Opinião

O Juízo 100% Digital e a incipiente automatização da Justiça brasileira

Autor

  • Salus Henrique Silveira Ferro

    é advogado mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) especialista em Derecho de Daños (Direito de Danos) pela Universidad de Salamanca (USAL) e pós-graduado em Direito Intelectual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

11 de novembro de 2020, 16h15

A recente Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 345, aprovada em 6 de outubro, torna-se um incentivo à Justiça digital, uma incipiente implementação que visa ao estabelecimento de uma digitalização dos atos processuais, sob um contexto de um mundo tecnológico onde o Direito e a tecnologia passam a andar de mãos dadas.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) foi a primeira corte a adotar a medida inicialmente, ainda que a medida abrangerá 13 unidades jurisdicionais do Estado. Esse novo acesso à Justiça, como já ocorre em audiências e sessões de julgamentos por videoconferência, possibilita a prática de atos processuais sem o comparecimento físico nos fóruns.

A celeridade processual parece ser o maior motivo para uma implementação nos tribunais brasileiros, uma vez que a tecnologia possibilita uma maior tramitação dos processos, pela rápida resposta e eficiência das plataformas digitais. A cartilha elaborada para a apresentação do Juízo 100% Digital explicita o alinhamento da inteligência humana com a artificial, com o fito de melhorar os processos e recursos humanos, e adverte: "Os robôs contribuem com o trabalho dos servidores", em uma clara alusão à implementação de uma inteligência capaz de substituí-los [1].

Haverá ainda, fornecimento de uma infraestrutura de informática e telecomunicação necessárias dentro das unidades jurisdicionais, com atendimento remoto durante o horário de expediente, pelos meios de comunicações definidos pelos tribunais, e em casos de atendimento com o magistrado, sob interesse do advogado, a forma eletrônica deverá responder no prazo de até 48 horas, para o dia e hora do atendimento virtual. O artigo 7º e 8º da respectiva cartilha exemplificam que a medida será avaliada para uma maior obtenção de produtividade e celeridade à Justiça, de modo que a depender dos resultados, poderá o tribunal optar pela manutenção ou descontinuidade da implementação. A escolha é facultativa e de comum acordo para o trâmite digital, exercida pela parte demandante no momento da distribuição da ação, podendo a parte demandada opor-se a medida até a contestação.

Uma Justiça digital no mundo contemporâneo
O funcionamento de tribunais por meio de dados e informações no ambiente virtual não é novo, o gerenciamento processual através das plataformas digitais constitui uma maximização dos resultados e a identificação de melhorias e necessidades do tribunal em questão. O avanço tecnológico parece estar intimamente conectado com um desenvolvimento de uma estrutura jurídica automatizada, e à medida em que avança, podem desencadear novos olhares às problemáticas jurídicas existentes.

Verdadeiras sociedades digitais, cuja interação da sociedade para com a internet é notória, propõem uma operacionalidade jurídica de modo diverso, na medida em que o desenvolvimento da inteligência artificial permite novas interações sem uma verdadeira supervisão humana.

Essa transformação digital que modifica o modo tradicional e habitual como nos relacionamos, nossas tarefas cotidianas e nosso trabalho também viabiliza uma nova concepção do nosso Direito. A própria estrutura jurídica como a conhecemos é alvo dessa nova dinâmica, que trazem impactos aos operadores do Direito, propensos a novas situações.

O estabelecimento do juiz-robô na Estônia, já em aplicabilidade, evidencia um novo cenário, ao qual os próprios julgadores estão sujeitos à substituição por máquinas dotadas de inteligência artificial. No caso estoniano, a própria inteligência implementada sugere ou toma decisões em casos considerados de pequena complexidade e valor econômico, processos com valor abaixo de € 7 mil [2].

As smart courts chinesas, com um financiamento soberano pelo país em inteligência artificial, possibilitam um cenário de verdadeira revolução no Judiciário, uma estrutura jurídica alçada em uma Big Data capaz de identificar facilmente, sob uma explosão de litígios no ambiente de quase dois bilhões de pessoas, julgamentos, informações, e estatísticas dos tribunais, além de outras providências.

Inteligências artificiais que possibilitam auxiliar a corte nos julgamentos também são visíveis, como o System 206, operacionalizado como um assistente do juiz nos tribunais chineses, a ferramenta permite transcrever depoimentos, reconhecer a identidade, exibir informações e evidências pelo simples comando de áudio.

O professor Ma Changshan, da Universidade de Ciência Política e Direito do Leste da China em Xangai, afirma que o sistema visa a identificar e transferir grandes quantidades de documentos jurídicos para dados eletrônicos, de modo que os elementos do julgamento encontrem alguma incorreção, como incongruências ao longo do processo [3]. Nesse cenário, a simples confissão de um acusado ou das testemunhas pode ser submetida instantaneamente a uma revisão capaz de identificar contradições nas declarações, com o intuito de evitar condenações errôneas.

Medidas que visam a contribuir para uma problemática judicial podem vislumbrar nesses modelos de auxílios softwares com sistemas de inteligência artificial para tornar o processo mais eficiente, sobretudo no que tange à produtividade e custo-benefício, uma vez que a conectividade dos sistemas permite uma operacionalidade 24 horas por dia, sete dias por semana, não exigindo quaisquer direitos trabalhistas, bastando estar ligada.

Ainda que não tenhamos um "juiz-robô" ou uma ferramenta capaz de exercer esse ofício com uma autorização estatal, pelos inúmeros impedimentos jurídicos [4], tanto em violações do ordenamento jurídico e princípios constitucionais, o país não detém uma tecnologia capaz para uma substituição com impacto tão relevante na estrutura judiciária, havendo claros impeditivos sociais e jurídicos. No entanto, percebe-se sofisticações no intuito de maximizar a produtividade, sob uma verdadeira automação parcial, cuja ferramenta destina uma operacionalidade aos processos repetitivos, nesse ambiente quase caótico de litígios, como o notório robô Victor do STF.

O Juízo 100% Digital abre caminho para uma consistente base de dados, que permitirá subtrair os resultados e categorizá-los com uma maior acurácia ao desenvolvimento de propostas semelhantes a toda uma estrutura judiciária envolta na inteligência artificial. Contudo, na medida em que esses sistemas forem sendo aprimorados, com o progressivo volume de dados e acurácia dos resultados, a inteligência artificial dentro da estrutura judiciária terá atividades cada vez mais nobres, que fogem da repetitividade tradicional, devendo sempre haver uma supervisão humana que averigue os resultados, minorando os riscos de uma aplicação dentro do sistema jurídico.

 


[4] FERRO, Salus Henrique Silveira. PERMISSIBILIDADE DO JUIZ-ROBÔ NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO. In: Inteligência Artificial e Tecnologias Aplicadas ao Direito IV, p. 12-19. Belo Horizonte: Skema Business School, 2020. Disponível em: <https://www.conpedi.org.br/wp-content/uploads/2020/09/SKEMA-Intelig%C3%AAncia-Artificial-e-tecnologias-aplicadas-ao-Direito-IV.pdf>.

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