Embargos culturais

De verdade, do escritor húngaro Sándor Márai

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de novembro de 2020, 8h00

Spacca
Há uma perturbadora passagem no Evangelho de João (18:38). O acusado afirma ao acusador que veio ao mundo para falar a verdade. Intrigado, afinal, o acusador perguntou ao acusado o que seria a verdade. Esse intrigante diálogo entre Jesus e Pôncio Pilatos, além de colocar inúmeros problemas de teologia sistemática, indica-nos ainda várias questões de crítica literária, de interpretação bíblica e de hermenêutica processual. É também uma questão central na existência.

Filósofos e juristas preocupam-se com o tema da verdade. A verdade processual, esses últimos; a verdade existencial, aqueles primeiros. Michel Foucault (1926-1984) aproximou os dois campos e tratou do assunto ao longo de cinco conferências que proferiu no Rio de Janeiro (na PUC) entre 21 e 25 de maio de 1973. Para o filósofo francês cada época constrói suas formas de revelação da verdade. Inútil criticarmos os métodos de tortura da Inquisição. Era assim. Inútil criticarmos as confissões obtidas sob violência na prática judiciária grega. Era assim. As reflexões de Foucault estão em “A verdade e as formas jurídicas”, que a Nau publicou em 1996.

Transitamos no campo da interpretação, justamente porque toda interpretação é uma narrativa que se propõe verdadeira. A verdade, nesse sentido, resultante de uma narrativa, e que se multiplica na razão quase que direta do número de narrativas que há, é o fio condutor do fascinante romance “De Verdade”, de Sándor Márai (1900-1989)[1]. Trata-se de um dos mais expressivos autores de língua húngara. Márai viveu em Budapeste, cidade que abandonou por não compactuar com o domínio comunista que sobreveio ao fim da segunda guerra mundial, que viveu em toda sua dimensão trágica. Márai suicidou-se em San Diego.

Além do problema central da construção da verdade, quanto à interpretação dos fatos, o romance “De Verdade” pormenoriza as características de um mundo de rancores, de luta de classes, de desencontros, de opressão política. É um romance sobre a decadência da burguesia da Europa Oriental, uma narrativa sólida sobre a dissolução dos ideais do Império Austro-Húngaro, sepultado ao fim da primeira guerra. Conta-se que Márai levou quatro décadas para compor esse impressionante testamento da vida europeia.

Há quatro narradores. Principia-se com Ilonka, junto a uma amiga em um café. Ilonka vê, de longe, seu ex-marido, Peter. Conta a amiga sua versão do casamento, e do fim do casamento. Peter era distante, carregava um segredo imperscrutável. Era um homem insondável. Filho de um rico industrial, conduzia a fábrica que o pai lhe deixara. Metódico, organizado, cartesiano, frio, pragmático, não tinha sentimentos. Tiveram um filho, que morreu ainda criança, aos três anos. A narradora apontava que dessa dor nunca se livra. É a única dor de verdade, e da qual todo o resto de dor apenas se assemelha. Para a narradora, “um filho é o maior dos milagres, o único sentido da vida”, ainda que “não devemos nos enganar nunca e em nada”; um filho, assim, prossegue, não pode resolver um conflito insolúvel e uma tensão latente entre duas pessoas.

Um pedaço de fita lilás, que Ilonka encontrou na carteira do marido, conduziu-a à solução do mistério da ausência e distância do esposo. Ele tinha um segredo que ela desconhecia. No segredo não revelado, em forma de reserva mental, a traição que não se suporta. Em outra voz do livro, “pessoas que têm relação uma com a outra não podem viver com segredos no coração. O sentido da traição é esse. O resto é quase secundário.”

No passo seguinte o marido conta a um amigo a sua versão do casamento e da separação. O leitor descobre as filigranas do mistério que o circundava. Após a separação, que narra em pormenor, Peter casou-se de novo. A nova mulher o ferira, gravemente. Ficara só, passara por um grande abalo emocional. Sentiu ódio. Perdeu a fé no amor e na humanidade. Desencantado, desiludido, desenganado, percebeu (tarde, não havia como voltar) que fora usado, e que se deixara levar por uma ilusão. Reconhecia a covardia dos que escondem de si próprios e do mundo o segredo de suas vidas.

Elogiava a primeira mulher, que teve educação bem cuidada, que estudou línguas, que conhecia perfeitamente a diferença entre a boa música e as melodias fáceis e falsas. Vivia, no entanto, como se estivesse em um curso de etiqueta, onde tudo era forma. Submetia-se ao milagre da domesticação. Em casa, vivia uma solidão digna, sombria e cerimoniosa. Abandonou a segurança, e vou viver uma paixão, que o atormentava há muitos anos. A fome sexual, refletia, podia ser tão dolorosa e impiedosa como a fome verdadeira. Sabia, porém, que enquanto tivesse desejos teria também obrigações. E não havia volta, ainda que todos tenhamos o direito de partir. É um direito potestativo e absoluto.

Peter narra então a história da segunda esposa. Uma mulher que ao longo do tempo foi se revelando. Eram os freios de uma alma que se soltavam, expondo-se na pura realidade. Buscava “sedenta, alguma coisa, numa agitação e pressa animada”. Vive Peter agora o drama do segredo em sentido inverso. Não era mais o poderoso marido que guardava um segredo da indefesa esposa. Via-se como o indefeso marido, vítima do segredo da segunda esposa, para quem se entregou. E era um “segredo vulgar, lamurioso, que contamina a convivência, como se um cadáver apodrecesse na bela casa, sob o canapé”. Mentiam um para o outro.

Segue a terceira narrativa, na expressão da empregada da casa. Tudo se passa em uma ótica distinta, no contexto de uma verdade que não fora percebida pelos patrões. Destila ódio, aversão mineral, mortal, orgânica: “Os donos da casa mandavam vir ervas especiais do exterior. Porque eles mandavam vir tudo do exterior, até o papel higiênico! (…) Nunca faziam compras como os mortais comuns, só telefonavam para os entregadores e eles depois arranjavam tudo o que era preciso … a carne para a cozinha, os arbustos para o jardim, os novos discos para o gramofone, as ações, os livros, o sal cheiroso que misturavam na água de banho, os cremes perfumados que passavam no rosto e no corpo depois do banho, os sabonetes e pomadas que tinham aromas de sonho, excitantes, doces e enlouquecedores, que sempre me davam náusea e vontade de chorar de emoção quando limpava o banheiro e cheirava os sabonetes, as colônias, todos os perfumes e os restos que ficavam depois deles”.

As empregadas (e a narradora, Judite, era uma delas) se vestiam todas as manhãs para a limpeza da casa, como se fossem artistas preparadas para um espetáculo. Sentia que vestiam uma fantasia. “A cozinheira, de avental branco e touca, parecia estar à espera do cirurgião e do doente na sala de operações”. Era obrigada a vestir essa fantasia, não por elegância: era uma questão de higiene e limpeza. Os patrões não podiam ser contaminados. Judite fora examinada pelo médico da casa, um homem velho, que nitidamente se esforçava para se livrar de um exame desagradável. Para tudo havia um especialista, isto é, o calista, a massagista, o professor de ginástica, o treinador, o maquiador, o barbeiro; “havia em tudo alguma coisa incompreensível, extraterrena, não humana”.

Sándor Márai funde as três narrativas, aproximando os personagens, aos quais inclui ainda um escritor misterioso e um músico popular. Os personagens se misturam, dividem experiências, compartilham afagos, traições, incômodos e esperanças. Quanto ao enredo, não posso falar mais. O leitor que constate. Há um mistério na relação entre as narrativas, que se confunde, metaforicamente, com o mistério da própria vida. Há muita surpresa na leitura. Como há muita surpresa na vida.

No pano de fundo o leitor percebe um conjunto de angústias que marca Budapeste e seus habitantes ao longo do século XX. Como que sentados às margens do Danúbio nos enojamos com a violência e a barbárie nazistas, e também com a não menos nojenta e não menos barbárica presença soviética. Isso não significa que haveria identidade alguma entre essas perspectivas políticas, como alguns abiscoitados abobalhados hoje pregam. Sándor Márai deixou o país por não concordar com os soviéticos, do mesmo modo que Thomas Mann deixou a Alemanha por não concordar com os nazistas. A Hungria sofreu duplamente. E esse sofrimento pode ser uma das chaves interpretativas para o panorama político que hoje viceja na Europa Oriental. Os soviéticos deixaram Budapeste em 1º de julho de 1990.

Uma palavra sobre a tradução. Os créditos vão para Paulo Schiller, que também é pediatra e psicanalista. O húngaro é sua língua de infância, na qual pronunciou as primeiras palavras. Em “Reflexões sobre o bilinguismo”, que publicou nos “Cadernos de Literatura em Tradução”, Schiller reflete sobre essa herança. Do húngaro, traduziu também Imre Kertész e Gyula Krúdi. Lembrei-me de Paulo Rónai, e do modo como esse autor nos relata como aprendeu o português. Não conheço o húngaro, mas percebo que a tradução flui. Schiller conhece o português, e estou convencido de que o tradutor talvez deva conhecer melhor a língua para a qual traduz do que a língua que traduz.

Ao fim das 445 páginas desse belo romance, sustento que Sándor Márai propõe resposta ao dilema de Pilatos: a verdade é o que assumimos como verdade, com todo o risco que não compartilhemos essa perspectiva com o outro. A disposição para a compreensão das outras perspectivas, que também não deixam de ser verdadeiras, pode ser um humilde rebate de Sándor Márai à pergunta que João (São João para os católicos), filho de Zebedeu e Salomé, nos colocou, na expressão do atormentado Pôncio Pilatos.


[1] Agradeço a Raquel Xavier Vieira Braga, advogada militante em Brasília, pela indicação do livro e pela sugestão dessa inesquecível leitura.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!