Opinião

O mito da venda de influência no Judiciário e o antídoto da transparência nos tribunais

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11 de novembro de 2020, 18h09

É sempre recorrente na imprensa e nas mídias sociais a suspeita de que as questões judiciais mais relevantes acabam sendo resolvidas em razão da interferência de advogados influentes junto a magistrados sobre os quais, na esmagadora maioria das vezes falsamente, teriam alguma espécie de prestígio especial ou ascendência. Critica-se, de igual forma, a ausência de qualquer proibição na atuação de advogados em tribunais em que seus familiares sejam membros, pondo-se sempre em suspeição o desempenho desses profissionais, o que tem o potencial de gerar o desprestígio do Poder Judiciário e da própria advocacia.

Atuo há mais de 35 anos no Poder Judiciário, primeiro como servidor, depois como juiz e agora como advogado. Faz parte da carreira ouvir lendas sobre esse tipo de influência nefasta, sendo lógico se imaginar que aquele que insinua ter sobre um determinado magistrado uma capacidade especial de alterar, em favor da parte, o resultado judicial muitas vezes apenas aposta em uma das possibilidades para o desfecho do caso — sendo que quando isso ocorre de forma favorável esse tipo de profissional o reivindica como decorrência "de sua atuação". Quando é desfavorável, há sempre a desculpa de que a parte contrária conseguiu um "acesso" melhor ou que simplesmente "não deu certo", tentando manter a reputação de pessoa influente simplesmente discorrendo sobre teorias conspiratórias das mais diversas para justificar o ocorrido.

Sob o ponto de vista institucional, de qualquer modo, o Poder Judiciário e a advocacia são igualmente atingidos, vez que esse tipo de situação põe objetivamente em descrédito o sistema, não sendo relevante nesse viés ter ou não ocorrido o tráfico de influência ou a exploração de prestígio. Em qualquer hipótese, haverá sempre a perda da noção de Justiça, ou melhor, de processo judicial justo, remetendo o poder estatal de solução de conflitos a uma espécie de baderna institucional e corrupção que pode acarretar, como já vem ocorrendo, na desconfiança da população com relação às suas instituições. Sendo mais direto, o povo, e é ele quem interessa, deve acreditar que o processo judicial é justo e igualitário, e a exploração de prestígio, ainda que só prometida, mas não praticada, corrói a credibilidade das decisões e abre caminho para discursos populistas e demagógicos que, a pretexto de combater esse mal, acabam por pretender controlar, e aí efetivamente com consequências deletérias inimagináveis, o Poder Judiciário.

Combater esse tipo de atuação pode demandar a alteração de parâmetros legais, mas acredito que existem soluções simples e que podem ser adotadas pelo Poder Judiciário de forma administrativa e imediata sem maiores transtornos, através de alterações nos regimentos internos.

Em primeiro lugar, deve ser uma obrigação funcional a certificação nos autos todas as vezes que o magistrado receber qualquer advogado para tratar daquela demanda, devendo ser especificado em que dia, hora e local ocorreu a audiência, não se admitindo exceções, nem mesmo para o Ministério Público. Não se trata aqui de certificação prévia (pode ser posterior, desde que em curto espaço de tempo), mas, sim, de registro contemporâneo que torna o fato transparente e possibilita, de um lado, saber quem teve audiência pessoal com o juiz e em que circunstâncias de tempo e lugar; de outro, garante a igualdade de tratamento, pois a parte adversa passa a ter o mesmo direito.

Mostra-se igualmente útil se estabelecer previamente em que local essas audiências podem ocorrer, devendo também ser obrigatório a todos os magistrados, sem qualquer exceção, estabelecer um ou dois períodos durante a semana em que ele se dispõe a atender os advogados. Digo isso porque é também uma queixa frequente dos advogados a existência de julgadores que se negam sistematicamente a recebê-los, e isso abre brecha para a atuação de alguns maus profissionais.

Dito de outra forma, o magistrado que tem uma rotina estabelecida para receber advogados e não cria dificuldades para tanto mostra-se transparente, ao mesmo tempo em que aquele que não o faz, ainda que movido por boas intenções, acaba se fragilizando, pois sempre haverá quem diz "vender" o "acesso" sobre quem se mostra "inacessível". Não se trata assim de mera aplicação da norma que obriga tal conduta (artigo 7, inciso VIII, da Lei nº 8.906/94), mas também da implementação de uma política de transparência e de desmistificação da atividade judicial, mostrando que a qualquer advogado é permitido, de forma igual, expor presencialmente as suas razões na demanda em que atua.

Não há que se confundir essa audiência individual com a possibilidade de sustentação oral. Em primeiro lugar, porque nem todos os recursos permitem tal possibilidade e, no mais, mesmo nas hipóteses em que em tese isso é permitido, são frequentes os julgamentos monocráticos — sendo que o recurso impugnativo que se segue, agravo interno ou regimental, não permite sustentação oral. Fora isso, a audiência individual com o magistrado, além de tradicional em nosso sistema, facilita a noção de acesso popular ao Poder Judiciário, bastando apenas a transparência de sua ocorrência, sendo que a sustentação oral, na maioria das vezes, mostra-se ineficaz ante a prática dos tribunais de elaboração e circulação dos votos antes das sessões de julgamento, o que acaba por desestimular, para se dizer o menos, qualquer releitura do caso.

A propósito da sustentação oral, o sistema judicial vem adotando práticas sucessivas que desestimulam sua ocorrência. Não são apenas os votos que circulam antecipadamente, por planilhas ou mesmo pelo seu inteiro teor, em que praticamente sela-se o resultado antes da sessão de julgamento, mas a adoção de decisões monocráticas sobre o recurso como regra e a completa apatia dos magistrados nas sustentações orais. Lembro que poucas vezes fui interrompido em sustentações orais para esclarecer dúvidas de algum julgador presente na sessão. Ao contrário do que se pensa, isso, sim, é o que seria desejável, pois uma pontuação dialética e dinâmica com os juízes nessas ocasiões leva a uma melhor compreensão sobre as teses e argumentos das partes, resultando julgamentos mais justos e reduzindo a incidência até mesmo de embargos declaratórios. É o que parece ser, por exemplo, a prática judicial nas cortes norte-americanas, e não há notícia de qualquer problema maior quanto a isso.

Não se pode perder vista, é certo, que há um excesso de demandas e que as sessões de julgamento com sustentação oral acabam sendo, da forma como são praticadas, mais extensas e menos produtivas. No entanto, vejo como um caminho mais razoável a ocorrência de sessões de julgamento apenas para que as cortes ouçam as sustentações orais, remetendo a deliberação para outro dia (inclusive de forma virtual, por que não, já que a prática hoje nas denominadas sessões presenciais é a circulação antecipada dos votos, como já dito anteriormente). Por outro lado, havendo uma intervenção maior dos julgadores nas sustentações orais, essa prática acabará por criar no âmbito da advocacia a necessidade de uma maior preparação, deixando de haver a banalização do ato, que passa a ser mais solene, complexo e potencialmente útil. Enfim, passa-se a efetivamente se defender teses e argumentos, sujeitando-se o advogado a ser indagado sobre eventuais dúvidas ou inconsistências, o que vai demandar que o profissional esteja mais preparado em tais ocasiões.

Enfim, essas propostas buscam, de um lado, dar maior transparência às atividades dos juízes e dos advogados, afastando a recorrente crítica sobre a existência do tráfico de influencia ou exploração de prestígio, como também valoriza o bom profissional, que passa ter de forma objetiva e visível uma igualdade de tratamento nas diversas cortes de Justiça. Cabe assentar, de qualquer modo, que as práticas de transparência têm que ser cogentes, devendo sua inobservância configurar infração ética gravíssima, se demonstrada, a atingir igualmente não só o magistrado — como também o advogado que a realizou ou que com ela anuiu.

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