Opinião

Tribunais de Contas e a responsabilização de pareceristas por crime de hermenêutica

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12 de novembro de 2020, 19h40

Na atual quadra, têm sido comuns decisões de Tribunais de Contas imputando responsabilidade a advogados públicos, algumas sob o argumento de que a não adoção da jurisprudência das cortes de contas acerca da interpretação de dispositivos legais, notadamente na seara das licitações e contratos administrativos, caracteriza "erro grosseiro", fugindo ao padrão esperado do "parecerista médio".

Ora, é sabido que, na seara da hermenêutica jurídica, não há uma única interpretação correta, podendo uma mesma norma comportar diversas interpretações igualmente aceitáveis. Destarte, taxar interpretações jurídicas divergentes como erro grosseiro configura imputação do chamado crime de hermenêutica, expressão cunhada por Rui Barbosa em célebre defesa em processo no qual o juiz Mendonça de Lima era acusado de prevaricação no exercício da função jurisdicional apenas por decidir fundado em interpretação sobre a composição do júri diversa da firmada pelo Tribunal de Justiça ao qual vinculado.

Assim escreveu Rui Barbosa na defesa que remonta aos idos de 1896, mas que se mantém atual em época de tentativas de criminalização das divergências:

"(…) O que é manifesto a um espírito, pode ser duvidoso ao critério de outros, ainda figurando que estes e aqueles ocupem nível superior, emparelhando ao mesmo tempo, no talento e no desinteresse. Não se descobriu, até hoje, a pedra de toque, para discernir com certeza absoluta o oiro falso do verdadeiro na interpretação dos textos.
(…) Um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos; um voto individual contra muitos. A questão, em última análise, se reduz, pois a isto: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas. Alguma das duas pode ser criminosa, quando ambas exprimem o fato mental, involuntário e honesto de uma convicção?" [1].

Embora tenha por objeto a independência dos magistrados, o raciocínio acima desenvolvido é perfeitamente aplicável às funções essenciais à Justiça, como é a advocacia pública.

Nessa linha, a Lei nº 13.869, de 5/9/2019, é firme ao dispor, no §2º de seu artigo 1º, não configurar abuso de autoridade "a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas", significando um repúdio do legislador à responsabilização por crime de hermenêutica.

Ademais, não há norma prevendo efeito vinculante para as interpretações jurídicas oriundas de órgãos de controle, tampouco previsão de subordinação da consultoria jurídica da Administração às interpretações do controle externo, notadamente em se tratando de órgãos com igual estatura constitucional.

Com isso, não se quer afirmar que advogados públicos não possam ser responsabilizados pelas condutas praticadas no exercício de suas funções, mas que divergências de interpretação jurídica de fatos e normas não são causa suficiente para essa responsabilização, sendo imprescindível a demonstração da existência de dolo ou fraude, consoante previsão expressa do artigo 184 [2] do CPC. Em outros termos, como sói acontecer no âmbito do controle externo, a responsabilização do parecerista não é objetiva, não decorrendo da mera emissão de parecer, demandando, no mínimo, a comprovação da existência de dolo ou erro grave inescusável, inexistentes no caso concreto, conforme vêm entendendo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça [3].

É certo que, como qualquer órgão ou ente público, os órgãos de advocacia pública e seus integrantes estão sujeitos à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos atos administrativos praticados no âmbito da instituição. Esse controle, contudo, não pode ingressar no círculo exclusivo do exercício da advocacia pública, para dizer como e em que termos as competências constitucionais do órgão de representação judicial e consultoria jurídica da Administração devem ser exercidas, nem impor o sentido e o alcance a serem atribuídos às normas e fatos jurídicos.

Nesse círculo exclusivo do exercício da advocacia, função essencial à Justiça, os advogados públicos encontram-se sob o pálio da inviolabilidade por suas manifestações no exercício da profissão (artigo 133 [4] da Constituição Federal e artigo 2º [5], §3º, do Estatuto da Advocacia), da ausência de hierarquia ou subordinação e da liberdade de profissão (artigos 6º [6] e 7 º[7] do Estatuto da OAB).

Ao tentar responsabilizar membro da advocacia pública por crime de hermenêutica, os Tribunais de Contas estão, por via transversa, a impor uma inconstitucional subordinação hermenêutica do advogado público, conspurcando a inviolabilidade por suas manifestações no exercício da profissão, o que não se coaduna com a independência técnica inerente à advocacia.

Consoante magistral decisão do ministro Luiz Fux no mandado de segurança nº 35.196/DF, atribuir responsabilidade a pareceristas apenas por adotarem interpretação jurídica diversa da defendida pela equipe de auditoria trará efeitos danosos para a Administração Pública, desestimulando a adoção de teses inovadoras das quais poderiam advir soluções mais adequadas ao interesse público in concreto. Em vez de viabilizarem políticas públicas, os advogados públicos se tornariam meros burocratas atados a procedimentos mais longos, difíceis e custosos, num engessamento que não corresponderia a um retorno em moralidade pública, mas em ineficiência.

 


[1] Obras Completas, Vol. XXIII, Tomo III, p. 227/240). Apud ARAS, Vladimir. Rui Barbosa e o crime de hermenêutica de Mendonça Lima. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/rui-barbosa-e-o-crime-de-hermeneutica-de-mendonca-lima-24042017. Acesso em 01.Nov. 2020.

[2] "Artigo 184 — O membro da advocacia pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções".

[3] MS 35196/DF; RHC Nº 82.377 — MA; RESP 1.454.640/ES.

[4] "Artigo 133 — O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

[5] "Artigo 2º — (…) §3º. No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei".

[6] "Artigo 6º — Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho".

[7] "Artigo 7º — São direitos do advogado: I. exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional".

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