Opinião

Sobre a retroatividade do ANPP

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6 de novembro de 2020, 9h13

Este artigo pretende ser uma contribuição à discussão sobre a retroatividade do artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP), introduzido pela Lei n° 13.964/2019, conhecida como lei "anticrime". Verifica-se, atualmente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência um dissenso expressivo sobre esse tema. Por trazer norma penal mais benéfica, defende-se, de um lado, que o referido dispositivo retroage, alcançando fatos anteriores à sua inserção no CPP, enquanto, de outro lado, afirma-se que essa retroação está sujeita a um marco temporal, deduzido da natureza do acordo de não persecução penal (ANPP), entre outros elementos argumentativos. É a tese, em síntese, de que o artigo 28-A do CPP, mesmo sendo mais benéfico ao autor do crime, não pode ser aplicado retroativamente uma vez oferecida a denúncia ou, ainda, proferida a sentença. A definição desse marco temporal também é controvertida, como se vê, sendo uma construção teórica baseada em elementos conceituais (não prescritivos) relativos à natureza do ANPP e extraídos, inclusive, da comparação com institutos alienígenas.

A regra constitucional da retroatividade da norma penal mais benéfica
Dispõe o artigo 5°, XL, da Constituição Federal que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Trata-se de texto normativo claro, livre de vaguezas ou ambiguidades, do qual a doutrina pátria extrai o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica. Ora, a compreensão de tal norma como princípio se deve, certamente, à sua fundamentalidade. Entretanto, a partir do paradigma metodológico que distingue qualitativamente regras e princípios, hoje bastante difundido, impõe-se falar em regra da retroatividade da norma penal mais benéfica, visto estar ela formada por uma hipótese fática — bem delimitada, observe-se — e a correspondente consequência normativa.

Não parece demasiado precisar que do texto do artigo 5°, XL, da Constituição Federal extraem-se duas regras, uma proibitiva (a novatio legis in pejus não retroagirá) e outra prescritiva (a novatio legis in mellius retroagirá), estando apenas a segunda, como se percebe, no centro da discussão.

A distinção qualitativa entre regras e princípios, conciliando entendimentos a partir de Dworkin e Alexy, opera com a ideia de que as regras são aplicadas, normalmente, segundo um método de tudo ou nada, isto é, ou são aplicadas ou são afastadas (por exceções ou invalidação), enquanto os princípios incidem na maior medida possível (por serem mandados de otimização), mediante ponderação com outros princípios. É verdade, como explica, entre outros autores, Bruno Sacramento, em revisão crítica da distinção entre regras e princípios, que as primeiras podem exigir ponderação caso se verifique um conflito irresolúvel. Conforme demonstra, isso ocorre quando os fatos relevantes de determinado caso preenchem as hipóteses fáticas de duas regras que preveem consequências normativas contraditórias ou incompatíveis, não havendo entre elas relação de hierarquia, especialidade ou anterioridade [1].

A perspectiva da metodologia (ou teoria) do Direito, de todo modo, é aclaradora em nosso tema. Isso porque, a partir dela, a norma extraída do artigo 5°, XL, da Constituição Federal evidencia sua qualidade de regra. Resulta claro, também, que ela somente poderia ser afastada, uma vez verificado seu antecedente fático, caso houvesse em relação a ela alguma exceção ou até mesmo regra conflitante, o que, como sabido, não existe em nosso ordenamento.

E ainda que se queira tratar tal norma como princípio, em razão de sua fundamentalidade, considere-se que ela não é, evidentemente, um mandado de otimização, passível de conflitar e ceder ante outros mandados de otimização (princípios). Em realidade, enquanto regra, ela já é o resultado de uma ponderação, sendo ademais — e isto é fundamental — uma regra concretizadora de verdadeiros pilares do Direito Penal liberal plasmados na Constituição Federal.

Cumpre destacar o princípio da isonomia e a própria noção de Justiça como promessa estatal, porquanto fundamentam a previsão de retroação da novatio legis in mellius. O Direito Penal liberal, apesar de exigir norma incriminadora prévia, considera isonômico e justo que autores de crimes respondam por seus atos segundo regras a eles posteriores quando mais favoráveis.

Regras infraconstitucionais de direito intertemporal
Afirma o artigo 2°, parágrafo único, do CP que a "lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado". Tal texto legal, devidamente recepcionado pela Constituição de 1988, conflui para a mesma norma extraída de seu artigo 5°, XL.

Por outro lado, diz o artigo 2° do CPP que a "lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Trata-se, nesse caso, da regra geral do tempus regit actum, presente tanto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (artigo 6°) quanto no Código de Processo Civil (artigo 14), sempre assegurando a aplicação imediata de lei nova, bem como a validade dos atos praticados sob a vigência de lei anterior.

Postas as coisas nesses termos, cabe registrar que já se observa, na discussão em foco, um consenso quanto ao entendimento de que o artigo 28-A do CPP tem natureza mista, ou seja, prevê normas tanto processuais quanto materiais — claramente incidentes sobre o direito estatal de punir —, situação em que se afasta a aplicação imediata prevista para as normas puramente processuais.

É também verdade que um tratamento sistêmico da matéria vai além da distinção entre normas materiais e processuais. Como afirma Paulo Queiroz, normas penais, processuais penais e de execução penal são elementos de um mesmo fenômeno, isto é, o poder punitivo estatal em seus vários momentos de incidência [2].

A tese do marco temporal limitador
Pois bem, desde a edição da lei "anticrime", alguns intérpretes têm defendido que a retroação do artigo 28-A do CPP, embora inquestionável em razão da natureza mista do dispositivo, deve ficar sujeita a um marco ou limite temporal, que para uns seria o momento do oferecimento da denúncia e, para outros, o da prolação da sentença. Isso dito em linhas gerais, para fins de síntese nesta oportunidade, sem considerar variantes da tese.

O principal argumento esgrimido é o de que a aplicação do ANPP no curso do processo e, notadamente, após a sentença seria inconsistente com a natureza do instituto. Sustenta-se que o ANPP não foi concebido para acontecer durante o processo ou que, distinguindo-se da plea bargain norte-americana, não pode ocorrer após a sentença condenatória, quando já se tem um reconhecimento judicial de culpa.

As duas últimas afirmações são verdadeiras. O que elas não têm, todavia, é a força normativa necessária para constituir um óbice ou mesmo uma exceção à regra constitucional da retroatividade da norma penal mais benéfica. Recorde-se que análises de Direito Comparado produzem argumentos de tipo propositivo, relevantes à crítica e à legislatura, ou, no máximo, argumentos interpretativos de força limitada, como são, também, os argumentos conceituais. O único elemento normativo que poderia incidir para corrigir eventual incoerência grave na introdução de um novo instituto pelo legislador (com ou sem inspiração alienígena) seria um princípio fundamental do Direito pátrio. No caso, porém, os princípios fundamentais incidentes operam em favor da regra da retroatividade, como antes destacado.

Síntese dos argumentos em favor da retroação do artigo 28-A do CPP
Diversos artigos jurídicos e decisões dos nossos tribunais têm afirmado que o artigo 28-A do CPP, por ser norma penal mais favorável, retroage alcançando fatos anteriores à sua inserção pela lei "anticrime" [3]. A partir dos argumentos apresentados nessas manifestações e na parte inicial deste artigo, pode-se alinhar, ante a tese do marco temporal limitador, com a vênia de seus respeitáveis defensores, a síntese que segue.

1) À luz da moderna metodologia do Direito, a retroatividade da norma penal mais benéfica é entendida como regra, em relação à qual não existe exceção ou regra conflitante em nosso sistema, sendo ela inclusive uma concretização de pilares fundamentais do Direito Penal liberal.

2) A análise comparativa que distingue o ANPP da plea bargain norte-americana e disso extrai consequências interpretativas produz argumentos de força limitada. Assim, ainda que se entenda que a aplicação retroativa do ANPP após a sentença gera alguma incoerência com a natureza do instituto, tal incoerência deve ser resolvida, da melhor forma possível, de acordo com normas do sistema.

3) É natural que a aplicação retroativa de normas penais mais benéficas ocorra, muitas vezes, em momentos posteriores ao que lhe seria adequado em circunstâncias normais. Veja-se, por exemplo, o que diz o artigo 66, I, da Lei de Execução Penal (LEP): "Compete ao Juiz da execução: (…) I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado". Percebe-se, pois, que é próprio do sistema brasileiro aplicar norma penal mais benéfica em qualquer fase do processo, e até mesmo na execução da pena, sem qualquer consideração sobre o momento normal ou ideal de aplicação da nova norma. O que não é próprio do sistema vigente, por outro lado, é a imposição de uma limitação temporal a essa retroação.

4) Não pode a retroação do artigo 28-A do CPP depender de fatos externos à conduta do autor do crime, como seria o momento do oferecimento da denúncia, definido pelo membro do MP, ou o da prolação da sentença, definido pelo juiz. Isso afrontaria a necessária individuação das consequências penais segundo a conduta criminal praticada e, sobretudo, o princípio da isonomia. Como referido, a aplicação do instituto dependeria de fatos aleatórios, externos à conduta do autor do crime, quais sejam: ritmo do processo, vontade do MP e do juiz etc.

5) Incide no tema, ainda, o princípio da eficiência, pois sendo o ANPP um instrumento de política criminal destinado a favorecer a efetividade da resposta estatal e a desjudicialização de conflitos, deve ele ser manejado com consideração a esses objetivos.

6) Por fim, cabe notar o evidente paralelismo entre o tema em análise e aquele examinado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.719-9. Naquela oportunidade, o STF atribuiu leitura conforme ao artigo 90 da Lei nº 9.099/1995, afastando a proibição de retroação em relação às normas materiais. Confira-se a ementa:

"PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O artigo 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no artigo 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o artigo 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao artigo 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei".

Em razão de afirmações de que se estaria a fazer uma leitura superficial da decisão acima, limitando a análise a uma "leitura de ementa", cabe acrescentar que não há nos votos da concessão liminar, nem da decisão final qualquer ressalva que possa representar a adoção de uma limitação temporal à retroação da norma penal mais benéfica.

A ausência de interesse público para o oferecimento do ANPP
Diferente do entendimento pela não retroatividade tout court, após a denúncia ou a sentença, é a conclusão, no caso concreto, de que não há interesse público para o oferecimento do ANPP, situação que tende a ocorrer quanto mais adiantados estiverem o processo e a formação da culpa, quando então o não oferecimento fundamenta-se na falta de necessidade e suficiência para a reprovação e a prevenção da conduta, requisito previsto no caput do artigo 28-A do CPP.

A confissão para fins de celebração do ANPP perante o MP, mesmo que ocorra durante o processo, por retroação do artigo 28-A do CPP, não é, por certo, uma prova judicial nem muito menos um título contra o autor do crime. Por essa razão, a confissão não pode ser sobrevalorizada na análise do interesse público em fazer o acordo. Ocorre que o ANPP tem a dupla natureza de benefício individual e instrumento de política criminal (favorecendo efetividade, desjudicialização etc). Além disso, cabe apenas quando necessário e suficiente à reprovação e à prevenção do crime (artigo 28-A, caput, do CPP). Significa dizer que, sendo o ANPP uma disponibilidade regrada nas mãos do MP, deve ela ser utilizada considerando-se os interesses da sociedade e da própria vítima. Assim, formando-se a culpa, por exemplo, com o encerramento das instâncias ordinárias, esse interesse público em celebrar o acordo pode não mais estar presente.

Tal compreensão é reconhecida pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF no Enunciado 98, relativo à aplicação retroativa do ANPP: "É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, (…) podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP (…)" [4].

Conclusão
Conclui-se, assim, que o novo artigo 28-A do CPP, por ser norma penal mais benéfica, retroage alcançando fatos a ele anteriores, sem limites ou condições não previstas pelo artigo 5°, XL, da Constituição Federal. Por outro lado, não sendo o oferecimento do ANPP um direito subjetivo do autor do crime, mas um poder-dever do MP, como majoritariamente se entende, fica tal ato a depender de uma análise quanto aos requisitos legais, que podem não se verificar quanto mais adiantado o processo estiver.

 


[1] Bruno Sacramento, "A ponderação de regras e alguns problemas da teoria dos princípios de Robert Alexy", Revista Direito GV, v. 15, n. 2, São Paulo, 2019, disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/80273. Veja-se também Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 19a ed., São Paulo, Malheiros, 2019.

[2] Paulo Queiroz, "A aplicação da nova lei no tempo", Inovações da Lei n° 13.964 de 24 de dezembro de 2019, Coletâneas de Artigos da 2a Câmara de Coordenação e Revisão, Brasília, MPF, 2020, disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/coletaneas-de-artigos/coletaneas-de-artigos.

[3] Confira-se, por exemplo, Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli, "Quais caminhos o STJ pode seguir na aplicação retroativa do ANPP?" Canal Ciências Criminais, disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/quais-caminhos-o-stj-pode-seguir-na-aplicacao-retroativa-do-anpp/.

[4] Enunciados da 2a Câmara de Coordenação e Revisão, disponíveis em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados.

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