Opinião

Vacinação contra a Covid-19: a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal

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10 de novembro de 2020, 6h04

As políticas públicas de saúde relacionadas ao combate da pandemia da Covid-19 têm provocado inflamados debates entre gestores públicos nas variadas esferas de governo. Infelizmente se percebe até a tomada de decisões baseada mais nos aspectos político e ideológico (dos governantes) do que técnico. E essa desarmonia geral propiciou o aforamento de ações judiciais perante o Supremo Tribunal Federal visando a questionar tais atos políticos.

Vale citar, como exemplo, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 707, em que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde pleiteia que o governo federal se abstenha de recomendar o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para pacientes da Covid-19.

Há também ações que visam à determinação judicial de providências que, supostamente, garantiriam a vacinação da população brasileira contra a doença. É o caso da ADPF nº 754, em que o partido político Rede Sustentabilidade questiona suposto ato do presidente da República, que teria desautorizado "a assinatura do Ministério da Saúde no protocolo de intenção de aquisição da vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo".

Na mesma linha é a ADPF nº 756, em que os partidos PCdoB, PSOL, PT, PSB e Cidadania pedem, em síntese, que seja determinada a adoção de "procedimentos administrativos indispensáveis para que a União possa, com a segurança científica, técnica e administrativa necessárias, providenciar a aquisição das vacinas e medicamentos que sejam admitidas e aprovadas pela Agência de Vigilância Sanitária".

Sobre a queda de braço entre governos federal e estaduais, cabe citar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.586, em que o Partido Democrático Trabalhista pleiteia que seja dada interpretação conforme a Constituição ao artigo 3º, III, "d", da Lei nº 13.979/2020 [1] para que se reconheça incumbir aos Estados e municípios (e não à União) "determinar a realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas no combate à pandemia da Covid-19 (…) desde que as medidas adotadas, amparadas em evidências científicas, acarretem maior proteção ao bem jurídico transindividual".

E, na ADI nº 6.587, o Partido Trabalhista Brasileiro argui a inconstitucionalidade do referido artigo 3º, III, "d", da Lei nº 13.979/2020, sob o argumento de que "é imperioso que a vacinação seja facultativa, e não compulsória", pois, segundo alega, "a vacinação compulsória nesse caso será um verdadeiro teste em massa, conduzido com a população brasileira, que servirá, na essência, como grupo de cobaias, expostas a riscos potenciais e irreparáveis".

Diante desse cenário, e sem polemizar sobre o controvertido cabimento dessas modalidades de ações judiciais (ADI, ADPF), merece reflexão a própria judicialização das políticas públicas de combate à pandemia da Covid-19.

Basta conferir a manifestação da Advocacia-Geral da União na referida ADPF nº 754, de que não caberia ao Poder Judiciário, mas ao Executivo, a "escolha de uma possível vacina", já que "detém a expertise e os meios institucionais para definir a aquisição de uma, ou mais de uma, vacina segura e eficaz (quando houver) para aplicação em massa na população brasileira, sem riscos à saúde pública".

Questiona-se o controle judicial dos atos praticados pelo agente público em virtude das políticas públicas (sociais, econômicas, culturais etc.) definidas por um governo (constituído de representantes eleitos pelo povo), assim como a possibilidade de o Poder Judiciário interferir nesses atos políticos, já que isso poderia, em tese, configurar ingerência nos demais poderes (Executivo e Legislativo).

No entanto, não se vislumbra óbice ao controle judicial dos atos políticos se deles decorrer lesão ou ameaça a direito, com base no princípio da inafastabilidade de tutela jurisdicional. Não se afasta o controle jurisdicional dos atos políticos pelo argumento de que isso afrontaria a separação dos poderes.

Paulo Magalhães da Costa Coelho sustenta a "impossibilidade da existência de atos que provenham do Estado ou da administração pública insuscetíveis de controle quando ameaçarem, tocarem ou ferirem direitos individuais, coletivos ou difusos ou atentarem contra a Constituição e seus vetores axiológicos" [2].

De fato, escapa do controle do Poder Judiciário o mérito do ato político em si, ou seja, a discricionariedade administrativa pertinente à valoração (pelo governante) da oportunidade e da conveniência de determinado ato frente ao interesse comum, à utilidade pública, à necessidade ou à vontade da população. Caso contrário, haveria uma descabida substituição do administrador público pelo juiz, na medida em que este não teria legitimidade — pois não foi eleito pelo povo por meio do sufrágio universal — nem aparato técnico para implementar políticas públicas.

No entanto, essa discricionariedade administrativa é passível de controle judicial em determinados casos, a fim de proteger os cidadãos da atuação injusta e desproporcional do Estado.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello "não há como conceber nem como apreender racionalmente a noção de discricionariedade sem remissão lógica à existência de limites a ela, que defluem da lei e do sistema legal como um todo — salvante a hipótese de reduzi-la a mero arbítrio, negador de todos os postulados do Estado de Direito e do sistema positivo brasileiro" [3].

Afinal, conforme Juarez Freitas, "o mérito (relativo a juízos de conveniência ou de oportunidade) pode até não ser diretamente controlável, em si, mas o demérito o será sempre" [4].

Nesse contexto, ainda que não caiba ao Poder Judiciário a "escolha de uma possível vacina", em tese seria possível determinar a aquisição de vacinas e medicamentos aprovados pelo órgão competente (Anvisa), com vista a sanar eventual omissão estatal e salvaguardar o direito à saúde e as políticas públicas de saúde e sanitárias. Assim como já se decidiu, no âmbito do próprio STF, pela possibilidade de o Poder Judiciário impor ao Poder Executivo a obrigação de fornecer medicamentos não disponibilizados espontaneamente na rede pública de saúde.

Vale citar, a título ilustrativo, o Recurso Extraordinário nº 1.267.879, em cujo julgamento o STF debaterá se cabe ao Poder Judiciário obrigar os pais de uma criança a submetê-la a vacinação compulsória. Nesse processo, o ministro Roberto Barroso já reconheceu a repercussão geral do tema por entender que envolve o "dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, por meio de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas, como é o caso da vacinação infantil", com menção expressa ao "crescimento e a visibilidade do movimento antivacina no Brasil, especialmente após a pandemia da Covid-19, o que tem contribuído para diminuir a cobertura imunológica da população brasileira" [5].

A persistir a falta de consenso dos governantes, restará ao STF, com base em fundamentos técnicos e científicos, a árdua missão de avaliar os critérios a serem adotados numa eventual política pública de vacinação contra a Covid-19.

 


[1] "Artigo 3º – Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III – determinação de realização compulsória de: (…) d) vacinação e outras medidas profiláticas".

[2] "O ato político edita-se jungido à Constituição e sob seu império. Deve, portanto, haver estrita conformação entre eles e finalidade, forma e competência estabelecidas, como ainda em relação à principiologia constitucional. Assim exemplificando, se o Poder Judiciário recusa-se a sindicar as razões de relevância e urgência, contidas em medidas provisórias, a pretexto de serem atos políticos, possibilita que o Poder Executivo fira o princípio da separação dos Poderes, o regime democrático e o princípio do Estado de Direito albergado na Constituição, além de denegar a jurisdição como lhe determina o art. 5º, XXXV" (COELHO, Paulo Magalhães da Costa. Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 184-194).

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 937.

[4] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 217.

[5] "Por fim, o tema apresenta repercussão geral, especialmente do ponto de vista social, político e jurídico: (i) social, em razão da própria natureza do direito pleiteado e da importância das políticas de vacinação infantil determinadas pelo Ministério da Saúde; (ii) político, tendo em conta o crescimento e a visibilidade do movimento antivacina no Brasil, especialmente após a pandemia da Covid-19, o que tem contribuído para diminuir a cobertura imunológica da população brasileira; e (iii) jurídico, porque relacionado à interpretação e alcance das normas constitucionais que garantem o direito à saúde de crianças e da coletividade, bem como a liberdade de consciência e crença." (ARE 1267879, DJ 7/10/2020).

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