Opinião

O equívoco na punição do agente público só por violação de princípios

Autor

  • Fernando Fukassawa

    é advogado promotor de justiça aposentado em São José do Rio Preto (SP) foi secretário de Negócios Jurídicos diretor jurídico da Câmara Municipal secretário de Habitação e professor de Direito Administrativo e Direito Penal em duas Universidades.

8 de novembro de 2020, 7h12

Na ausência de enriquecimento ilícito do agente ou de dano ao erário, a punição da improbidade administrativa por violação de princípios da Administração Pública (artigo 11 da Lei nº 8.429/92) tem ensejado infindáveis controvérsias no âmbito da doutrina e da jurisprudência. Talvez no momento de escrever a norma não tivessem se lembrado de que lei de tipicidade aberta, com comando de conteúdo incompleto, sem definir o que fosse ato ímpobro (núcleo do tipo), propicia o fechamento dos caracteres da conduta proibida segundo o critério de quem a interpreta, reduzindo a zero a sua função de garantia. E considerando-se que o princípio tem estrutura aberta e espectro mais amplo que a regra, de conteúdo semântico fechado, sempre foi necessário, em caso de discutida violação a um princípio, recorrer a um trabalho quase insano de busca da proporcionalidade, da lógica do razoável, das relações de congruência entre os valores prestigiados pela norma.

Há tentativas de alteração da lei mediante supressão daquele dispositivo porque qualquer violação de princípio da Administração Pública se enquadraria como ato de improbidade administrativa e haveria abuso no ajuizamento de ações. Por outro lado, argumenta-se, tal ato não poderia restar impune e, assim, a sua persecução poderia se dar com base na Lei de Ação Popular e na Lei da Ação Civil Pública. Há sugestão também de criação de hipóteses taxativas de ato de improbidade administrativa em razão de violação de princípios, de modo que apenas poderia ser ele imputado ao agente público em caso de enquadramento taxativo, proporcionando segurança jurídica às relações e evitando que fossem propostas ações eventualmente arbitrárias [1].

A punição do agente público com base nessa lei — destaque-se, só por violação de princípios da Administração Pública (artigo 11), notadamente pela gravidade das sanções  é equivocada. No que pertine à conduta do agente, a tutela jurídica da probidade administrativa já se efetiva por leis que disciplinam os seus direitos e deveres funcionais, prevendo sanções desde advertência à demissão, descontos na remuneração, indisponibilidade de bens e reparação de danos etc., como são os estatutos jurídicos emanados do respectivo ente federativo dentro de sua competência. Trata-se, portanto, de questão afeta à Administração Pública, que tem o poder hierárquico de punição do servidor. A previsão de punição de uma mesma improbidade administrativa em duas esferas (administrativa e judicial) pode apresentar alguma incongruência porque a Lei nº 8.429/92, mais grave e mais rígida nas penalidades, nada dispõe, por exemplo, sobre advertência e suspensão do agente público, evidenciando-se aí a maior flexibilidade das sanções sistematicamente previstas nas leis disciplinares.

Decadente a cultura do litígio, substituída pela nova ordem de primazia e concentração de forças em questões de maior importância, o Poder Jurisdicional ou o Ministério Público não deveriam se ocupar em apurar e punir faltas funcionais só por violação de princípios, pois elas são adequadamente analisadas e resolvidas no âmbito administrativo-disciplinar. A probidade administrativa, em vez de ser tutelada pelo Judiciário, é autotutelada pela Administração Pública, que pode impor sanções que, em alguma semelhança com aquelas da lei de improbidade administrativa, não têm natureza penal. Consubstanciam essas normas de regime jurídico do servidor, de técnica de coerção do poder público e parcela do vasto poder hierárquico atribuído à Administração Pública que tem o privilège d´action ou d'exécution d'office em apurar faltas funcionais e, se for o caso, lhe aplicar a sanção administrativa correspondente. Ajunta-se o privilège du prèalable para formar um conjunto de poderes que à Administração, no exercício da autotutela, lhe possibilita decidir, impor unilateralmente penalidades ao servidor faltoso e executá-las, vale dizer, sem necessidade de se dirigir anteriormente ao juiz.

Não se põe à discussão a independência das instâncias (civil e administrativa). No Direito Administrativo, as suas regras se fundamentam no poder público que é marcado pela natureza autoritária da Administração, e no serviço público que identifica a sua natureza institucional. Reafirma-se, assim, que o poder público disciplinar é fundamentado na teoria da instituição, dotada dos meios coercitivos próprios e adequados à missão autorizada pelas regras constitucionais. Ademais, o Poder Jurisdicional, pela sua superior importância política e social, e por sua notável envergadura constitucional, não deve ser impulsionado para desempenho de tarefa administrativa em substituição ao Poder Executivo na sua atividade disciplinar e punitiva. A função jurisdicional não deve ser desvirtuada, e nem o juiz deve exercer a gerência da Administração Pública.

Talvez a punição da improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429/92 se justificasse de forma residual em caso de omissão do órgão disciplinar a que sujeito o agente público porque o privilégio da Administração em sancionar é irrenunciável, e as prerrogativas das quais é beneficiária são de interesse geral. E, pela vedação decorrente do princípio constitucional da separação dos poderes independentes e harmônicos (artigo 2º, CF), a via judicial pode e deve ser utilizada somente e quando a Administração se quedar inerte ou não puder fazê-la ela própria no uso de suas prerrogativas decorrentes da puissance publique, no que se constituiu a essência do Direito público.

 


[1] Acácia Regina Soares de Sá, ConJur, 4/11/2020

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