Opinião

O reforço que a Lei dos Crimes Ambientais jamais pediu

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7 de novembro de 2020, 6h04

No último dia 29 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Sansão, oriunda do PL nº 1.095/2019, que majora a pena do crime de maus-tratos aos animais na hipótese de as lesões serem contra cães e gatos. O incremento em análise eleva a pena anterior, que era de detenção de três meses a um ano, ao patamar da reclusão, de dois a cinco anos.

A cerimônia ocorrida no Palácio do Planalto contou com a presença de deputados e ministros, bem como com a de cachorros que foram brandidos ilustrativamente durante os discursos. O parecer do senador Fabiano Contarato, relator do PL, defende o aumento da pena como representativo de verdadeiro avanço civilizatório nacional; citou diagnóstico de ninguém menos que Mahatma Gandhi quando disse que "a grandeza de uma nação e seu progresso moral podem ser julgados pela forma como seus animais são tratados" [1]. Em certa altura, recorreu a frases congêneres de Leonardo da Vinci.

A envergadura dos pensadores invocados é inegável. Por outro lado, a técnica jurídica e a constitucionalidade da Lei Sansão, infelizmente, são, no mínimo, questionáveis.

Inicialmente, é preciso conceder que, de fato, foi na Constituição de 1988 que se leu pela primeira vez o termo "meio ambiente" em nossas Constituições; ficou conhecida, assim, como "Constituição verde" [2]. Mais do que isso, em seu artigo 225, §3º, estabelece que "as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais". Tem-se aí mandato expresso, dirigido ao legislador ordinário, para que criminalize as condutas que firam o bem-jurídico em estudo, lançando mão do expediente mais gravoso à disposição do Estado: o Direito Penal.

O que não se pode é confundir a extensão do que a Constituição se propôs a defender com a tal Lei dos Crimes Ambientais: insurge-se o diploma contra as "agressões ao meio ambiente provocadas pela poluição do ar, do solo e da água, e suas consequências, que somente a aplicação de sanção penal" conseguiria refrear [3]. O equilíbrio ambiental é um direito fundamental, titularizado portanto pelos humanos (e não pelos animais em si, visto que não são sujeitos de direito em nosso ordenamento), a um pacto intergeracional de manutenção do patrimônio genético e do bom funcionamento dos processos ecológicos essenciais, para usar os termos da própria Constituição.

É por essa razão que os penalistas mais vigilantes já enxergavam com estranheza a redação anterior (à Lei Sansão) do crime inscrito no artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais, que proibia justamente "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Salta aos olhos, porém, que há nessa enumeração um "estranho no ninho", em desarmonia com as altas finalidades a que se propõe a lei: os animais domésticos. Se se pune a mutilação daquelas espécies que sustentam a harmonia dos biomas é porque o direito fundamental a um meio ambiente harmônico é de fato ferido quando suas incolumidades são postas em risco. É o dano difuso a que a sociedade como um todo fica exposta no caso de determinado animal ser eliminado da cadeia alimentar — e não a simpatia que se tem por este ou aquele bicho — que autoriza a convocação excepcionalíssima da tutela penal contra o autor.

Ora, é absurdo dizer que cães e gatos domésticos sustentam qualquer bioma nacional. Seu desaparecimento dos lares brasileiros, quando muito, afetaria apenas os ratos ou lagartixas do lar específico onde habitam. A conduta de ferir esses bichos de estimação, conquanto abjeta e avessa à moralidade esperada para a vida social, não ultrapassa a esfera de dano individual daquele animal ou do seu dono. A natureza segue seu curso impassível, portanto, na eventualidade de algum mal ocorrer ao animal caseiro. Assim é que Luiz Regis Prado, acertadamente, diz que "convém de logo salientar que sua tutela jurídica não deveria ter a natureza de delito, mas tão somente de contravenção penal ou de mero ilícito administrativo. Quadra aqui ainda mencionar que nesse caso só impropriamente é possível falar-se em tutela do ambiente" [4].

Não satisfeito com a presença dessa hipótese alienígena de incidência penal contra agressores de bichos de estimação, o legislador ordinário, ao invés de extirpá-la, aprofundou o equívoco com a tal Lei Sansão. Não só manteve a previsão controversa, como aumentou exponencialmente a pena abstrata exclusivamente para quem ferir gatos e cachorros.

A previsão carece de técnica legislativa. Se antes já não se sabia bem por que os bichos de estimação estavam no rol dos bichos protegidos pelo artigo 32, agora menos ainda se sabe por que, entre as ofensas a todos os animais domesticáveis, só se pune com reclusão de até cinco anos os maus-tratos contra cães e gatos — e não contra papagaios e coelhos, por exemplo. Se se tutela a simpatia de algumas pessoas por certo animal, urge justificar por que merece menos guarida a simpatia de outras pessoas por animais cuja preservação da incolumidade representa igualmente o invocado "avanço civilizatório".

Por falar em sistematicidade, a nova pena, apesar de obviamente concretizar o mandamento de criminalização anteriormente aludido, passa a obedecê-lo em desrespeito flagrante ao princípio da proporcionalidade em relação às penas dos outros crimes existentes. Ao sujeito que, diga-se, atira um pedaço de pau em um gato, aplica-se de dois a cinco anos de reclusão. A quem lesiona gravemente o corpo de outro ser humano a ponto de cegá-lo, por exemplo, aplica-se a pena de um a cinco anos de reclusão.

Ainda: o homicídio culposo (que é aquele praticado, por exemplo, por imprudência do autor ao manusear uma arma carregada na presença de outras pessoas) é punido com pena de um a três anos. O ordenamento, portanto, passa a punir com mais veemência a violência aos cães e gatos — que, repita-se, não são sujeitos de direitos — do que a violência contra seres humanos. O recado dado às vítimas e famílias tocadas pelos crimes contra a pessoa citados, que ficaram irremediavelmente marcadas pela violência e encontram no Direito Penal algum mínimo desagravo, chega a ser ultrajante.

Aliás, a literatura já há muito aponta as desproporcionalidades não só entre o artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais e o resto das leis criminais pátrias, mas também entre os crimes de dentro da própria lei sob análise. Luiz Flávio Gomes, entre tantos exemplos, nota que quem destrói uma margarida numa praça (o estranho crime do artigo 49, "maltratar plantas de ornamentação") é punido com pena de três meses a um ano, ao passo que quem destrói uma floresta protetora de mangues inteira (crime do artigo 50) sofre igualmente pena de três meses a um ano. Por ter tão esdrúxula régua, a lei é chamada por Miguel Reale Junior de "a hedionda Lei dos Crimes Ambientais", cuja leitura geraria "intensa indignação diante dos gravíssimos erros de técnica legislativa que se somam a absurdos de conteúdo" [5]. Espanta que o advento do esforço político para modificá-la, em tempo onde a mídia tanto discute a destruição dos biomas brasileiros, só tenha servido para aprofundar suas muitas deficiências anteriores.

A Lei Sansão é, assim, um exemplo emblemático do fenômeno que grandes penalistas batizaram de populismo penal midiático, quando se busca inflamar os ânimos da população contra delitos que não necessariamente representam os maiores problemas que a afligem, com o intuito de criar coesão social por meio de um consenso punitivo por mais prisões e mais penas. Nas palavras do célebre jurista argentino Eugênio Zaffaroni, "a criminologia midiática não tem limites, ela vai num crescendo infinito e acaba clamando pelo inadmissível", da "redução da obra pública à construção de cadeias" até a "supressão de todas as garantias penais e processuais" contra acusados de certos crimes [6].

A legislação feita assim, com a bílis, ao invés de baseada em racionalidade e informação, torna sem efeito as melhores reformas recentes no Direito Processual Penal, destinadas a otimizar recursos do aparato criminal para que este possa se voltar efetiva e rapidamente contra crimes mais graves e danosos. Além disso, institutos despenalizadores como a suspensão condicional do processo, destinados a mitigar os graves problemas do encarceramento em massa e da morosidade da Justiça, restam inaplicáveis ao crime em estudo porque agora sua pena máxima é muito superior a um ano. As celas de prisão, desumanamente superlotadas pela guerra às drogas, também contarão com agressores de cachorros. Lado a lado, em certo sentido equiparados por lei em sua aludida torpeza.

A história recente do nosso ordenamento é rica em exemplos de crimes legislados ao sabor dos escândalos que tomaram a mídia. No fim dos anos 90, quando a "pílula de farinha" era vendida no lugar do anticoncepcional Microvlar, criminalizou-se a falsificação de remédios até o extremo de tornar a venda de esmalte falso um crime hediondo, com penas altas como as do tráfico de drogas [7]. Passado o frisson, quando a realidade provou que as sanções estipuladas beiravam o absurdo, o Judiciário foi obrigado a bolar alternativas para contornar a injustiça insculpida na lei [8].

Essas sanções de ocasião cumprem, portanto, apenas um papel de catarse coletiva e saciam as paixões retributivas do eleitorado, contemplado no íntimo pela perspectiva de encarcerar os malfeitores mais odiados de um dado momento histórico. Quando todos voltam ao bom-senso, entretanto, as leis anômalas infelizmente permanecem lá: firmes, cogentes e oficiais. A história ensina, a troco das injustiças perpetradas por leis ruins, que modificar o Direito Penal é tarefa que exige temperança.

 


[2] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 5. ed. São Paulo: RT, 2007.

[3] FREITAS, Vladimir Passos; FREITAS, Gilberto Passos. Crimes contra a Natureza. São Paulo: RT, 2006.

[4] PRADO, Luiz Regis. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. São Paulo: Editora Forense, 2019.

[5] GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio Luiz. Lei de Crimes Ambientais : comentários à Lei 9.605/1998 – 2. ed. rev., atual. E ampl., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferência de criminologia cautelar, São Paulo: Ed. Saraiva, 2012.

[7] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01079819.htm . Acesso em 8 de outubro de 2020.

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