Opinião

O impacto jurídico da alta do IGP-M nos contratos imobiliários

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8 de novembro de 2020, 15h12

Segundo a última divulgação da Fundação Getúlio Vargas, o IGP-M, conhecido índice de correção inflacionária, acumula alta de 20,92% nos últimos 12 meses. Apenas no mês de outubro, o aumento foi de 3,23%. No mesmo período, outros índices muito utilizados no mercado, como o IPCA (IBGE), o INPC (IBGE) e o IPC (Fipe), acumularam altas de 3,14%, 3,85% e 4,34%, respectivamente, ou seja, resultados muito mais baixos do que o IGP-M.  

Esse fenômeno de descolamento entre os índices é justificado pela diferença entre as metodologias empregadas. Enquanto o IPCA considera nove categorias de produtos e serviços e tem como meta refletir os hábitos de consumo de 90% das pessoas que vivem em 16 cidades do país, o IGP-M leva em consideração também os preços de produção como matérias-primas, commodities e materiais de construção, entre outros. Esses produtos que pesam no método de apuração do IGP-M, muitas vezes, são influenciados pela cotação do dólar, que acumula alta de 40,679% em relação ao real no ano de 2020. 

Temos recebido nas últimas semanas muitos questionamentos sobre o impacto da expressiva alta do IGP-M nos contratos imobiliários, como a locação e a compra e venda. Evidentemente, cada caso deve ser analisado de forma individualizada, contudo, de um modo geral, temos defendido que a aplicação do índice seja flexibilizada e negociada com a outra parte. Nessa negociação estimulamos que as partes adotem um critério financeiro que melhor se ajuste ao caso concreto. Entre as alternativas que entendemos razoáveis estão:  

— Aplicar somente parte do resultado do IGP-M neste momento, deixando a parte remanescente para nova análise após 12 meses, avaliando se o descolamento continua ou não;

— Adotar uma média entre o IGP-M e outro índice que se mostre razoável para o caso concreto; ou

— Não aplicar o reajuste neste momento, postergando-se para um momento posterior à vacina para a Covid-19 a apuração da variação do IGP-M, ocasião em que haveria reajuste retroativo. 

Veja-se que não se está aqui propondo que o IGP-M não é um índice confiável de reajuste contratual. Inclusive, não temos sustentado que a simples substituição do índice seja um caminho razoável. Ocorre que ele se propõe a avaliar o cenário de inflação de um contexto relativamente similar ao de outros índices que apresentam resultados muito menores. Fosse, por exemplo, um contrato ligado diretamente à construção civil corrigido pelo Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) e houvesse uma alta neste índice específico não apurada em outros indicadores ligados ao consumo, nosso entendimento possivelmente não seria o mesmo, exceto se tal descolamento fosse identificado em relação a outros índices de construção civil.  

Talvez o IGP-M seja o índice que melhor reflita o reajuste de um contrato agrário e não seja justo desconsiderar essa alta num contexto contratual onde a alta do dólar e o valor de commodities sejam tão marcantes. À primeira vista, soa justo que um arrendamento rural a preço fixo em que o arrendatário vendeu sua mercadoria se aproveitando da alta de 40% no dólar tenha uma correção de 20% em 2020. As partes contratantes, todavia, não deveriam se furtar de conversar sobre o tema e buscar uma solução customizada, sendo possível que o arrendatário, neste mesmo cenário hipotético, comprove que o custo de produção teve um aumento na mesma proporção do aumento de preço. 

Ao sugerir a negociação estamos, na mesma medida, sinalizando que a intervenção do Poder Judiciário não nos parece a melhor alternativa para dar uma solução ao caso concreto. A experiência demonstra que o Judiciário, em causas com conteúdo jurídico repetitivo, muito embora contextos fáticos peculiares, tende a replicar soluções uniformizadas com base nos precedentes dominantes.  

Isso se identificou, por exemplo, na enxurrada de ações judiciais postulando a redução do aluguel durante as medidas administrativas restritivas empregadas pelos municípios brasileiros durante o pico da pandemia. Aos poucos, consolidou-se uma forte tendência do Judiciário de reduzir em 50% o valor do aluguel nos casos em que o inquilino demonstrou ter sido afetado pela ordem municipal de fechamento. Talvez as particularidades de determinado caso indicassem que o desconto mais apropriado seria de 20% ou de 70%, mas essa análise pormenorizada restou muito dificultada em meio ao universo de demandas similares.  

A discussão judicial sobre índices de correção nos contratos imobiliários não é novidade, sendo capaz de gerar demandas massificadas nesse setor. Uma questão recorrente é verificada nos contratos de promessa de compra e venda de unidades a serem construídas ("imóvel na planta"), onde as incorporadoras buscavam corrigir todas as parcelas pelo INCC e os compradores passaram a ingressar em juízo pleiteando a substituição do índice por outro mais vantajoso, como IPCA ou IGP-M, após a conclusão da obra ou após a data prevista para término da obra, tendo se formado forte jurisprudência favorável a essa tese, a ponto de que a maioria das construtoras já promoveu essa alteração nos contratos. Possivelmente esses mesmos contratos sejam novamente questionados pelos compradores para se evitar a incidência do IGP-M sobre o saldo devedor incidente pós conclusão da obra. 

Quanto maior a resistência das partes contratantes em sentar para negociar uma solução para esse impasse, maior as chances de o Judiciário ser novamente invocado para intervir nos contratos. Nosso receio é que na eventual geração de nova demanda massificada questionando o reajuste pelo IGP-M nos contratos imobiliários se forme uma jurisprudência que decida os casos de modo uniforme e prejudique as negociações que ainda estão por vir. Nessa hipótese, a parte contratante que tiver um bom argumento para sustentar uma tese diferente da que vier a ser adotada pelo Judiciário talvez acabe tendo de se dobrar à mesma.

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