Opinião

Lavagem de dinheiro e prova indiciária

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

11 de novembro de 2020, 20h58

No momento em que há um debate sobre as possíveis alterações na Lei de Lavagem de Dinheiro, cabe a reflexão de um tema ainda tormentoso que trata do problema da prova para o oferecimento da denúncia. É certo que o atual dispositivo legal trata da possibilidade de oferecimento da inicial acusatória tão somente com indícios da infração penal antecedente e pensamos que essa questão merece ser revisitada para o bem da segurança jurídica.

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No processo penal, a regra é a de que existam indícios da autoria e prova da materialidade do crime para o oferecimento da denúncia. A lei de branqueamento de capitais brasileira inovou ao exigir somente os indícios da infração antecedente. Porém, fica a indagação se este dispositivo não fere as garantias do acusado, é dizer, da mais ampla defesa e do contraditório. Isso porque, de acordo com o preceito contido no dispositivo, o acusado terá de se defender de uma acusação de lavagem de capitais baseada em uma infração antecedente que não restou provada, ou seja, há apenas indícios suficientes desta, ferindo assim toda a lógica do devido processo legal.

É certo que o processo penal é por vezes considerado um instrumento necessário de proteção dos valores recolhidos pelo Direito Penal, cuja função principal consiste em dotar o Estado de um procedimento preestabelecido para a aplicação do ius puniendi. A finalidade, portanto, das medidas restritivas de direitos fundamentais suscetíveis de serem adotadas no processo penal orientar-se-iam, assim, em princípio, a permitir aos órgãos do Estado a satisfação dos fins próprios do Direito material, dando deste modo resposta ao interesse de persecução penal que anima sua atuação neste âmbito e que se opõe ao ius libertatis dos cidadãos [1].

O questionamento que se impõe é acerca dos limites do Estado na tentativa de efetivar essas medidas de persecução penal sem ferir os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Ainda que o crime de lavagem seja um crime grave, não se pode permitir ao Estado que viabilize uma acusação contra o indivíduo baseada em "indícios suficientes" das infrações antecedentes. Nesse sentido, transcorridos mais de 20 anos da edição da Lei 9.613/98, é chegado o momento de fazermos uma revisão dessa estrutura processual, permitindo, com isso, a implementação de um processo justo ao cidadão acusado.      

Montañez Pardo [2], ao tratar da prova indiciária na Espanha, afirma que é possível a aceitação desta, mas adverte que ela deve observar alguns requisitos e os resume desta forma: a) os indícios devem estar plenamente seguros. Assim, não valem as meras conjecturas ou suspeitas, pois não é possível construir certezas sobre simples probabilidades; b) concorrência de uma pluralidade de indícios. É necessário que concorram uma pluralidade de indícios, pois um fato único ou isolado impede fundamentar a convicção judicial com base na prova indiciária; c) existência de razões dedutivas. Entre os indícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano.

Talvez, utilizando-se desse critério para a verificação dos indícios da infração antecedente, seria possível que se viabilizasse a inicial acusatória pelo crime de lavagem de dinheiro. Acreditamos que o melhor seria uma prova segura da infração antecedente, o que necessariamente não significa uma sentença condenatória, mas que permita ao juiz a verificação dos fatos típicos e antijurídicos que geraram os bens aptos a serem lavados.

Em que pese parte da doutrina brasileira mencione a desnecessidade de descrição minuciosa da infração antecedente na denúncia, sob o argumento de que isso deve ser feito em relação ao crime de lavagem, enfatiza que cabe ao Ministério Público demonstrar ao juiz que a inicial acusatória está fundamentada em seguros indícios de que o crime de lavagem foi praticado em relação direta ou indireta aos produtos da prática de infrações antecedentes [3]. Na ausência de tal demonstração, a denúncia, a nosso ver, deverá ser rejeitada [4].

Novamente insistimos que a questão merece ser revisitada agora, pois a prova indiciária da infração antecedente não pode e não deve servir de sustentação jurídica para fundamentar uma denúncia de lavagem de dinheiro. Uma revisão nesse dispositivo da lei de branqueamento de capitais permitiria um processo adequado à Constituição e impediria a rejeição de denúncias sem os requisitos fundamentais, ou, até mesmo, ações penais que ao final são fulminadas por ausência de provas.

 


[1] GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal. Madrid: Colex, 1990, p. 243.

[2] MONTAÑES PARDO, Miguel Angel, La presunción de Inocencia. Madrid: Marcial Pons, 1999, pp. 106/109.

[3] Cfr. BARROS, Marco Antonio, ob. cit., p. 82.

[4] GOMES, Luiz Flávio, em CERVINI, Raul / TERRA DE OLIVEIRA, Willian / GOMES, Luiz Flávio, ob. cit., p. 356.

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    é advogado criminalista, sócio do escritório Callegari Advocacia Criminal, professor de Direito Penal do IDP/Brasília e pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid.

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