Opinião

Advocacy e consensualidade: a potência da transformação social pela colaboração

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6 de novembro de 2020, 15h11

São tempos de polarização política, de demonização das opiniões contrapostas e desconfiança mútua quanto a políticas, políticos e informações veiculadas. Como diria Elias Canetti ("Massa e Poder", de 1960), as massas se dividem em fuga ou perseguição, ora atacando o inimigo ou dele fugindo por serem vistas como tal. A maniqueização da política se reflete na redução de espaços de diálogo na sociedade civil e queda vertiginosa das liberdades, fazendo com que o Brasil perdesse no início de 2020 o status de democracia liberal, segundo a avaliação do Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo. 

Como se em outra dimensão, também vivenciamos a franca expansão dos métodos consensuais ou autocompositivos de resolução de conflitos, ou seja, do estímulo para que as próprias partes decidam sobre a solução que querem dar a determinada disputa travada entre si. 

Nesse contexto, muito se discute sobre a aplicabilidade de mediação e conciliação (dois dos principais métodos consensuais) para resolução de conflitos envolvendo a Administração Pública. A Lei de Mediação (Lei 13.140/2015) dedica capítulo próprio aos conflitos em que for parte pessoa jurídica de Direito público, prevendo inclusive a possibilidade de criação de câmaras de resolução de conflitos. Todavia, pouco se fala sobre a aplicabilidade das técnicas e ferramentas de mediação como instrumento para a construção de políticas públicas atentas à pluralidade de posições, interesses e necessidades. 

Por isso, desviaremos da habitual lupa, focada na mediação aplicada a disputas em que há interesses contrapostos, tal como ocorre em cobrança de tributos, violações deliberadas ao meio ambiente, questionamentos sobre licitações e outros. Tampouco avaliaremos o assunto pela perspectiva de redução do número de processos e de casos levados para a Justiça tradicional. 

A reflexão que se propõe é sobre a busca por consensos entre a sociedade civil e o poder público quando ambos buscam a concretização de direitos que impactam a todos. Ou seja, sobre o uso das ferramentas autocompositivas para construção de pontes e somar em impacto positivo com o objetivo de transformação social. Conectam-se, portanto, as perspectivas do advocacy com as técnicas de facilitação de conflitos. 

São dadas ao termo advocacy acepções diversas pelas diferentes fontes. Por vezes, é apontado como estratégia de pressão ou propriamente de formulação, aplicação ou mudança de políticas públicas. No entanto, advocacy pode se referir a mudanças em qualquer dimensão das causas sociais, inclusive com estratégia de conscientização da sociedade. Por isso, é pertinente a ampliação da definição empregada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de modo que advocacy seja compreendido como o "processo deliberado, baseado em evidências demonstradas, para direta e indiretamente influenciar tomadores de decisão, as partes interessadas e outros públicos relevantes para apoiarem e implementarem ações que contribuam para o cumprimento dos direitos de crianças e mulheres", mas também de demais minorias, grupos minorizados ou vulnerabilizados, e demais direitos fundamentais. 

Nesse sentido, a busca por consenso não se referiria a interesses pessoais ou individuais, mas, sim, a direitos coletivos e difusos. É o que ocorre quando uma organização da sociedade civil negocia com o poder público a adequada destinação de verbas para melhorias em acessibilidade no sistema público de ensino; ou quando uma coalizão de entidades do terceiro setor busca diálogo com o poder executivo estadual para construir um sistema de segurança pública menos violento e atento a seus impactos sobre a população negra. 

De fato, a Constituição Federal prevê como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a busca pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária; pela garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização; redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação. Esses são objetivos a serem perseguidos em comum esforço por poder público, sociedade civil e iniciativa privada. 

Sem prejuízo do impacto macro na sociedade, as negociações nesses campos podem, por vezes, estarem vinculadas a casos individuais ou terem nele o seu estopim. É o que sistematicamente ocorre, por exemplo, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pautado em um sistema de casos individuais representativos de violações sistemáticas. Mas não é preciso ir longe. 

Para todo caso de reparação a direitos humanos, pode-se olhar para o evento pontual ou percebê-lo a partir de sua causa e do contexto em que se insere. Em recente acórdão do último dia 22 de outubro, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (em voto da desembargadora Denise Oliveira Cezar) condenou o Estado ao pagamento de indenização a uma criança com síndrome de Down de sete anos de idade por ter sido vítima de conduta vexatória de uma professora que colocou fita adesiva sobre seus lábios. 

O caso é a ponta do iceberg da exclusão e marginalização de crianças com deficiência intelectual no sistema educacional. Por isso, bem poderia ter sido ensejo para o estudo e mapeamento dos obstáculos na inclusão da pessoa com deficiência e para treinamentos adequados aos professores e profissionais quanto à chamada acessibilidade atitudinal, prevista na Lei Brasileira de Inclusão. 

O posicionamento do Estado, em casos como tal, deveria ser no sentido da busca pelo melhor interesse público e não, como foi no caso concreto, de rechaçar a vítima prezando estritamente pelos cofres públicos (que, relembre-se, existem exatamente para atender ao bem geral). 

As vias possíveis de reparações em direitos humanos não são apenas financeiras (as chamadas indenizações). O conceito de reparação integral abrange cinco principais categorias: restituição do direito, reabilitação, medidas de satisfação, compensação econômica e medidas de não repetição. Não é nosso objetivo detalhá-las, mas demonstrar que as soluções para cada caso podem contemplar medidas como o reconhecimento público da violação, pedidos de desculpa e medidas para promoção da mudança estrutural. 

Um exemplo bastante conhecido é a Lei no 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, criada após elaboração de relatório pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovado em 19 de outubro de 2000. O relatório continha recomendações feitas pelo órgão ao Estado brasileiro que passavam pela adoção de medidas de investigação e reparação à vítima Maria da Penha, até a mudança de leis e políticas públicas, incluindo capacitação e sensibilização de servidores. 

A lei nacional viria a surgir somente em 2006, seguindo-se às recomendações internacionais e após intensa pressão de organizações da sociedade civil. Todavia, bem poderia ser fruto de um processo de negociação e construção conjunta, não litigiosa, entre os diferentes stakeholders do interesse público, com ampla consulta popular e planejamento de curto, médio e longo prazo para redução dos índices de violência doméstica. 

Ferramenta potente é a junção das técnicas de autocomposição com os passos de advocacy, indicados, por exemplo, no guia do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), de modo a promover a transformação social nas micro e macropolíticas com economia, assertividade, celeridade e qualidade. 

Vira-se, com isso, a chave da polarização e colocam-se as partes todas no campo que realmente ocupam, como vítimas e algozes da realidade social, influenciadas e influenciadoras. Da sinérgica consensualidade no advocacy, mitiga-se a onda maniqueizante e nutre-se o protagonismo colaborativo, do qual podem se beneficiar todas as camadas e grupos sociais.

Autores

  • é professora doutora de Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP, professora dos programas de pós-graduação da PUC-SP e da PUC-PR, integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e relatora sobre os Direitos das Pessoas LGBTI da comissão.

  • é head da área de Empresas & Direitos Humanos e coordenadora das práticas pro bono do escritório TozziniFreire Advogados.

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