Opinião

Mariana: os cinco anos do mais grave desastre socioambiental do Brasil

Autor

  • Lyssandro Norton Siqueira

    é procurador do Estado de Minas Gerais coordenador do Núcleo de Tutela do Meio Ambiente da Procuradoria de Demandas Estratégicas (PDE) da AGE/MG pós-doutor em Direito pela UFMG doutor em Direito pela PUC-RIO e professor de Direito Ambiental.

7 de novembro de 2020, 13h13

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, integrante do complexo minerário da Samarco Mineração, localizado no distrito de Bento Rodrigues, município de Mariana, em Minas Gerais, provocou o maior desastre socioambiental da história brasileira, causando uma grande comoção mundial.

A onda de rejeitos de mineração, provocada pelo rompimento, destruiu completamente o distrito de Bento Rodrigues, vitimou 19 pessoas e seguiu provocando múltiplos danos ao longo da Bacia do Rio Doce, por quase 600 quilômetros até a foz. O desastre só não foi pior porque, no curso da lama, a cerca de cem quilômetros de Mariana, estava localizado o reservatório da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves (Candonga), que acabou retendo parte dos rejeitos, mas, por outro lado, está desde então sem gerar energia elétrica.

Após transcorridos cinco anos do desastre, é oportuno avaliar como o sistema jurídico brasileiro respondeu ao evento.

A jurisprudência brasileira sobre a responsabilidade por danos socioambientais pode ser considerada de vanguarda, para muitos até mesmo ousada. Pode-se dizer, a partir de entendimentos consolidados pelo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que a responsabilidade civil ambiental no Brasil é objetiva, orientada pelo Teoria do Risco Integral, solidária, imprescritível, aplicando-se ainda a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Em nosso passado recente, entretanto, esse robusto sistema de responsabilização civil não tem um bom histórico no quesito resolutividade do problema ou, melhor dizendo, reparação efetiva do dano socioambiental. Veja-se, por exemplo, o caso do rompimento da barragem de rejeitos da Indústria Cataguases de Papel, ocorrido em 29 de março de 2003, deixando escoar, aproximadamente, 500 milhões de litros de lixívia, provocando alagamento de áreas e destruição de empreendimentos agrícolas. A lixívia atingiu o Córrego do Cágado, o Rio Pomba e o Rio Paraíba do Sul, alcançando o Oceano Atlântico e causando danos ambientais em cidades de Minas Gerais, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Após dois anos da ocorrência do desastre, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública de indenização e compensação por danos ecológicos, cumulada com pedido de indenização por danos morais difusos. A demonstrar a total falta de efetividade do provimento jurisdicional, cumpre registrar que o processo, ainda hoje, mais de 17 anos após o desastre, encontra-se em fase recursal de segunda instância[1].

Assim, um desastre sem precedentes não encontrou, por óbvio, os órgãos integrantes do sistema de Justiça preparados para uma resposta rápida. Algumas poucas horas após o desastre, a atuação desconcertada de algumas entidades já estava a provocar insegurança jurídica, com situações que indicavam o represamento dos rejeitos e outras a indicar a liberação para que chegasse à foz.

As proporções nacionais do desastre impulsionaram os entes federados a um alinhamento administrativo, quanto ao exercício do poder de polícia e tomada de decisões.

Algumas questões, entretanto, estavam além dos limites da autoexecutoriedade dos atos administrativos, o que motivou, igualmente, uma atuação concertada da advocacia pública.

Foi assim, que, ainda, em novembro de 2015, a Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais (AGE-MG), juntamente com a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo (PGE-ES), ajuizou uma ação civil pública contra a Samarco Mineração S.A. (operadora da estrutura) e suas controladoras (Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda.).

Algumas semanas depois, fixada a competência, o juiz da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte deferiu pedido liminar para determinar que as companhias executassem uma série de medidas emergenciais e depositassem, como garantia do cumprimento, R$ 2 bilhões em juízo. A decisão ainda impediu a Samarco Mineração S.A. de distribuir dividendos, juros sobre o capital próprio, bônus de ações ou qualquer outra forma de remuneração aos sócios.

O deferimento da liminar, a um dia do recesso forense, com fortes medidas constritivas, compeliu as empresas ao diálogo. Nos meses que se seguiram, foram realizadas diversas reuniões na busca de uma solução consensual para a lide, culminando com a assinatura, em março de 2016, do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC).

O TTAC previu 42 programas de caráter socioeconômico e socioambiental e teve por objetivo regular de forma centralizada, articulada e efetiva a reparação integral dos danos socioambientais e socioeconômicos decorrentes do rompimento da barragem.

O acordo teve o grande mérito de afastar qualquer discussão jurídica em relação à responsabilidade da Samarco e de suas controladoras pela reparação integral dos danos. Além disso, congregava, como compromitentes, os órgãos públicos federais e estaduais, responsáveis pelo direcionamento das medidas reparatórias, criando um ambiente de segurança jurídica em relação ao caso.

Os números do TTAC impressionam. Foram R$ 2 bilhões investidos em 2016 e a previsão orçamentária de R$ 1,2 bilhão por ano, sem teto de gastos para a reparação. Foram previstos, ainda, R$1,5 bilhão para saneamento e resíduos sólidos e R$ 240 milhões/ano durante 15 anos em medidas compensatórias. Até 2020, já foram desembolsados R$ 2,5 bilhões em indenizações e auxílios financeiros.

Reconhecendo a incompetência do sistema convencional de execução de decisões judiciais condenatórias, o TTAC criou um modelo inédito de execução da reparação. Foi criado um Comitê Interfederativo (CIF), integrado por representantes do poder público para a tomada de decisões orientadoras do processo reparatório, e uma fundação privada, cujo único objetivo seria a execução das deliberações do CIF.

As críticas, entretanto, foram várias. A principal delas relacionada a ausência de um diagnóstico completo, quando da assinatura, e a falta de participação das pessoas atingidas.

Após três anos de novas discussões jurídicas e, pelos menos, 54 reuniões, incluindo empresas, órgãos do poder público e instituições do sistema de Justiça, foi celebrado, em agosto de 2018, o Termo de Ajustamento de Conduta de Governança (TAC-GOV) prevendo dois novos pactos: o aperfeiçoamento do processo de governança previsto no TTAC para definição e execução dos programas, projetos e ações que se destinam à reparação integral dos danos decorrentes do rompimento da barragem e o aprimoramento dos mecanismos de participação das pessoas atingidas em todas as etapas e fases dos programas previstos no TTAC.

A engrenagem do novo modelo de reparação, mesmo após o aperfeiçoamento pelo TAC-GOV, apresentou algumas falhas, verificando-se a necessidade de imprimir maior celeridade ao cumprimento das obrigações referentes aos programas, projetos e ações previstos no TTAC.

Assim, em 2019, após identificar demandas prioritárias, a AGE-MG, juntamente com outras instituições do sistema de Justiça, ajuizou pedidos de cumprimento de obrigações relacionadas a programas e projetos que não estavam sendo suficientemente atendidos. O juízo da 12ª Vara Federal determinou que os pleitos fossem organizados em 12 eixos temáticos prioritários atualmente em curso e já produzindo resultados:

1) Recuperação ambiental extra e intracalha;

2) Risco à saúde humana e risco ecológico;

3) Reassentamento das comunidades atingidas;

4) Infraestrutura e desenvolvimento;

5) Retorno operacional da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves;

6) Medição de performance e acompanhamento;

7) Cadastro e indenizações;

8) Retomada das atividades econômicas;

9) Abastecimento de água para consumo humano;

10) Contratação das assessorias técnicas;

11) Ações de saúde;

12) Proibição da pesca na bacia do Rio Doce.

A amplitude e a complexidade de cada um dos pontos colocados como eixos temáticos evidencia que, embora muito já tenha sido feito, há ainda muito por fazer. Se há falhas na execução de obrigações pela Fundação Renova, as críticas devem ser direcionadas ao aperfeiçoamento da fundação, e não à destruição desse inédito modelo de reparação.

A integração pioneira dos vários órgãos que compõem o sistema de Justiça vem demonstrando o enorme ganho em eficiência nos resultados alcançados se comparados a outros desastres ambientais cuja reparação/recuperação dos danos sofridos ainda está longe de se tornar uma realidade.

Covid-19
Já em abril de 2020, diante da pandemia causada pelo novo coronavírus, a Justiça federal homologou dois acordos para que o Estado, representado judicialmente pela AGE-MG, pudesse utilizar parte das garantias judicias para a compra de 1.047 ventiladores pulmonares, ao custo total de R$ 51,2 milhões.

Escolas
Em agosto passado, dois acordos históricos foram homologados pela Justiça federal. Os ajustes reforçam as ações afinadas entre a AGE-MG, a Procuradoria-Geral do Estado do Espírito Santo (ES) e o Comitê Pró-Rio Doce, que é coordenado pelo secretário-adjunto da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag), Luis Otávio Milagres de Assis.

Um dos acordos permitirá ao Estado melhorar a infraestrutura de mais de 200 escolas estaduais em municípios atingidos pelo rompimento da barragem. A verba liberada é de R$ 44,346 milhões e poderá ser usada na execução de obras de engenharia e/ou projetos de prevenção e combate a incêndio, em tecnologias e acesso à internet, na compra de mobiliário e na educação profissional.

Infraestrutura, saúde e turismo
As mineradoras se comprometeram ainda a destinar R$ 215,331 milhões a três importantes projetos socioambientais e econômicos em Minas Gerais. O primeiro, ao custo de R$ 128 milhões, é a implantação da estrada MG-760. Trata-se da criação de uma nova rota para o escoamento da produção, principalmente quando o destino das cargas for as cidades de Vitória e Rio de Janeiro. O empreendimento irá integrar dois importantes corredores nacionais de tráfego de carga e passageiros, a BR-262 e a BR-381. Outra vantagem será o incremento do turismo na região do Parque Estadual do Rio Doce.

O acordo prevê, ainda, a destinação de R$ 12 milhões para a implantação de 14,2 quilômetros do trecho da MG-900, em Marliéria. O recurso possibilitará o desenvolvimento econômico na Região Metropolitana do Vale do Aço, composta pelos municípios de Timóteo, Ipatinga, Coronel Fabriciano e Santana do Paraíso.

O terceiro projeto é a conclusão e estruturação do Hospital Regional de Governador Valadares, que receberá R$ 75,3 milhões. O local tem capacidade para 265 leitos, sendo 50 de UTI, nove salas de cirurgia, contando, inclusive, com heliponto para ações de transporte aeromédico. O hospital é capacitado para atender pacientes com quadros de média e alta complexidades, destinado a uma população de 1,5 milhão de moradores de 86 municípios. Significa, ainda, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde da região.

A proposta de destinação dos recursos compensatórios foi apresentada ao Comitê Interfederativo pelo Comitê Gestor Pró-Rio Doce do Estado de Minas Gerais e pela Câmara Técnica de Educação, Cultura, Lazer e Turismo, por parte do governo do Espírito Santo, com as prioridades para os Estados e municípios.

 


[1] 2ª Vara Federal de Campos, Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Processo n.º 0001143- 73.2005.4.02.5103. Sentença de 17/02/2016.

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    é procurador do Estado de Minas Gerais, coordenador do Núcleo de Tutela do Meio Ambiente da Procuradoria de Demandas Estratégicas (PDE) da AGE/MG, pós-doutor em Direito pela UFMG, doutor em Direito pela PUC-RIO e professor de Direito Ambiental.

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