Opinião

A distorção do Direito pela disseminação de fake news por meios de comunicação

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9 de novembro de 2020, 13h35

Inicialmente, cabe registrar que o processo penal instaurado para a apuração de crime de estupro praticado contra Mariana Ferrer está em trâmite sigiloso na 3ª Vara da Criminal da Comarca da Capital de Santa Catarina e que, portanto, sequer os atos do processo poderiam ter sido divulgados pela mídia.

Ainda prefacialmente, em que pese não constituir objeto deste artigo, importante destacar que os fatos ocorridos durante a audiência de instrução do processo em comento e que foram divulgados apenas em parte pelo site Intercept revelam um claro desrespeito aos direitos da vítima, os quais deverão ser apurados pelos órgãos correcionais, com a respectiva aplicação das penalidades cabíveis.

O processo envolvendo a vítima Mariana Ferrer e o acusado André Aranha embala debates acalorados desde o primeiro semestre do ano de 2019, quando a vítima foi a púbico, utilizando suas redes sociais, para expor um caso de estupro sofrido no final de 2018 dentro de uma boate de Santa Catarina.

Desde então, diariamente há campanhas apoiando a jovem e dando apoio ao fim da cultura do estupro, que, infelizmente, até hoje é uma mazela que atormenta a comunidade feminina.

Ocorre que o jornal Intercept, tendo recebido informações sensíveis do processo em primeira mão, sem qualquer base jurídica, amparo técnico ou reflexão teórica sobre o caso, entendeu por bem divulgar uma matéria na madrugada do dia 3 de novembro contendo a seguinte chamada: "Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de 'estupro culposo' e advogado humilhando jovem".

Depreende-se do título da notícia que o juiz competente para sentenciar o feito teria inovado juridicamente e criado uma aberração jurídica denominada "estupro culposo". No corpo da matéria, a jornalista Schirlei Alves explica o contexto do processo, no qual o promotor teria sustentado que "não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar ou seja, uma espécie de 'estupro culposo'".

A jornalista ainda expõe que o juiz aceitou a argumentação do Ministério Público. O que é mentira.

Posteriormente, às 21h54 do dia 3, foi adicionada uma nota minúscula no rodapé da notícia informando que "A expressão 'estupro culposo' foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo".

Muito provavelmente, a inclusão do pequeno excerto no fim da reportagem foi realizada em razão da grande comoção causada pelo termo jurídico inventado pelo Intercept e nunca mencionado no processo, tendo o termo "estupro culposo" (ou "estupro sem intenção") ido parar nas manchetes dos principais jornais brasileiros, além de milhões de contas pessoais no Twitter, no Instagram e no Facebook terem repudiado o "estupro culposo".

Entretanto, uma circunstância iniludível torna insubsistente e completamente inverídica matéria editada pelo Intercept: a tese de "estupro culposo" não fez parte das alegações finais do Ministério Público e muito menos da sentença!

Na verdade, ao posicionar-se favoravelmente à absolvição do acusado, o Ministério Público fundamentou ser "duvidosa a situação de vulnerabilidade da vítima no momento da relação sexual", além de não ter sido indicado "a presença de dolo na conduta do acusado" por não ter ficado comprovado o fato de o acusado ter conhecimento sobre a possível condição de vulnerabilidade da vítima. Diferentemente do que está sendo transmitido pela mídia, essa última tese não é inédita no Direito brasileiro, estando prevista no artigo 20, caput, do CP, defendida pela doutrina penal e adotada por outros casos de estupro de vulnerável [1].

E pior, nem precisávamos nos aprofundar na explicação relacionada ao erro elementar do tipo, isso porque o juiz não acolheu o requerimento ministerial. Com efeito, ao julgar a demanda, a autoridade judiciária perquiriu todas as provas constantes do acervo probatório e concluiu serem insuficientes para a condenação do acusado pelo crime de estupro de vulnerável.

De onde surgiu o termo "estupro culposo"? Ninguém sabe. Profissionais do jornalismo inovando termos jurídicos e causado uma imensa histeria coletiva, comoção social e fazendo com que um significativo número de pessoas combatesse um inimigo que sequer chegou a existir.

A discussão sobre a suficiência ou não das provas para a condenação é válida. O debate sobre o "estupro culposo" não! E, mesmo assim, nos dias iniciais do mês de novembro, a mídia nacional polemizou o "acontecimento" do nunca existente "estupro não intencional", também adjetivado de lenda urbana.

O alarde foi falso, mas alguns meios de comunicação continuam disseminando fake news e provocando péssimas impressões sobre o Direito Penal, Processual Penal e o Poder Judiciário brasileiro. Será por quê? Seria esse o tipo de notícia que atrai o tal "público leigo"? Independentemente da motivação, a onda de notícias falsas envolvendo o direito, mormente a discriminada seara penal, não pode continuar, sob pena de arriscar-se a harmonia social erigida sob as bases da normatividade criminal.

 


[1] (TJ-GO – APR: 738175120168090183, Relator: DES. IVO FAVARO, Data de Julgamento: 29/05/2018, IA CAMARA  CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2629 de 19/11/2018)

(TJ-RR – ACr: 00006459120148230010 0000645-91.2014.8.23.0010, Relator: Des. , Data de Publicação: DJe 07/08/2019, p.)

Autores

  • é estudante de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal, estagiário no escritório Amin Ferraz, Coelho e Thompson Flores Advogados e no escritório Azevedo e Carvalho Advogados Associados e pesquisador nas Áreas de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional.

  • é advogado inscrito nos quadros da OAB/DF, membro dos quadros do escritório de advocacia Amin Ferraz, Coelho e Thompson Flores Advogados e pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.

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