Opinião

O impacto da Covid-19 nos contratos comerciais sino-brasileiros

Autor

  • Giselle Farinhas

    é presidente da Comex OAB RJ membro consultora da CNRBC da OAB Nacional diretora do CM da FCCE diretora da CERBC da OAB-RJ sócia do Giselle Farinhas Advogados advogada autora de livros e docente.

8 de novembro de 2020, 6h34

Diante da eclosão da pandemia da Covid-19, revela-se imprescindível pontuar os efeitos jurídicos que impactaram os contratos comerciais sino-brasileiros.

Desde o início do ano corrente, a comunidade internacional se deparou com um drástico desafio a ser enfrentado, denominado Covid-19, causado pelo vírus SARS-CoV-2, com origem em território chinês, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como pandêmico e definido como um vírus letal e altamente contagioso.

Nesse sentido, a necessidade de tutela do bem da vida e da saúde humana tornou-se a principal preocupação mundial, fazendo com que se adotasse uma nova postura internacional com o escopo de regulamentar as relações comerciais nesse período. De certo, inúmeros contratos comerciais foram abalados pela nova sistemática protetiva no comércio globalizado, principalmente pelas políticas restritivas do comércio exterior, que impactaram, frontalmente, o cumprimento dos contratos firmados anteriormente ao advento da pandemia.

Em um cenário em que a China é o principal parceiro comercial do Brasil, sem dúvidas, os impactos nos contratos comerciais foram significativos e inevitáveis. Nesse cerne, imperioso se faz elucidar a temática exposta apresentando os pontos de mais relevância que tangenciam as consequências jurídicas aos contratos comerciais sino-brasileiros.

A Covid-19 afetou, imediatamente, os contratos internacionais que dependem da exportação e da importação de produtos para o pleno funcionamento de suas atividades. A decretação da pandemia pela Organização Mundial de Saúde ocasionou a emissão de uma série de recomendações às políticas sanitárias protetivas internacionais, com o escopo de controle da disseminação da doença. E, por ter tido sua origem na China, esta foi a primeira a ser afetada, vez que, com a adoção do isolamento social, a maioria das empresas com atividades não essenciais, passou a não funcionar, deixando de produzir ou, mais adiante, pouco produzindo, de forma a inviabilizar o cumprimento da demanda contratada anteriormente a pandemia. Em outro plano, até mesmo a necessidade interna de produtos dos quais a China é a principal consumidora, como o arroz e a soja, por exemplo, teve o seu abastecimento reduzido e até inviabilizado.

Diante dessa surpreendente e inevitável realidade, vieram as dúvidas jurídicas sobre de que forma a legislação trataria do tema, conforme passa-se a esclarecer.

Preliminarmente, cumpre esclarecer que deve-se observar o direito regente ao qual o contrato comercial internacional se faz submetido para que se elucide a solução mais adequada ao caso. A legislação contratual chinesa, em seu artigo 94 (I), admite o advento da resolução contratual por força maior, por qualquer das partes, que impossibilite a execução do contrato.

A Lei de Contratos chinesa, em seu artigo 117, define que força maior consiste nas circunstâncias objetivas que sejam, cumulativamente, imprevisíveis, inevitáveis e intransponíveis. Nos termos do disposto no artigo 118 do referido diploma, cumpre à parte que ficou inviabilizada de cumprir a sua obrigação notificar a outra parte com o fito de reduzir prejuízos, bem como provar o requisito de força maior em período razoável. Essa prova de força maior passou a ser feita através da emissão de certificados de forca maior às empresas chinesas, expedidas pelo Conselho da China para a Promoção do Comércio Internacional.

Há de se destacar, no entanto, que a prova pré-constituída de emissão de certificados por forca maior, por si só, não significaria a excludente de responsabilidade pelo coronavírus. É importante, ainda, considerar que muitos contratos internacionais regem-se pela Convenção das Nações Unidas para a Venda Internacional de Mercadorias (CISG), adotada pela China desde 1988, que em seu artigo 79 prevê a possibilidade de exclusão da responsabilidade do inadimplemento em razão de fatores objetivos que transcendem as circunstancias subjetivas e particulares.

Em que pesem tais definições, a verdade é que não é a primeira vez que a China enfrenta uma epidemia viral e, em casos similares, a interpretação jurisprudencial da Suprema Corte do Povo foi no sentido de submissão a excludente de forca maior no caso de contratos inadimplidos por ocasião do surto, e aqueles que por efeito de atos administrativos restritivos, para fins de contenção da doença, restaram inviabilizados.

No Direito brasileiro, sob o espeque do artigo 317 do Código Civil de 2002, pode-se suscitar a aplicação, no caso de contratos comutativos de execução continuada ou diferida, da Teoria da Imprevisão, que preceitua que quando por motivos imprevisíveis sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, pode o juiz corrigi-la, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação. Admite-se, portanto, no Direito brasileiro a revisão contratual.

Enquanto o artigo 478 do Código Civil brasileiro, inspirado nos artigos 1467 a 1469 do Código Civil Italiano, estabelece que nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.

Logo, segunda a leitura ipisis literis deste artigo, a legislação autoriza a resolução do contrato (extinção) sem exigibilidade de cumprimento. Vale salientar que, para fins de aplicação da Teoria da Excessiva Onerosidade, requer-se além dos requisitos exigidos pela Teoria da Imprevisão, a extrema vantagem para uma das partes e a excessiva onerosidade para o outro.

Nessa linha, por fim, no direito brasileiro ainda podemos evocar a Teoria do Fato do Príncipe, inspirada no Direito costumeiro francês, que consiste no ato de Estado, imperius, decorrente de decisão administrativa de autoridade legítima, que repercute em uma relação jurídica existente dando causa ou prejudicando o curso normal contratual autorizando, portanto, a sua resolução sem indenizações, a exceção sendo decorrente de ato ilegítimo e contrário à lei e à Constituição da República Federativa do Brasil.

Logo, neste cenário de pandemia, se a inviabilidade do cumprimento da obrigação decorreu de ato de Estado (restrição ou proibição de portos e aeroportos por exemplo), autorizada se encontra a resolução do contrato.

Portanto, conclui-se que, em que pese a legislação contratual brasileira ser congênere à chinesa quanto à possibilidade de resolução contratual, não se pode afirmar que sejam idênticas e tudo dependerá do direito aplicável ao contrato comercial inadimplido para se analisar qual a tese a ser sustentada pela solução mais acertada ao conflito de interesses instaurado por ocasião da pandemia. Sem dúvidas, no âmbito do Direito Internacional, os conflitos dos contratos comerciais podem ser dirimidos através da arbitragem desde que haja cláusula específica no contrato firmado pelas partes. Dessa forma, a análise jurídica do contrato vigente é necessária a determinação da estratégia jurídica mais adequada pela solução do conflito de acordo com o caso.

Autores

  • é advogada e sócia do escritório Giselle Farinhas Advogados, membro consultora da Coordenação Nacioal das Relações Brasil China no Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão do Comércio Exterior da OAB Barra da Tijuca e secretária adjunta da Coordenação Estadual das Relações Brasil China.

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