Opinião

A educação inclusiva está sob ameaça

Autor

  • Alexandre Bastos

    é defensor público no Estado do Pará desde 2007 titular da capital e em atuação na 7ª Vara Penal da Capital especialista em gestão pública pela Unitoledo e mestre em Gestão Pública pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA (NAEA).

7 de novembro de 2020, 18h15

A edição do Decreto de nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), tem sido objeto de discussões das entidades da sociedade civil e diversos setores do governo em todas as esferas, como também sendo motivo de preocupação para diversas famílias.

Isso porque, sob o argumento de dar maior flexibilidade aos sistemas de ensino, permite que os pais possam optar em matricular o filho, pessoa com deficiência, em uma escola especial, ao invés de na escola regular.

Defendo que referido normativo, além de inconstitucional, contraria a convenção internacional sobre direitos das pessoas com deficiência, bem como vários dispositivos tupiniquins, senão vejamos.

Pois bem, é fato que o dispositivo constitucional do artigo 208, III, da CF prevê a garantia da educação especializada às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.

Contudo, essa norma não pode ser interpretada apenas em seu sentido literal, mas, sim, levando em conta todo o sistema constitucional e os princípios constitucionais que orientam a aplicação do texto constitucional, a partir de uma interpretação sistemática.

Portanto, importante analisar essa norma em cotejo com os artigos 205 da CF que dispõe ser a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Também, não menos importante a previsão do artigo 206, I, da CF, que prevê como um dos princípios a serem aplicados no ensino a "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola".

Ademais, necessário compreender que tais garantias foram inseridas no texto constitucional, época de redemocratização, quando se operou ruptura de muitos dogmas, cenário em que não havia a participação de pessoas com deficiência, de forma ativa, seja na sociedade, seja nas escolas, no trabalho, nas universidades, em eventos esportivos etc.

Dessa maneira, o texto constitucional, de modo acertado, acabou por indicar a preferência pelo ensino regular, uma vez que, naquele momento, em sua maioria, as pessoas com deficiência ou não estudavam, ou de fato estavam nas escolas especiais, de modo que a previsão representou uma verdadeira evolução, na medida em que inicia um movimento a fim de que se trabalhasse a progressão para a inclusão da pessoa com deficiência no ensino regular.

Posteriormente, o Brasil, por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, assinado em Nova York em 30 de março de 2007.

Trata-se do primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, segundo o qual: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

Esta "equivalência" significa, ainda, que esses tratados e convenções internacionais: 1) passarão a reformar a Constituição, sendo, dessa forma, também formalmente constitucionais; 2) não poderão ser denunciados, nem mesmo com projeto de denúncia elaborado pelo Congresso Nacional; 3) servirão de paradigma de "controle concentrado", por quaisquer dos legitimados no artigo 103 da Constituição Federal, a fim de invalidar erga omnes às normas infraconstitucionais com eles incompatíveis.

Do mesmo modo, há de se considerar que os instrumentos internacionais de direitos humanos somente podem ser inconstitucionais quando a proteção aos direitos fundamentais, na Constituição, seja mais ampla ou benéfica.

Lembremos que todos os tratados de direitos humanos têm aplicação imediata, na forma do artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição, pois dispensam o decreto de execução presidencial para que irradiem efeitos tanto no plano interno quanto internacional.

Vale dizer, é o reconhecimento do "status constitucional", servindo, portanto, como "bloco de constitucionalidade" (são normas, no mínimo, "materialmente constitucionais") e parâmetro de controle difuso, exercitável em qualquer grau de jurisdição.

De outra forma, não haveria porque afirmar que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição" (ou seja, os direitos fundamentais) não excluíssem "outros decorrentes" de "tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (artigo 5º, 2º).

Digno de destaque as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo as quais: 1) os instrumentos internacionais são imediatamente aplicáveis no plano interno; 2) a responsabilidade internacional dos Estados pode decorrer de atos ou omissões de quaisquer dos poderes, independentemente de sua hierarquia e mesmo que o fato violador provenha de norma constitucional; 3) o Poder Judiciário deve ter em conta não só o tratado, mas também a interpretação que dele têm feito a corte.

Interessante a previsão constante da convenção internacional no artigo 4, ponto 4, em que "nenhum dispositivo da presente convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado-parte ou no Direito Internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e das liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte da presente convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau".

Numa interpretação a contrario sensu, a norma anterior que não for compatível com a convenção, e que de certo modo restrinja direitos previstos na convenção, por ela será derrogada.

Assim, indiscutível que, a partir de uma interpretação sistêmica da convenção internacional, se tem que a mesma não previu essa "preferencialidade" do ensino regular, uma vez que a participação em escolas especiais segrega a pessoa com deficiência, de modo a não permitir a interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais, tais como a previsão na alínea "e" do preâmbulo, onde se reconhece que a deficiência é um conceito em evolução e que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

A evolução somente se efetiva com a participação da pessoa com deficiência em classe que estabeleça o contato com a sociedade em geral, e não somente em escolas em que estudem alunos com deficiência.

Ainda na letra "m", reconhecendo as valiosas contribuições existentes e potenciais das pessoas com deficiência ao bem-estar comum e à diversidade de suas comunidades, e que a promoção do pleno exercício, pelas pessoas com deficiência, de seus direitos humanos e liberdades fundamentais e de sua plena participação na sociedade resultará no fortalecimento de seu senso de pertencimento à sociedade e no significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico da sociedade, bem como na erradicação da pobreza.

Outro importante ponto constante da alínea "r" do preâmbulo da convenção tem relação ao previsto no ECA, no artigo 55, que diz que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino, e o não cumprimento dessa obrigação pelos pais pode ensejar a aplicação do artigo 98, II, resultando numa medida de proteção pela autoridade competente, prevista no artigo 101, III, qual seja, de matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental, entre outras medidas.

Diz a alínea "r" que se reconhece que as crianças com deficiência devem gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de oportunidades com as outras crianças e relembrando as obrigações assumidas com esse fim pelos Estados-partes na Convenção sobre os Direitos da Criança.

Já o artigo 7 da convenção, que trata do tema acima (crianças com deficiência), no item 1 indica que os Estados-partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças, e no item 2 prevê que em todas as ações relativas às crianças com deficiência o superior interesse dela receberá consideração primordial.

A convenção, portanto disse mais porque fala expressamente o direito de ter igualdade de condições com outras crianças, o que não ocorreria no caso da escola especial, nas quais apenas teriam crianças com deficiência como colegas. Então não seria lógico que aquele estudante competisse apenas em igualdade de condições com outra criança com deficiência, uma vez que posteriormente, ao ser colocada frente ao mercado de trabalho, teria uma concorrência "desleal".

Por fim, a previsão do artigo 24 em nenhum momento faz referência a essa preferência, ao contrário, prevê que os Estados assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, o que a meu ver, pelo raciocínio desenvolvido, induz que essa prática ocorreu no passado e, diante dos demais dispositivos e análise sistêmica da convenção, seria ilógico retroceder para prever referidos institutos.

O item 3 do mesmo artigo indica que os Estados-partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar a elas sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em comunidade.

Ademais, é princípio insculpido no artigo 3, alínea "c", a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, que só ocorrerão com a efetiva convivência das pessoas com deficiência não somente nas escolas regulares, mas nos mesmos espaços públicos de qualquer outra pessoa, seja ela de que raça, etnia, origem, nacionalidade for.

Dessa forma, a criança com deficiência deve frequentar a escola regular e o Estado deve buscar todos os meios para permitir a inclusão em todos os sentidos, e, em que pese a divergência apresentada por parte da sociedade civil organizada, é certo que a política instituída pelo decreto representa um retrocesso seja na prática, seja porque contraria frontalmente a convenção internacional, norma essa que derrogou tacitamente o disposto no artigo 208 da CF.

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  • é defensor público no Estado do Pará desde 2007, titular da capital e em atuação na 7ª Vara Penal da Capital, especialista em gestão pública pela Unitoledo e mestre em Gestão Pública pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA (NAEA).

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