Opinião

O marco temporal da tese do Tema 825/STF e as ações pendentes

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12 de novembro de 2020, 10h34

Estão atualmente sob análise pelo Supremo Tribunal Federal dois temas de relevância ímpar com notáveis "interseções", a começar pelo seu papel expressivo na (re)afirmação das balizas do sistema tributário nacional, a saber: o Tema 1.093, relativo ao diferencial de alíquotas de ICMS em operações interestaduais, e o 825, referente à (in)constitucionalidade do ITCMD em situações com conexão internacional.

De fato, ambos têm como variável-chave a delimitação do alcance da regra contingencial do artigo 24, §3º, da CF/88, especificamente o seu potencial de autorizar o exercício pelos Estados e Distrito Federal da sua competência tributária na falta de lei complementar (nacional) constitucionalmente requerida. 

E, até aqui, o seu encaminhamento tem sido convergente — pelo menos quanto ao próprio busílis: antes da suspensão dos julgamentos por pedidos de vista, os relatores dos respectivos leading cases, ministros Marco Aurélio (Tema 1.093) e Dias Toffoli (Tema 825), posicionaram-se pela inconstitucionalidade das exações estaduais à míngua da lei complementar pertinente. Quanto ao Tema 825, não houve devolução do leading case pelo ministro Alexandre de Moraes.

Em contrapartida, os julgamentos aparentam se distanciar no tocante a uma dimensão extremamente cara, que só poderia ser qualificada como "acessória" sob um ponto de vista estritamente lógico, qual seja, o marco temporal da correspondente tese de repercussão geral. Enquanto não se esboçou qualquer corte na eficácia natural (ex tunc) da Tese 1.093, o voto do ministro Dias Toffoli propôs que a Tese 825 só seja aplicada a fatos geradores futuros. E, nesse particular, a proposta, embora bem intencionada, distancia-se não apenas do encaminhamento dado ao Tema 1.093, mas, na verdade, de toda uma longa cadeia de precedentes. Explica-se.

Em seu alentado e erudito voto, o ministro Dias Toffoli se propôs a fazer — e, sem dúvida, conseguiu — uma ampla e detalhada revisão do histórico jurisprudencial do tribunal a propósito do artigo 24, §3º, da CF/88 em contexto tributário, passando por casos clássicos, como o do extinto adicional estadual de Imposto de Renda, e chegando a outros mais recentes, como o Tema 171 (ICMS-Importação). Mas, com o devido respeito, a mesma abordagem parece ter sido preterida no capítulo ora em foco, no qual se sujeitou a tese a um severo corte temporal com base em apenas duas decisões monocráticas que teriam gerado nos Estados uma expectativa favorável à validação da sua competência tributária.

Mas, como registramos em outra ocasião [1], se o "romance" que o STF vem escrevendo a respeito da modulação temporal tributária pode parecer prima facie um tanto errático, o mesmo não pode ser dito dos seus "capítulos" mais recentes, por ser notável a semelhança cada vez maior dos critérios aplicados em tais assentadas, padrão pode estar em vias de ser rompido no julgamento do Tema 825.

E nem se está fazendo alusão a posições mais categóricas, como as relativas aos Temas 1 (base de cálculo de PIS/Cofins-importação) e 166 (INSS sobre pagamentos a cooperativas de trabalho), em cujos leading cases, também relatados pelo ministro Dias Toffoli, foram indeferidos os pleitos de modulação temporal sob o argumento de que "a segurança jurídica está na proclamação do resultado dos julgamentos tal como formalizada, dando-se primazia à Constituição Federal". Tampouco se está comparando a base de confiança dos Estados e do Distrito Federal, tida como suficientemente sólida, com as subjacentes aos Temas 71 (revogação da isenção da Cofins das sociedades profissionais), 299 (creditamento de ICMS x isenção parcial), 643 (IPI-importação devido por pessoas físicas) e 669 (Funrural após a Lei 10.256/2001), todas invariavelmente desmerecidas para descartar qualquer limitação às teses desfavoráveis aos contribuintes.

O ponto, aqui, é bem específico — e mais despretensioso. Preocupa-nos o anunciado desvio do critério mais promissor em termos de integridade jurisprudencial, qual seja, o tratamento diferenciado dos casos já judicializados para evitar que o vencedor receba "pedra" ao invés de "pão" (Humberto B. Ávila). A esse propósito, chegamos ao seguinte diagnóstico após o levantamento antes referido:

"Tem se consolidado a fixação de um limite intransponível à eventual modulação temporal em favor do poder público, consistente na ressalva às ações pendentes, de molde a preservar a efetividade da garantia do acesso à Justiça".

E, realmente, é esse o mais expressivo denominador comum dos Temas 2 e 3 (prazo de decadência/prescrição diferenciado para contribuições sociais), 201 (ICMS-ST: base de cálculo presumida x real), 615 (ICMS sobre vendas não presenciais) e, mais recentemente, 490 (creditamento de ICMS x incentivos fiscais inconstitucionais): singularidades discursivas à parte, em todos eles as situações litigiosas foram preservadas da modulação temporal então desenhada.

E, salvo melhor juízo, a significância dessa específica dimensão para o sistema de precedentes não poderia ser subestimada. Se, por um lado, é certo que as cautelas e exigências prescritas no artigo 927, §§2º e 4º, do CPC são direcionadas à revisão do próprio núcleo da tese, por outro, também não é passível de dúvida o valor ímpar atribuído à integridade jurisprudencial (artigo 926) e esta, por definição, pressupõe que questões com afinidade lógica e/ou jurídica sejam resolvidas à base de critérios harmônicos, que possam ser reconduzidos a um princípio comum (Ronald Dworkin), o que também se constitui em importante fator de segurança jurídica, por servir de contrapeso a eventuais manifestações de arbítrio e decisionismo (Humberto B. Ávila).

Aliás, é plausível sustentar que as exigências para o distanciamento do específico critério focalizado, em certa medida, devem ser até mais rigorosas, tendo-se em conta que, além da integridade jurisprudencial, o próprio fio condutor da cadeia de precedentes cuja ruptura é cogitada (efetividade da garantia do acesso à Justiça) constitui um formidável fator com potencial de tracionar no sentido contrário.

De resto, se a segurança jurídica pressupõe o exercício responsável e juridicamente orientado da liberdade, sendo antitética à simples exoneração de riscos (Humberto B. Ávila), não parece desprezível a significância do próprio modelo operativo da repercussão geral, especificamente da opção consciente do tribunal por não adotar, por ocasião da afetação de um determinado tema à sistemática, a alternativa disponível da simples reafirmação da jurisprudência preexistente, escolha com um quê de "silêncio eloquente". Realmente, beiraria a própria aporia negar o objeto litigioso à parte que logrou provar sua tese, enquanto aquela que litigou comprovadamente sem razão, inclusive após a eloquente sinalização do tribunal no sentido da indefinição do desfecho, ficaria totalmente imunizada do risco inerente a qualquer discussão judicial.

Então, parece-nos difícil negar que a modulação temporal anunciada para o Tema 825 significará, com todo respeito, um retrocesso em termos de integridade jurisprudencial, pelo seu notável desalinhamento frente ao profícuo "romance em cadeia" até aqui escrito pelo tribunal, razão pela qual alimentamos a sincera esperança de que esse prognóstico não se confirme. Mas se o critério até aqui razoavelmente estabelecido tiver de ser rompido, que isso se dê de forma advertida, clara e, principalmente, com atendimento ao ônus argumentativo intensificado que o caso requer, por analogia com o disposto no artigo 927, §§2º e 4º, do CPC.

 


[1] "A modulação temporal tributária no âmbito do Supremo Tribunal Federal: critérios e prognósticos". Revista Fórum de Direito Tributário, ano 16, núm. 94, Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 171-188.

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