but she can't hide" ("ela pode correr, mas não tem como se esconder"): os cromossomos X selam inexoravelmente um destino de humilhações e suplícios.

Pululam, desse modo, país afora — e, também, noutros confins desse corpo celeste chamado Terra —, os mais esdrúxulos exemplos de recriminações às vítimas de crimes sexuais, pelo fato de o fenômeno ser fruto espúrio do machismo estrutural que corrompe os alicerces de uma sociedade que se pretende justa e igualitária. Como assinalou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, "la violencia sexual contra las mujeres (…) no es un problema aislado: es el resultado de una violencia estructural de género y de patrones socioculturales que discriminan a las mujeres. (…) Los patrones socioculturales, a su vez, reproducen e incentivan la violencia sexual, enviando un mensaje de control y poder sobre las mujeres" [2].

Não se pretende, portanto, circunscrever o debate ao "caso Mariana Ferrer", muito menos à justiça ou não da sentença. Ela não se fundamentou em "estupro culposo" — antes, pelo contrário, citou doutrina sobre o seu não cabimento [3] — e nem o poderia fazer, pois houvesse o excêntrico tipo penal, o réu teria sido com base nele condenado, e a sentença fora absolutória (CPP, 386, VII). Perscruta-se, pois, um horizonte maior: a partir da evidência empírica extraída, ponderar a respeito da situação feminina nos casos de agressões sexuais e suas repercussões na perpetuação da violência de gênero, além de investigar a necessidade de ferramentas legislativas de suporte às vítimas. Na atual quadratura histórica, segundo a OMS, muitas mulheres não denunciam os abusos por medo de serem hostilizadas ou culpadas ("elles ont peur qu'on leur dise que c'est de leur faute" [4]). E o temor nada tem de injustificado. Uma pesquisa de 2016 revelou que um em cada três brasileiros concorda com a lógica obtusa de que "a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada" e 37% das pessoas acham que "mulheres que se dão ao respeito não são estupradas", mas, paradoxalmente, 90% das mulheres (entre as nordestinas) têm medo de sofrer agressão sexual [5], ou seja, o receio, deveras, também é o de não se castrarem "adequadamente" em relação aos próprios trajes e hábitos e darem azo às violações.

A ruptura de paradigma no tratamento das vítimas exige a desconstrução dos muitos mitos que permeiam a "cultura do estupro", porque eles influem na dinâmica de aplicação e interpretação das leis [6]. Por isso, aliás, é que a Convención Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra la Mujer, de 1995, determinou que os Estados adotassem progressivamente medidas de contraposição aos preconceitos, costumes e outras práticas que se baseassem na premissa de inferioridade ou superioridade de algum gênero ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher que legitimassem a violência contra a mulher (artigo 8º. "b"). 

A percepção de que a vestimenta da vítima fomenta violações foi desmistificada por uma exposição na Bélgica que exibiu os trajes de mulheres na ocasião em que foram molestadas e, nelas, não detectou padrão algum, ou seja, "l'habit ne fait pas le viol" [7] ("o hábito não faz o estupro"). Estudos também mostram que as vítimas incluem crianças, anciãs e mulheres que não atendem aos padrões de beleza socialmente estabelecidos, o que torna a alegação falaz [8]. Por mais óbvio que possa parecer, ainda é preciso entoar aos quatro ventos que "o que (ou quem) causa o estupro é o estuprador". Nada além disso. Mesmo porque imputar a culpa à vítima em razão de sua indumentária significa tolher sua liberdade de expressão (CF, 5º, IX), como se ela devesse exibir vestuário menos atrativo, sob pena de ser a causadora das transgressões.

Devassar a vida e a experiência sexual da vítima é algo epistemologicamente injustificável, haja vista o tipo penal relacionar-se apenas ao consentimento e à sua validade (CP, 213 e 217-A, §1º). Assim, pouco importa se aos olhos do observador a vítima é pudica ou despudorada, casta ou promíscua, imaculada ou depravada: não é não! Ademais, o enigmático conceito da vida pregressa a ser esquadrinhado a torna refém de seu passado, como se ela pudesse ser escravizada por qualquer predador sexual em função de uma conduta pretérita que o julgador — baluarte da moralidade virtuosa — considera reprovável.

Por isso, correto o Código Penal do Canadá ao não admitir prova do "comportement sexuel" (artigo 276) e "preuve de réputation" (artigo 277), da mesma forma como o artigo 62.4, do Human Rights Act nº 82 (1993), da Nova Zelândia, acerta ao proibir que se levem em consideração provas relativas à experiência ou à reputação sexual da vítima [9], uma vez que "la apertura de líneas de investigación sobre el comportamiento social o sexual previo de las víctimas en casos de violencia de género no es más que la manifestación de políticas o actitudes basadas en estereotipos de género" (Corte IDH, Caso Veliz Franco y otros vs. Guatemala. Sentencia del 19 de mayo de 2014). Nos Estados Unidos da América, a regra 412 do Federal Rules of Evidence igualmente veda provas de pré-disposição sexual da vítima ou de seu engajamento sexual em algum comportamento anterior, por serem "irrelevantes para la investigación del caso de violación" (Comité de Derechos Humanos, Comunicación Nº 1610/2007). Na audiência de Mariana, conquanto o MP-SC tenha lançado nota e afirmado que "a exploração de aspectos pessoais da vida de vítimas de crimes sexuais não pode, em hipótese alguma, ser utilizada para descredenciar a versão fornecida por ela aos fatos" [10], não houve, nos 45 minutos e 15 segundos que durou o seu depoimento, uma única interpelação a reprimir questionamentos desse jaez. Nesse interstício, inexistiram também admoestações quanto ao dever de o advogado atuar com decoro, lhaneza e emprego de linguagem escorreita e polida (Código de Ética e Disciplina da OAB, 2º, parágrafo único c/c 45).

Outro importante anteparo à privacidade da vítima é o de criminalizar a conduta daquele que divulga as suas imagens sem o seu consentimento, como previsto na legislação italiana (Legge 15 febbraio 1996,66, Norme contro la violenza sessuale, artigo 734-bis). Nem todas nasceram para mártires. Julgam mais "nobre sofrer na alma pedradas do destino feroz" do que "pegar em armas contra o mar de angústias" [11]. Isso faz sentido por si só, mas é ainda mais importante numa sociedade que culpa as vítimas pelo crime e, em consequência, inibe denúncias de atos de violência, de acordo com o informe da CIDH denominado "Acceso a la Justicia para las Mujeres Víctimas de Violencia en las Américas", de 2007. O silêncio indigente das vítimas ecoa das entranhas de um sistema que não lhes assegura abrigo e proteção adequados, permitindo a chamada "revitimização", pela necessidade de repetir depoimentos e reviver o acontecimento tormentoso em inúmeras ocasiões.  

Finalmente, a abordagem das vítimas, desde quando reportado o caso, é crucial tanto para que os crimes cheguem ao conhecimento das autoridades quanto para que as vítimas possam se recuperar. Estudos mostram a vitimização secundária, pela polícia, em 50% dos casos [12]. Para a pessoa em estado de vulnerabilidade extrema, ser interrogada — como se suspeita fosse — por diversas vezes, em busca de contradições internas em suas declarações, ou ter sua vida sindicada para provar que ela é verdadeira culpada, é reviver a experiência traumática. Ilações obtidas a partir de juízos preconcebidos — como em Reedy v. Evanson, 615 F.3d 197 (3rd Cir. 2010), em que a Corte de Apelações do 3º Circuito teve de afirmar o erro da instância inferior ao presumir que a violação sexual era mentira porque a vítima se recusou a fazer terapia — deflagram procedimentos que geram novos rituais de mortificação. A vítima deve ser preservada tanto quanto possível. As Nações Unidas, v.g., quando da criação do Tribunal Penal para a antiga Iugoslávia, que se encarregou de investigar bárbaras violações humanitárias na Guerra dos Balcãs, dispensaram a corroboração do depoimento das vítimas no artigo 96, (i), das Rules of Procedure and Evidence [13], viabilizando acesso à jurisdição efetiva numa conjuntura muito particular.  

Tais prescrições emprestam concretude a valores fundamentais também insertos em nossa proposta constitucional: 1) a dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III); 2) o repúdio ao preconceito e à discriminação (CF, 3º, IV); 3) o direito à igualdade quando a diferença é desapreço e o direito à diferença quando a igualdade é desprezo; e 4) a inviolabilidade da honra e da intimidade (CF, 5º, X). 

Além disso, o acolhimento afetuoso pode representar o bálsamo sobre a ferida aberta por uma ofensa bestial cuja cura é lenta e não sem perenes cicatrizes, porque sonhos desvanecem e dão lugar a uma realidade crepuscular até que a estima por si mesma retorne à vítima. Nos dizeres de Shakespeare, "o tempo move-se muletas até que o amor (principalmente o amor próprio) preencha todos os seus ritos" [14]. Por óbvio, nem todas as denúncias são verdadeiras, mas todas as denunciantes merecem um julgamento digno. Para tanto, é preciso deixar "que a razão lhe sirva para fazer com que a verdade apareça onde pareça estar escondida e esconda o falso que parece verdadeiro" [15].

 


[1] CONY, Carlos Heitor. Fatos e Fotos — Gente, nº 948, ano XVII. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1979.

[2] CIDH. Acceso a la justicia para mujeres víctimas de violencia sexual en Mesoamérica.

[3] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, v. 3. São Paulo: Método, 2017, p. 72-73.

[4] WHO. Le Rapport mondial sur la violence et la santé publié le 3 octobre 2002.

[5] MENA, Fernanda. Um terço dos brasileiros culpa mulheres por estupros sofridos.

[6] "The persistence of myths and biases about rape and sexual assault that are inconsistent with the true dynamics of sex crimes influence how police, prosecutors, judges, and juries enforce and interpret laws" (TRACY, Carol E. et al. Rape and sexual assault in the legal system. Presented to the National Research Council   of the National Academies. June 5, 2012).

[7] MOURGERE, Isabelle. Exposition "Que portais-tu ce jour là ?" Non, l'habit ne fait pas le viol. TV5Monde. 25 janº2018.

[8] CRUZ PÉREZ, María del Pilar. Hostigamiento sexual, un problema de salud laboral e inequidad de género. Revista GénEros, México, nº 36, feb. 2007, p. 104.

[9] 62. Sexual harassment. (4) Where a person complains of sexual harassment, no account shall be taken of any evidence of the person’s sexual experience or reputation.

[10] Disponível em: <https://mpsc.mp.br/>. Acesso em: 8 nov.2020.

[11] SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: LP&M, 2016, p. 67.

[12] PATERSON, Debra. The Linkage Between Secondary Victimization by Law Enforcement and Rape Case Outcomes, Journal of Interpersonal Violence, v. 26, nº 1, Jan 2011, pp. 328-329.

[13] Rule 96 Evidence in Cases of Sexual Assault (Adopted 11 Feb 1994). In cases of sexual assault: (i) no corroboration of the victim's testimony shall be required.

[14] SHAKESPEARE, William. Muito barulho por nada. Porto Alegre: LP&M, 2016, p. 50.

[15] Idem. Medida por Medida. Porto Alegre: LP&M, 2016, p. 115.

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