Opinião

Os dados do smartphone estão ou não protegidos pela Constituição?

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

10 de novembro de 2020, 15h00

Spacca
1. O debate e seu contexto
O debate em torno da proteção constitucional dos dados armazenados em aparelhos telefônicos teve início, há pouco tempo e de forma virtual, no Supremo Tribunal Federal (ARE 1.042.075).

A questão posta é a seguinte: é necessária autorização judicial para acesso aos dados inseridos em smartphones (contatos, agenda telefônica, etc.)? Tais dados estão protegidos pelas garantias constitucionais presentes no art. 5.º, incs. X e XII, da Constituição?

Min. Toffoli lançou seu voto no sentido de que a reserva de jurisdição se restringe à comunicação de dados, à base do que se extrai, inclusive, da legislação ordinária, v.g. das interceptações telefônicas, e não dos dados em si.

O Min. Gilmar, no entanto, alterou posicionamento seu anterior, e abriu a divergência: nos dias de hoje em que os aparelhos celulares armazenam uma quantidade gigantesca de dados íntimos da vida do indivíduo (e não se restringe, portanto, a somente dados numéricos, como nos antigos Nokias, Gradientes ou, quem não lembra, dos StarTACs) , há se ter em mente — e em atenção ao recente Marco Civil da Internet — que os dados, em si, reclamam proteção constitucional e devem se submeter à reserva de jurisdição. O Min. Fachin acompanhou a divergência (a íntegra do voto, porém, ainda não foi disponibilizada).

2. O indispensável olhar hermenêutico-constitucional
A vexata quaestio é, pois, sensível e reclama a nossa atenção. Se olharmos para o passado, de fato, os dados contidos em celulares se resumiam a meros registros de números de telefone que, em alguns casos, sequer continham maiores detalhes sobre o usuário da linha telefônica.

As trocas de mensagens, por ex., eram feitas por intermédio dos chamados SMS que eram bem menos utilizados, em função do custo unitário da comunicação.

Com o advento da internet móvel, houve uma verdadeira revolução que desencadeou a era dos smartphones.

Veja-se que, hoje, não se chama mais “celular” e sim smartphone (isto é, telefone inteligente).

E assim se chama não por acaso: tais aparelhos podem armazenar uma quantidade infinita de dados — incluindo sensíveis ao indivíduo, como extratos de contas bancárias, dados de geolocalização, fotos, banco de dados na “nuvem”, redes sociais e mais uma variedade.

Além disso, hoje este é o meio mais utilizado para se acessar a internet. E a evolução destes aparelhos segue em constante crescimento, de sorte que, aqueles lançados há dois ou três anos, hoje, aos nossos olhos, podem parecer obsoletos.

Observe-se: a interpretação do Min. Toffoli mais se assemelha a um originalismo. Ocorre é que o sentido se dá no tempo e com o tempo. Chama-se a isso de ter em conta a wirkungsgeschichtliches Bewusstsein — ter consciência da força dos efeitos da história. O mundo muda. O Código Civil alemão de 1900 não tratava de nada que dissesse respeito a espaço aéreo, regulação de direitos atinentes, por uma razão simples: o avião não havia sido inventado. Com o smartphone ocorre o mesmo. Ele é algo novo.

Com efeito, aqui na nossa discussão temos de levar em conta que, de fato, houve uma revolução tecnológica que também culminou — entre outras coisas — na necessidade de regulação do uso da rede mundial de computadores. Foi exatamente por isso que o legislador brasileiro houve por instituir o chamado Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014) e expressamente — no art. 3.º, inc. III — conferiu o direito de proteção dos dados e assegurou a sua inviolabilidade (art. 7.º, inc. III), submetendo a sua relativização à autorização judicial.

Ou seja, a realidade hodierna não pode ser analisada sem considerar esses novos aspectos da era digital. O voto do min. Gilmar é elucidativo nesse particular, a ponto de referir que se opera, em verdade, uma mutação constitucional.

Eis um bom exemplo vindo dos Estados Unidos da América: o paradigmático caso Riley vs California julgado pela U.S Supreme Court. Naquele julgado compreendeu-se que a análise dos dados inseridos nos smartphones deve se submeter à autorização judicial. O precedente (julgado em 2014) bem enuncia (em tradução literal):

há uma década, os policiais poderiam se deparar com um item altamente pessoal, como um diário, no entanto, hoje, mais de 90% dos americanos adultos possuem celulares que guardam consigo dados digitais sobre quase todos os aspectos de suas vidas”.

Observe-se que, em matéria penal, a jurisprudência norte-americana pode jogar luz sobre os tribunais brasileiros, desde que compatível com a realidade processual penal brasileira (como é o caso).

É dizer: não se “transplanta”1 do sistema jurídico dos Estados Unidos da América somente teorias para condenar e suprimir direitos (como a cegueira deliberada) — selo de ironia. Também, deve-se promover a interação a fim de constituir direitos, como este de proteção de dados e de sua inviolabilidade.

3. Consentimento do investigado? Por aqui?
Outro ponto que também é muito relevante e se insere, em alguma medida, dentro desse debate (inclusive, foi objeto de breve manifestação do min. Gilmar) é a questão do consentimento do investigado no acesso ao smartphone. Prova contra si?

Para nós, trata-se de um ponto sensível que demanda, também, uma atenção maior. O Poder Judiciário precisa, inevitavelmente, discorrer sobre isso e estabelecer parâmetros:

  1. Como deve ser feito o registro da aceitação?

  2. Pela palavra do agente público ou por meio de manifestação formal do investigado?

  3. Como assegurar que tal aceitação não será feita na via da coação?

Esses três pontos precisam ser respondidos com precisão. Isto porque precisamos evitar aquela velha máxima fatta la legge trovato l'inganno, i.e. a lei produz a sua própria burla. Ou seja — e estamos no Brasil — se o que impede o acesso, sem autorização judicial, é o consentimento, diremos que o investigado aceitou. Se ele disser o contrário: ora, ele é o investigado. Nada mais. Isso, definitivamente, não pode ocorrer. Na prática forense, contudo, isso é mais comum do que se imagina.

Ademais, não se cuida de um esforço hercúleo a singela submissão de pedido ao Poder Judiciário. É questão de paciência.

De nada adianta dar eficiência e celeridade ao processo penal se, por outro lado, não houver a estrita observância ao devido processo legal e as garantias constitucionais incidentes à espécie. Se o celular foi localizado na “cena do crime” ou junto ao flagrado, ele se transforma em prova. E a prova deve observar a cadeia de custódia. E, em se tratando de smartphone — que, novamente, como ponderou a U.S Supreme Court — contém quase todos os aspectos da vida de um indivíduo, é necessária a autorização judicial para o seu acesso. Permissão essa, inclusive, que deve ser feita a posteriori e não antes (ora, como se permite a devassa a algo que ainda não se sabe o que é. A resposta não antecede a pergunta).

Portanto, esperemos o resultado definitivo do julgamento no Supremo Tribunal Federal. Em nosso juízo, a resposta hermeneuticamente adequada está refletida no voto divergente.


1 A metáfora do “transplante jurídico” — cunhada por Alan Watson — é referida aqui de forma crítica e não representa o modo como entendemos adequada a comunicação entre sistemas jurídicos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!