Público x Privado

Democracia, eleição e Constituição

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9 de novembro de 2020, 17h16

A recente eleição americana, pela sua importância em face das visões de mundo em disputa, gerou uma enorme atenção global, não só dos governos, mas das pessoas em geral. E, nesse processo, ficou aparente a impressionante complexidade de um sistema tão fragmentado como o americano. O vencedor não é aquele que ganha a maioria do voto popular, mas a maioria do colégio eleitoral; não existe uma instituição que centralize o processo (como o TSE no Brasil, por exemplo), mas um confuso amálgama de regras federais, estaduais e distritais (nos EUA, a competência legal para regular a eleição é do Estado, consoante o artigo 2º, inciso II, da Constituição); o controle do processo não é feito por uma entidade independente, apartidária, mas pela própria classe política profundamente envolvida e interessada nos resultados eleitorais (secretários de Estado, comissários eleitorais, apuradores de votos, todos republicanos ou democratas, em sua maioria); o sistema de votação é extremamente complexo, com votos feitos com antecedência pelos correios; votos presenciais, votos dos militares e demais pessoas fora dos Estados Unidos e votos provisórios (provisional ballots). Mas é impressionante que quase 150 milhões de eleitores tenham votado em um país em que o voto não é obrigatório.

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Para entender um pouco esse complexo sistema, interessantes são as análises feitas pela Missão do Laboratório Eleitoral Internacional da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e pela Missão da Organização dos Estados Americanos.

Portanto, não é de surpreender a contínua repetição da pergunta: como um sistema como esse pode funcionar?

Um dos pontos debatidos no curso da longa, exaustiva e estressante apuração eleitoral foi o questionamento se não seria mais adequado e eficiente um sistema mais centralizado na esfera federal, retirando dos Estados a regulamentação do processo. Nesse ponto, chamou-me atenção a posição de um senador republicano, em entrevista à CNN Internacional, contrário à centralização do processo, exatamente para impedir que qualquer pessoa ou instituição possua poder excessivo para influenciar o processo eleitoral como um todo. E aqui reside um dos núcleos de todo o sistema político americano: a divisão do poder é a essência do seu controle. A partir dele é estabelecido o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) que está no cerne do funcionamento do Estado norte-americano. E no processo político eleitoral dos EUA é possível ver que o sistema de freios e contrapesos não se limita à tradicional divisão de poderes do Estado (Legislativo, Judiciário e Executivo). Ele avança para o sistema federal, em que os Estados possuem uma significativa importância decisória e na própria sociedade, em que existe uma imprensa plural e diversa.

O fato é que não existe um sistema eleitoral perfeito, mas um sistema adaptado à realidade cultural e histórica do país. Isso lembra a famosa frase de Churchill em que a democracia é o pior sistema político que existe, com exceção de todos os demais.

Assim é, por exemplo, o denominado provisional ballot, o voto dado apresenta problemas de identificação do eleitor, mas pode ser validado posteriormente, sendo o mesmo convocado para confirmar a identidade e sanar o vício apontado. Isso no Brasil nunca foi possível, já que afeta o próprio segredo do voto e vivenciamos uma experiência danosa, principalmente na Velha República, do chamado voto de cabresto.

Mas o fato é que o sistema de freios e contrapesos, pelos menos nos Estados Unidos, é extremamente eficiente. Logo após o presidente Donald Trump vir a público criticar o resultado eleitoral, acusando o sistema de fraudulento, diversos atores políticos, muitos deles republicanos, passaram a criticar essa acusação e defender o sistema. Aliás, a principal crítica está na absoluta falta de evidência para a acusação feita. De fato, o presidente Trump teve, em todo o seu mandato presidencial, um comportamento que dispensava qualquer demonstração de sustentação fática ou científica de suas afirmações (como no caso da cloroquina como remédio para a Covid-19), sendo um dos principais proliferadores do que passou a ser denominado fake news.

Mas o exemplo do processo eleitoral americano demonstra que um sistema constitucional não se consolida apenas pelas regras escritas, mas igualmente pela tradição que é estabelecida no seu entorno. É o que fica claro na tradição não escrita do concessão do candidato derrotado ao vitorioso. A concessão do resultado feita pelo candidato derrotado na eleição é um comportamento que está instalado no sistema político americano e serve para iniciar o processo de transição de poder (este legalmente obrigatório). O presidente Trump, ao recusar-se a fazer a concessão política da derrota, acaba por romper essa tradição e, por isso, sofreu duras críticas de todos: democratas, republicanos e apartidários. A própria empresa de comunicação Fox News, altamente partidária do governo, apelou a Trump para que cumprisse a tradição e promovesse o processo de transição política.

O exemplo da eleição nos Estados Unidos mostra que não existem processos eleitorais perfeitos em uma democracia, mesmo que sempre exista espaço para aperfeiçoamento, e a tradição e experiência histórica de um país é essencial para sua realização. Os governos que brigam com essa tradição acabam por findar sob inúmeras críticas. A Constituição é o ponto de partida de um processo político eleitoral democrático e pleno, mas a tradição histórica é que lhe dá fundamento, substância e permanência.

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