Defesa da concorrência

A luta contra monopólios e cartéis: fracassos e perspectivas

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9 de novembro de 2020, 8h00

Em minha visão a contribuição da academia ao Direito deve ser sempre dúplice. Criticar o que identifica de errado no passado e presente e imaginar alternativas e mudanças institucionais para o futuro. Da crítica deve-se passar necessariamente às propostas de reconstrução. Acadêmicos pessimistas são uma contradição em termos, pois o pessimismo significa que não se propuseram a sugerir modelos coerentes de reconstrução da realidade que criticam.

No país esse movimento de crítica e reconstrução deveria soar óbvio em matéria de disciplina dos monopólios. Nossa relação com os monopólios é simbiótica desde a colônia. De lá até agora, a desproporção de poder entre monopolistas e o resto da sociedade foi de tal porte a moldar a sociedade brasileira. Da economia, Estado e sociedade organizada em torno dos monopólios no Brasil colonial, passando aos governos formados por oligopólios (república café com leite) no Brasil independente, até os  planos desenvolvimentos alicerçados ou em indústrias oligopolizadas ou monopolizadas (da indústria automobilista dos anos 1950 e 60 do século 20 aos campeões nacionais das primeiras décadas do século 21), tudo intermediado por relevantes fases de neoliberalismo em que a não interferência do Estado e as privatizações permitiram ao monopólios expandir-se e operar livremente, a sociedade e o Estado brasileiros parecem não conseguir deles se desprender.

Não é de espantar que essa concentração de poder e renda que tudo drena, do mercado consumidor ao mercado de trabalho, chegando à própria impossibilidade de dinâmica econômica própria em diversos setores da sociedade (setores dependentes dos monopólios), tenha gerado um dos países de pior distribuição de renda no mundo.

Em uma realidade como essa não surpreende mas gera sem dúvida preocupação a pouca efetividade de nossa disciplina antimonopólio.

Passados mais de 25 anos da primeira lei "modernizadora" de nosso direito anti-monopólio (lei n. 8.884 de 1994), não é possível estar satisfeito com os resultados obtidos pelo Brasil nessa área.

De uma lado em matéria de controle das estruturas, à grandeza dos propósitos não correspondeu efetividade. Em recente e aprofundada pesquisa empírica realizada em sua tese de doutorado, o doutor Rodrigo Fialho Borges concluiu após ler e analisar mais de 8 mil decisões do Cade que a porcentagem de decisões com restrições efetivas aos atos de concentração tende a quase zero. Após um início um pouco mais animador após a lei de 1994, o controle das concentrações vem perdendo efetividade, e pasmem com mais intensidade ainda após a introdução pela nova lei (lei nº 12529 de 2.011) do salutar controle prévio. Os números impressionam: de 1994 a 2018, das operações analisadas, o CADE reprovou apenas 0,21%, impôs restrições estruturais a somente 0,81% e restrições comportamentais a 1,32%.[1]

A realidade não é tão diferente no controle das condutas. Mais efetivo na esfera administrativa, ao menos no que se refere à persecução de cartéis[2], carece ainda de um complemento fundamental, qual seja, a tradução das condenações ou confissões em indenizações civis para as vítimas. Casos existentes e gravíssimos, com confissões homologadas ou julgamentos pelo Cade, deixaram marcas enormes na economia das regiões ou nas vítimas afetadas. Permanecem até agora sem sanção relevante no Brasil, ou pela gigantesca demora em sua transformação em indenizações ou pela contestação judicial (de duração enorme) das próprias decisões condenatórias administrativas.

Transformar uma tão brutal e dura realidade, solidificada por tantos séculos, é bastante difícil mas não impossível. Mais do que tudo, é necessário. As experiências mais bem sucedidas no norte e no sul do globo em matéria de desenvolvimento sempre incluíram intervenções estruturais profundas nos mercados. Da realidade norte americana de divisão estrutural de empresas, que se repete a cada 40 ou 50 anos  (Standard Oil, ATT e agora a discussão sobe o poder das big techs), ao desenvolvimentismo alemão baseado na divisão compulsória de grandes conglomerados no pos guerra e atribuição de direito de coparticipação aos trabalhadores até a mais recente experiência  chinesa de utilização estratégica da regras de transferência de tecnologia como forma de limitar  o poder de multinacionais estrangeiras, a "subida da escada" em matéria de desenvolvimento sempre ocorreu através da intervenção estrutural em monopólios e estruturas jurídicas ou econômicas que permitiam a concentração de poder econômico.

Não seria e não será diferente no Brasil. Obviamente as leis antimonopólio não são instrumento único e nem mesmo suficiente para tanto. Mas podem ajudar e muito. A questão não é como melhorá-las ou modificá-las (como se pensa sempre no Brasil). As leis antimonopólio brasileiras foram e são avançadas em seus dispositivos de direito material. É preciso agora torná-las efetivas.

Em matéria de controle das estruturas a tarefa é mais difícil. O mito neoclássico da eficiência nas concentrações assombra reguladores e parece paralisar a tomada de medidas simples, como por exemplo a pura desaprovação de atos de concentração geradores de monopólios. É preciso aqui que academia e sociedade civil demonstrem continuamente: (i) a inefetividade de nosso controle das concentrações (nesse aspecto a tese do Dr. Rodrigo é relevante exemplo de contribuição acadêmica) e (ii) os efeitos dos monopólios nas diferentes esferas de organização da sociedade — consumidores nos mercados relevantes, mas também trabalhadores e outros setores econômicos sufocados pelos monopólios (os setores dependentes) —  e no final sobre a própria distribuição de renda[3]. Em matéria de organização social, mais luz é sempre sinônimo de mais preocupação, alerta e efetividade.

Com relação às condutas anticoncorrenciais em geral e mais especificamente aos cartéis, há alternativa a um só tempo desafiadora e surpreendente. Desafiadora por não ser de fácil implementação. Surpreendente pois vem da fonte imprevista. Refiro-me à construção, já incipiente, de um "direito econômico global" ou de um "direito empresarial público global".

Esse direito decorre de um paradoxo de fundo. O mesmo movimento — a globalização econômica — que gerou a livre movimentação de grandes empresas transnacionais ou a internacionalização dos monopólios a partir da década de 1990 é capaz de fazer surgir o seu antídoto (ainda que parcial), ou seja crescente número de regras e decisões que criem um chamado "direito empresarial público global". Esse fenômeno aparece como uma nova realidade na medida em que poderá levar à aplicação de um grupo de regras provenientes dos países mais afetados pela globalização (do sul global) nas jurisdições dos países protagonistas dessa globalização (o norte global).

É possível então tentar responsabilizar as grandes empresas transnacionais em suas sedes. Instrumentos jurídicos para a construção desse direito global já existem. Essa possibilidade se tornou mais próxima no século 21, sobretudo a partir da rejeição por cortes europeias, baseadas em diferentes regulamentos da comunidade europeia, da aplicação da chamada exceção de forum non conveniens(em movimento oposto portanto ao norte americano). Assim por exemplo a regulamentação EU conhecida como Roma II[4] permite a aplicação do direito estrangeiro em matéria de obrigações não contratuais — que inclui danos decorrentes de descumprimento de regras concorrenciais. Esse regulamento permite que o direito do local onde foi causado o prejuízo (o direito brasileiro, por exemplo) possa ser aplicado em demandas concorrenciais ou da esfera econômica em geral, trazidas a cortes europeias,

A reação portanto é nada mais do que natural. Buscar responsabilizar as matrizes dos grandes monopólios transnacionais pelos prejuízos causados ou impedir que empresas brasileiras transfiram suas sedes ou principais locais de tomada de decisões para outros países para fugir às suas responsabilidades decorrentes das leis concorrenciais brasileiras, fazendo com que devolvam às vítimas o produto de eventuais abusos praticados.

O efeito dessa direito econômico global é, portanto, o de aumentar a força e escopo geográfico de aplicação do direito dos países do sul global quando são vítimas de abusos e danos na esfera concorrencial, econômica ou ambiental. O resultado portanto é a extensão transnacional da aplicação de nosso direito.

Ocorre aí também um paradoxo que se bem aproveitado pode ser eficiente para o estabelecimento desse direito casuístico global em matéria econômica. O mesmo movimento de globalização e procura desenfreada de maximização dos lucros tem gerado uma globalização financeira, com as empresas transacionais buscando locais com menos carga tributária para manter seus ativos ou investimentos. Essas jurisdições, ainda que não necessariamente da matriz da empresa transnacional podem aceitar julgá-la, pela mera existência de relevante parcela do patrimônio investida em subsidiária local. Essas jurisdições podem também ter mais disposição e menos pressões para avaliar e julgar o comportamento dos grandes grupos transnacionais. É o que tem ocorrido recentemente com as Cortes Holandesas, chamadas a julgar casos relevantes de "direito empresarial público global" (inclusive casos brasileiros envolvendo responsabilidade extracontratual e direito concorrencial) pelo fato de a Holanda ter se tornado sede de algumas relevantes subsidiárias financeiras de grandes grupos europeus e internacionais. Enfim se é verdade que as pressões e a influência jurídica do poder econômico crescerão, também é verdade que aumentarão as possibilidades de um busca global e virtuosa de jurisdições céleres e prontas a bem avaliar e julgar os grandes malfeitos econômicos globais.

Mas essa nova janela de expansão do direito antimonopólio brasileiro está sujeita ela também a limitações de eficácia. Soluções compensatórias (como indenizações) passam longe de poder resolver os problemas de funcionamento do sistema jurídico local, o que não dizer então do global. Assim eventual responsabilização global de empresas é apenas um primeiro passo. De nada adiantará se não for capaz de gerar mudanças estruturais internas e externas nas empresas e grupos econômicos transnacionais. Isso só pode ser feito através de um sistema que, para além de impor indenizações, seja capaz de introduzir mudanças estruturais. Não é possível pensar em luta contra monopólios e cartéis sem medidas estruturais corajosamente adotadas. Esse é o maior desafio de qualquer disciplina, local ou global, dos monopólios.


[1] Cf. BORGES, Rodrigo Fialho. Descontrole de Estruturas: dos objetivos do antitruste às desigualdades econômicas. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2020.

[2] Outros temas de condutas, como integrações verticais ou abuso de poder econômico, são simples e infelizmente quase que por inteiro desconsiderados por nossas autoridades concorrenciais já há muito tempo.

[3] Tentei alertar para esses efeitos mais largos dos monopólios em diversos escritos – v. v.g. Direito concorrencial, São Paulo, Malheiros, 2.013, p. 19 e ss. (capítulo I, item II – “O poder econômico e seus múltiplos efeitos nas esferas social e econômica: monopólios e subdesenvolvimento”). Não parece no entanto que esse tipo de alerta tenha tido grande repercussão até agora em nosso controle das estruturas, invadido, repito pelo mito da eficiência .

[4]  A chamada  Rome II Regulation é a Regulation EC n. 864 de 11 de julho de 2.007 sobre o direito aplicável a obrigações não contratuais. Tais obrigações são as ali previstas (com certas exclusões)  e a regulamentação tem  como objetivo exatamente unificar as leis nacionais em matéria de conflito de leis em torno do princípio “lex loci delicti comissi” (v. considerandos 7 e 15)

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