Opinião

O que os casos Mari Ferrer e Ângela Diniz dizem sobre Justiça e violência de gênero

Autores

  • Vitória de Macedo Buzzi

    é advogada criminalista sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados secretária-adjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Ministério de Direitos Humanos mestranda em Direito na UnB e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas — Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.

  • Marina Amaral de Lima

    é estudante de Direito na Universidade de Brasília e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas — Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos vinculada à Faculdade de Direito da UnB.

9 de novembro de 2020, 17h23

Ângela Diniz é descrita por seus amigos mais próximos como uma pessoa sedutora, eletrizante, de espírito livre [1]. Nascida em Minas Gerais no ano de 1944, casou-se com o engenheiro Milton Villas Bôas aos 18 anos e, ao perceber-se numa armadilha de convenções sociais que a aprisionavam, desquitou-se do marido pouco tempo depois. Depois disso, as polêmicas em que se envolveu ficaram cada vez mais inflamatórias. Após mudar-se para o Rio de Janeiro na tentativa de recomeçar sua vida e restaurar sua reputação, via-se marcada por seu passado controverso — o qual se resume bem pelo apelido dado a ela nas colunas sociais dos jornais da época: "a pantera de Minas". Seu maior crime, aos olhos da sociedade, era ser livre; se relacionava com diversos homens (alguns deles casados), se vestia com roupas chamativas e decotadas, falava o que lhe vinha à cabeça.

Foi exatamente em razão deste crime que Ângela restou condenada ao escrutínio e à humilhação pública durante o primeiro julgamento de Doca Street, seu então companheiro e assassino confesso. Em 30 de dezembro de 1976, durante uma viagem do casal a Búzios (RJ), Raul Fernando do Amaral Street — o Doca —, em meio a uma briga, sacou sua pistola e deu quatro tiros em Ângela, matando-a quase instantaneamente; apesar de haver inicialmente fugido da polícia, Doca resolveu confessar o crime em "comovente" entrevista para a Rede Globo de televisão, demonstrando arrependimento e intenso sofrimento após o fato, visto que, em suas próprias palavras, "amava muito a Ângela".

A narrativa construída por Doca teve repercussão largamente positiva com o público geral, que o via como vítima dos encantos da perigosa pantera, cuja libertinagem teria levado-o ao extremo, não havendo alternativa para a preservação da honra do rapaz que não fosse a morte de sua ardilosa e pouco confiável companheira. É precisamente nessas supostas "falhas de caráter" de Ângela que o advogado de Doca, Evandro Lins e Silva, baseou a maior parte de sua argumentação perante o Tribunal do Júri da comarca de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro, durante o primeiro julgamento do caso no ano de 1979. Aqui estão alguns trechos da fala de Evandro nesta ocasião, referindo-se à vítima do homicídio [2]:

"Ela não podia admitir certos princípios. Ela queria a vida livre, libertina, depravada, senhores jurados! (…) Ela provocou, ela levou a este estado de espírito, este homem que era um rapagão, um mancebo bonito, um exemplar humano belo, que se encantou pela beleza e pela sedução de uma mulher fatal, de uma Vênus lasciva".

Apesar de, nos dias atuais, esse discurso aparentar ser antiquado e obsoleto, bastam algumas mudanças vocabulares para associá-lo perfeitamente ao que é dito pelas defesas nos tribunais sobre mulheres vítimas de violência de gênero — especialmente no âmbito de um relacionamento íntimo — no intuito de inocentar os homens acusados. O exemplo mais recente ganhou enorme repercussão nacional: durante a audiência presidida pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal da comarca de Florianópolis, nos autos da ação penal em que é réu André de Camargo Aranha, acusado de drogar e estuprar Mariana Ferrer em 2018 [3], o telespectador tinha a impressão de que o que estava em julgamento, na verdade, era o caráter e a vida pessoal da vítima.

O advogado de André, Cláudio Gastão da Rosa Filho, é visto na gravação humilhando Mariana — única mulher presente na audiência —, enquanto o juiz da causa e o promotor do Ministério Público de Santa Catarina, Thiago Carriço de Oliveira, assistem silentes à nova violência sofrida pela vítima. Esta, em meio às lágrimas, se vê obrigada a implorar por respeito diante da brutalidade da fala do advogado, no que o juiz se limita a pedir que este mantenha um "bom nível" em sua arguição. Destaca-se a seguir algumas das crueldades proferidas por Cláudio Gastão da Rosa Filho durante a audiência:

"E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. (…) E não dá pra dar o teu showzinho. Teu showzinho você vai lá dar no Instagram depois, pra ganhar mais seguidores. Tu vive disso. Mariana, vamos ser sinceros, fala a verdade. Tu trabalhava no café, perdeste o emprego, estás com aluguel atrasado sete meses, eras uma desconhecida. Vive disso. Isso é seu ganha-pão, né, Mariana? A verdade é essa, não é? É seu ganha pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem. (…) Só pra mostrar essa última foto que ela mandou o defensor público juntar, que ela diz que foi manipulada. Essa foto aqui foi extraída do site de um fotógrafo, onde a única foto chupando dedinho é essa aqui. E com posições ginecológicas, é só a dela. (…) Essa foto não tem nada de mais. Mas porque você apaga essas fotos, Mariana? E só aparece essa tua carinha chorando. Só falta uma auréola na cabeça. (…) Não adianta vir com esse teu choro dissimulado falso e essa lágrima de crocodilo" [4].

Seguindo, talvez inconscientemente, os passos de Lins e Silva, Gastão Filho busca de forma impiedosa descreditar a narrativa da vítima perante a autoridade judiciária, condenando-a por ser demasiado bonita, sensual, ou por fazer poses "ginecológicas" nas fotos levadas pela defesa para comprovar suas teses. Com isto, apela para a "lógica da honestidade"[5]: a de que ela teria sido a verdadeira responsável pelo crime do qual é vítima, porque levou o agressor a violentá-la ao expressar sua sexualidade; ou que, por se vestir ou se portar de determinada forma, não merece ser levada a sério; ou, ainda, que esses mesmos comportamentos sociais "inadequados" demonstram suas más intenções em acusar o réu, buscando destruir sua imagem e reputação apenas para lucrar com a fama.

A acusação mostrou-se conivente com o mesmo discurso. Manteve-se inerte diante das ofensas graves proferidas pela defesa do réu e, com isso, renunciou seu papel institucional de prezar pelo cumprimento da lei e pela observância dos direitos da vítima. É inegável, ante o comportamento do promotor Thiago Carriço, que Mariana Ferrer foi verdadeiramente abandonada pelo Ministério Público durante a audiência — por não se enquadrar na moral sexual esperada da mulher, a vítima foi sumariamente excluída do âmbito de proteção penal.

O juiz, da mesma forma, ao assistir passivamente ao desenrolar de eventos na audiência, validou o comportamento inescusável da defesa perante a vítima, reforçando a lógica patriarcal que julga e condena a mulher que não se conforma à moral sexual dominante. Rudson Marcos oferece água à vítima, enquanto ela implora por respeito. De forma reiterada, interrompe Mariana durante a audiência, até mesmo quando sua única intenção era tirar dúvidas sobre sua defesa técnica, e não se incomoda com a sucessão de constantes humilhações sofridas pela vítima.

Já nos quatro primeiros minutos da audiência, os quatro homens presentes na audiência conseguem fazer a vítima de violência sexual chorar. Mariana é a única acusada de tumultuar a audiência, enquanto Cláudio Gastão Filho continuamente revira os olhos, bate na mesa e ofende, interrompe e questiona a integridade do seu depoimento de vítima. Mariana parece um incômodo a ser tolerado pelo promotor, pelo magistrado, pelo defensor e pelo advogado do réu. Nenhuma agressão do advogado parece incomodar os outros presentes, enquanto nenhuma resposta de Mariana parece satisfazer as violentas indagações da defesa de André Aranha.

O tratamento dispensado a André Aranha é outro. Com paciência e educação — o mínimo que se espera —, o magistrado explica os direitos do réu, relembra os fatos e menciona a importância de poder ser ouvido em audiência. O réu dá a sua versão do caso, puxa detalhes que pouco ou nada se relacionam com o crime apurado, fala da família em sofrimento, dos contratos que perdeu depois da denúncia, dos remédios — "tudo natural" — que agora precisa tomar. Faz um discurso apaixonado de como a vítima está "acabando com a sua vida". Acusa Mariana de ser mentirosa, gângster, maluca. Interrompe o juiz diversas vezes sem ser censurado; não é interrompido nenhuma vez durante seu discurso final.

Assim como no julgamento de Doca Street, a melhor estratégia da defesa de André Aranha é ser ele próprio um homem de bem; ambos são homens cisgêneros, brancos, heterossexuais, ricos, herdeiros de famílias influentes na alta sociedade. André não se enquadra no estereótipo de estuprador construído no imaginário popular ou no discurso judicial [6], da mesma forma que Doca não se enquadra no de homicida. E homens de bem não estupram e não matam. São vítimas de mulheres interesseiras, de vênus lascivas, de mentirosas. As defesas de ambos exploraram à exaustão as supostas falhas de caráter das vítimas, que aparecem como mulheres ardilosas que tentam manchar a honra de bons rapazes. E, mesmo que 40 anos separem os casos, o Judiciário segue comprando tais narrativas enquanto coloca no banco dos réus o comportamento das mulheres vítimas de violência de gênero.

Mais doloroso é pensar que há centenas de outras como Ângela e Mariana, cujas identidades, contudo, sucumbem ao anonimato; uma a uma, tornam-se meras cifras nas estatísticas, exemplos desconhecidos de crimes brutais, e casos-paradigma da jurisprudência da impunidade que serve apenas aos interesses de seus agressores nas cortes do país.

 


[1] As informações descritas neste artigo acerca do caso de Ângela Diniz foram obtidas por meio do podcast "Praia dos Ossos", produzido pela Rádio Novelo. As transcrições dos episódios estão integralmente disponíveis no site oficial da produtora, em <https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/>.

[2] Cabe destacar que Evandro Lins e Silva teve sucesso em descaracterizar as alegações de homicídio e convencer os jurados a condenarem Doca Street por "excesso culposo de legítima defesa", havendo o juiz fixado pena de dois anos de reclusão (cuja aplicação foi suspensa). Apenas depois da anulação deste julgamento e da instauração de um novo júri anos depois, Doca foi condenado por homicídio qualificado, com pena de 15 anos de reclusão.

[3] As informações descritas neste artigo acerca do caso de Mariana Ferrer foram obtidas por meio de matéria publicada na último terça-feira (3/11) no jornal The Intercept Brasil de autoria de Schirlei Alves. Tanto o vídeo citado quanto a reportagem podem ser acessados na íntegra em <https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/>. 

[4] A íntegra do vídeo da audiência no caso Mariana Ferrer está disponível em <https://youtu.be/P0s9cEAPysY>.

[5] Vera Andrade (2003) e Giovana Rossi (2016) explicam que durante muito tempo a expressão "mulher honesta" constituiu elemento normativo do tipo penal de estupro, fazendo com que apenas a mulher que se encaixasse nas rígidas normas morais sexuais fosse merecedora da proteção estatal. As mulheres desonestas eram sempre acusadas de terem gostado, forjado ou provocado o estupro. A lógica da honestidade, portanto, consiste em um processo de seletividade baseado na reputação sexual da vítima.

[6] Giovana Rossi (2016, p. 80) menciona, citando estudo no qual foram analisados 53 processos judiciais de casos de estupro, que o "estuprador modelar é constituído pelas imagens de um homem doente, mentalmente perturbado e emocionalmente desequilibrado e que esse desequilíbrio também deve se manifestar em seu comportamento social, em suas relações no seio da família, na incapacidade para o trabalho e em sua ficha policial".

Autores

  • é advogada, secretária-adjunta da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Ministério de Direitos Humanos, mestranda em Direito na UnB e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas —Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.

  • é estudante de Direito na Universidade de Brasília e integrante da clínica de direitos humanos Cravinas — Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos, vinculada à Faculdade de Direito da UnB.

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