Opinião

Comentários sobre a responsabilidade estatal objetiva

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9 de novembro de 2020, 9h13

Consabidamente, os princípios vetores de tal espécie de responsabilidade já estão bastante sedimentados, não apenas eu seu marco constitucional, oriundo das CF/46, artigo 194; 67, artigo 105; EC 01/69, artigo 107 e 88, e artigo 37, §6º.

Comparando tais preceitos, verifica-se a amplitude normativa do último em relação aos anteriores, aspecto plenamente justificável, pois, no curso do tempo, o Estado brasileiro cresceu, desenvolveu-se e, naturalmente, também os eventos resultantes da atuação de seus agentes, nesta qualidade, por vezes geradora de danos a terceiros; tanto quanto aumentou a sua ação através da Administração indireta, a recomendar a extensão do instituto, às suas respectivas longa manus de Direito privado.

Com efeito, o §6º do artigo 37 prescreve: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Aí está a regra-matriz que disciplina, atualmente, a responsabilidade objetiva dos entes mencionados por danos causados por agentes seus, nessa condição, a terceiros.

Note-se que a inexigibilidade de demonstração de culpa do agente causador do dano constitui seu elemento diferenciador, essencial, daí ser chamada de objetiva, em oposição à responsabilidade civil subjetiva, tradicional, regida, primordialmente, pelo nosso Código Civil, que pressupõe culpa lato sensu, resultante da ação ou omissão causal, além dos demais requisitos, em regra comuns, que informam as duas espécies obrigacionais. Como assinalam doutrinadores em obras específicas, dentre eles o saudoso professor Wilson Melo da Silva, "a paz social, a solidariedade, o bem comum e a equidade" constituem seus elementos basilares.

A atuação estatal, por princípio, é desenvolvida em prol de todos, da comunidade, se daí resulta dano a um ou mais de seus membros, que não concorreram, culposamente, para tanto, justifica, sem dúvida, partilhar, solidariamente, o prejuízo com toda a sociedade, pois não seria justo que apenas a(s) vítima(s) arcasse com o respectivo ônus, material e/ou moral. Aí está, diríamos, o substrato finalístico, a ideia de justiça, de equitatividade, que permeia referida espécie obrigacional.

Inovando, a norma em foco introduziu as pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público, sob os princípios que norteiam tal responsabilidade sem culpa. Como se sabe, UF, Estados, municípios e respectivas autarquias constituem as pessoas jurídicas de direito público, cujos serviços são, por natureza ou definição, igualmente públicos, sendo prestados diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, cf. artigo 175/CF. As fundações públicas, por extensão, equiparam-se aos entes autárquicos, recebendo no ponto, igual tratamento.

Além de autarquias e fundações, existem na Administração indireta, empresas públicas e sociedades de economia mista, com natureza jurídica de direito privado, cujos objetivos consistem na exploração de atividades econômicas, dispondo o inciso II, §1º, artigo 173 da mesma carta que sujeitarem-se "ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Embora o fim precípuo a que se destinam seja econômico, lucrativo, de concorrência no mercado, é comum, ao lado disso, exercerem parcela, às vezes ponderável, de serviço público, propriamente, por delegação.

Não é difícil identificar, por exemplo, nas atividades de CEF, BNDES, BB, Petrobrás etc. prestação de serviços públicos, a par de suas atividades normais, privadas. Em consequência, quando preposto seu, em tal situação, causar a outrem dano indenizável, para saber se se aplicam ou não os princípios que informam a responsabilidade objetiva será necessário definir, previamente, a natureza do serviço por ele desenvolvido, quando tal ocorreu, se público ou não. Na hipótese negativa, a obrigação reparatória sujeitar-se-á aos princípios subjacentes à responsabilidade subjetiva, que supõe, além dos demais elementos típicos, que a ação ou omissão tenha sido culposa ou dolosa. A inovação constitucional, como se observa, a despeito de sua importância, requer atenção do intérprete para evitar até mesmo inconstitucionalidade na sua aplicação. O §6º só se aplica às pessoas jurídicas de direito privado, de forma excepcional, estrita, quando prestarem serviços públicos e daí resultar o dano a ser reparado. Na atividade normal para a qual foram criadas, tendo em vista suas finalidades básicas, levando-se em conta princípios que emergem da mesma Carta Magna, suas responsabilidades por atos lesivos a direitos de terceiros deverão ser definidas sob influxo do direito privado, quais sejam, os princípios que orientam a responsabilidade subjetiva, civilista, que pressupõe, entre outros elementos a gerar obrigação de indenizar, que a conduta do autor do dano tenha sido culposa, no sentido amplo.

É oportuno observar ainda que o preceito em foco vincula, nos termos que nele se contém, as pessoas  jurídicas ali referidas e terceiros, ou seja, não se aplica, a nosso ver, para disciplinar o cumprimento de obrigação entre elas, significa dizer que, se um agente da UF, por exemplo, em tal condição, causar um dano a um Estado-membro, ou vice-versa, a responsabilidade deverá ser apurada não sob os princípios da teoria objetiva, na variante do risco administrativo, entre nós adotado, mas, sim, pelas regras que disciplinam a responsabilidade civil subjetiva, inscritas, basicamente, no CC, artigos 186, 927, 942 e seguintes. Assim deve ser, não só levando-se em conta a literalidade da norma que menciona terceiros, o que denota não se tratar das pessoas jurídicas nela referidas, adicionando o fundamento equitativo, teleológico, consistente na divisão dos ônus e encargos sociais que subjaz à espécie objetiva em apreço, resultantes do atuar estatal que prejudique ao particular, o qual deixaria de existir quando a vítima fosse outro ente, porém entre um daqueles relacionados em tal preceito. Ou seja, por exemplo, um veículo de um município colide com veículo de outro ente público, a reparação do dano haverá de ser composta por quem ocasionou o evento, sob o influxo dos princípios subjetivistas, pois tal situação refoge, não só à letra, mas, sobretudo, ao propósito do §6º.

Também o dano moral que resultar para a vítima, oriundo da conduta do agente público, em tal condição, será indenizável, aplicando-se os mesmos princípios, recordando-se que a CF, mais uma vez inovando, previu-o ao lado do material, no item V do seu artigo 5º, bem como 186 do CC,  tendo a jurisprudência do STJ, por sua vez, previsto ser possível sua cumulação em decorrência do mesmo fato e que a pessoa jurídica também pode sofrer aquele dano — Súmulas 37, 227 e 387, respectivamente.

É abundante a casuística a respeito. No Tema 592 (RE 841.526), o STF assentou a tese: "Em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, XLIX, da CF, o Estado é responsável pela morte de detento. In casu, o tribunal a quo assentou que inocorreu a comprovação do suicídio do detento, nem outra causa capaz de romper o nexo de causalidade da sua omissão com o óbito ocorrido, restando escorreita a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal".

Tema 671 (RE 724.347) — tese: "Na hipótese de posse em cargo público determinada por decisão judicial, o servidor não faz jus a indenização, sob fundamento de que deveria ter sido investido em momento anterior, salvo situação de arbitrariedade flagrante".

Escusado lembrar da importância social do instituto em apreço, cujas balizas devem sempre ser recordadas, incluindo o respectivo progresso hermenêutico, considerando o seu expressivo relevo na ordem jurídica.

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