Sim, ao sentir dele, porque, mais adiante, diz que decide assim por livre convencimento. Não está na hora de falar sobre isso? Só aqui já temos um problema que é a ferida narcísica da dogmática jurídica.
1. É possível analisar a decisão ignorando a humilhação da moça?
Para mim, o maior erro que está sendo cometido — inclusive pela ConJur — é pensar que é possível cindir-separar a sentença do restante do processo.
Explico: Dizer "ah, aconteceu tudo isso, mas o juiz acertou" é como dizer que, "tirante os estupros, o médico Roger A (que pegou 260 anos de prisão) era um bom sujeito". Não fossem as torturas, prisões, a ditadura até que…
Hitler não era um mau sujeito. Tirando o antissemitismo, o racismo, o autoritarismo, a violência, os campos de concentração… pintava bons quadros e cuidava dos gatinhos, ouvi dizer. Não fosse aquilo…
Aos fatos. A história todos já conhecem: moça de 21 anos alega ter sido estuprada em estado de vulnerabilidade. O Ministério Público assim denunciou. O réu chegou a ser preso. Segundo a sentença, não foi provado que havia vulnerabilidade. Estavam presentes, todavia, provas de esperma do réu e sangue da vítima, que alega ter sido desvirginizada.
Não vou examinar a decisão sob o prisma da correção ou da incorreção. Há algo que contamina todo o feito. Por isso, discordo de que seja possível isolar a sentença e dizer "o juiz não errou ou o juiz errou". Uma sentença só é sentença em seu todo. Você não separa algo daquilo que é condição-de-possibildiade-de-algo. Abstraia a sentença do conjunto e você não tem mais sentença. Não há subtilitas intelligendi, explicandi e applicandi: há, sim, apenas Applicatio! Não se lê, não se interpreta e não se julga em fatias.
Por que digo isso? Porque vi o vídeo. Dá inveja aos filmes trash americanos sobre júri. Advogado do réu humilhou a vítima. Foi estupro moral. E, por terem visto tudo aquilo e nada terem feito, juiz e promotor se tornaram suspeitos. Porque, ao nada fazerem para impedir o massacre da vítima, concordaram por omissão — provavelmente porque já tinham formado seu "livre convencimento" de que o réu deveria ser absolvido.
Juiz não é responsável pela audiência, afinal?
Assim, a sentença jamais poderia ter sido exarada por esse juiz. Nem as alegações poderiam ser feitas pelo promotor. Simples assim.
2. A nulidade desde a primeira 'pegada" do causídico e cuidado com a armadilha
Aliás, na primeira "pegada" do defensor, o juiz deveria ter feito dura intervenção. Ao não fazer, contaminou o restante do processo.
Por isso, afirmo que quem diz que a sentença está correta está caindo em uma armadilha — uma contradição secundária do problema. Com o que se viu, o processo é nulo, írrito e nenhum, ao menos a partir daquele momento processual. Você não separa a parte do todo quando não há parte sem o todo.
Foi tão terrível o episódio que o Ministro Gilmar Mendes postou no Twitter que o sistema de justiça não pode ser instrumento de tortura e que os órgãos correcionais devem ser acionados, inclusive para verificar a omissão. Corretíssimo.
3. O "sentir do juiz" e por que "o sistema acusatório não quer dizer 'abrir um ringue' e deixar a parte mais fraca apanhar"
Impressionou-me que o juiz tenha dito que, "ao sentir dele", a palavra da vítima não tinha conseguido… (…). OK. Mas, indago: a palavra da vítima tem importância porque o juiz "sente" isso ou porque os autos (questão externa ao juiz) assim devem demonstrar? Jacinto Coutinho, citado pelo juiz, não concordaria com isso. Tampouco juristas do quilate de Jacinto Coutinho e Ferrajoli concordariam com o fato de que, ao defenderem o sistema acusatório, admitiriam que um advogado poderia humilhar uma vítima. Acusatório não quer dizer "abrir um ringue", data vênia. Assistir parado o fraco apanhar? Impressionante. É mesmo possível fazer coisas com palavras. Até reivindicar Ferrajoli e Jacinto enquanto assiste a uma afronta à dignidade de uma vítima na audiência que tem a responsabilidade (política, moral, epistêmica, jurídica) de presidir.
4. Pequena anamnese
Tecnicamente, registro:
(i) Há(via) assistente de acusação, que deverá recorrer;
(ii) De fato, não havia prova de vulnerabilidade (ao que se vê da sentença). Isto porque o exame toxicológico foi conclusivo nesse ponto.
(iii) Porém, por outro lado — isso é relevante —, a perícia indicava conjunção carnal recente com presença de esperma do acusado e sangue da vítima (inclusive, a vítima teria perdido a virgindade). É fato. Porém, como disse que não examinaria o mérito stricto sensu, não abordarei a questão de uma possível mutatio libelli.
Como referi, o problema deste caso é outro, porque há uma nulidade incontornável: a forma como foi submetido o "interrogatório" da vítima. Digo interrogatório porque me pareceu, naquele momento, que ela é que estava sofrendo todas as agruras do processo penal na condição de acusada.
Os questionamentos lançados pela defesa tiveram alto grau de misoginia e pré-juízos típicos de pensamentos altamente conservadores e fundamentalistas (para ser elegante nas adjetivações).
Isso só não foi pior que o silêncio constrangedor do Ministério Público e do juiz. Aliás, no caso do TJ-SP, recente, também ali o MP se quedou silente. O que há com o MP? O Ministério Público é, bem, Ministério Público. Não é parte. É instituição.
O caso do juiz é ainda mais grave, pois deveria presidir o ato e impedir o tratamento degradante conferido à vítima, o que denota a falta de imparcialidade deste no conduzir da causa (assim como do MP).
5. O tal "estupro culposo" fruto de citação "prenhe de vazio"
Não, não houve absolvição por "estupro culposo". Lenda urbana. Na verdade, o juiz usou uma frase daquelas "prenhe de vazio e de obviedade", isto é, de que o estupro não admite modalidade culposa. Pergunto: tem de citar um livro para ficar "seguro" de que não há "estupro culposo"? A que ponto chegamos? Bonjour, cit. Baudelaire apud…!.
Mas aí pode haver mais coisa. Nenhuma palavra escapa ilesa. Explico: ao fazer referência a um livro que diz que "não há estupro culposo", o juiz pode ter caído em uma implicatura de Paul Grice (quando se fala, diz-se muito implicitamente!). Ou, como dizia John Austin (o linguista), o juiz fez coisas com palavras (desnecessárias). Parece aí haver um perlocucionarismo implícito. Um fator Grice-Austin. Ao não dizer, disse, mesmo que não quisesse dizer e, no entanto… e produziu coisas… Basta ver por aí. Há muito que é dito no não dito.
E, não de novo, a sentença não pode ser analisada isoladamente e, assim, ser "salva" do circo dos horrores da audiência. Está envenenada. A sentença sem aquilo que lhe antecede é uma girafa de pescoço curto. Já não é mais uma girafa.
Observação a latere: se o juiz defende o acusatório, a ponto de dizer que, se o MP pede absolvição, o juiz tem de atender, então não é esse o sistema acusatório que democratas devem seguir. Explico: sistema acusatório quer dizer mais democracia, menos autoritarismo. Jamais uma inércia, deixando a vítima levar uma surra. Ou seja: se o sistema acusatório é esse da audiência, então "me incluam fora dessa".
Outra vez: o grande absurdo jurídico do caso foi a condução da audiência, que deve ser anulada — por evidente, assim como todos os atos posteriores, incluindo a sentença — seja em função de uma suspeição do magistrado, pela sua conivência com a degradação moral da vítima, seja em razão da violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Enfim, foi um filme trash. Mas todos vimos o zíper da roupa do monstro. Como se sabe, um filme trash é feito a sério; porém, o diretor esquece de esconder a fantasia do monstro — como em Tomates Assassinos, dava para ver o zíper…!
Mas o ponto é que vimos o zíper. E agora? Vamos fingir que não vimos, e o show deve continuar, e "o juiz está certo"?
E, ainda:
(i) O conjunto da obra apenas mostra que parece estarmos diante de um réquiem de uma dogmática jurídica que se esgotou.
(ii) De tanto escreverem facilitadinho, de tanto o ensino jurídico ser fragilizado, de repente, vê-se que o rei ficou nu.
(iii) Sim, tudo isso que se viu — e o que ocorreu no TJ-SP dias atrás —, tudo isso é produto de muito "esforço", resultado de: direito simplificado, resumido, coisas como "direito é só um instrumento", concursos decoreba, direito é "assim mesmo", "direito é o que os tribunais dizem que é" (realismo à brasileira) e coisas desse tipo. Direito virou um mero agir estratégico.
(iv) A conta vem com juros de cartão de crédito. A conta vem com "ao meu sentir", cuja consequência é o réu ou a vítima passar a depender de subjetivismos, cujo nome "técnico" é livre convencimento, embargos rejeitados com esse mesmo argumento, com espetacularização de audiências e quejandos. É isso que a dogmática jurídica não entende ou finge não entender.
(v) E nada disso "é grátis": vejo por aí gente fazendo treinamento de como melhor usar falácias em juris e audiências, treinando "como se aperta uma testemunha ou vítima". Bom, um dia isso explode…
(vi) Resultado: parece que tem advogado que pega logo isso.
Triste. E parece que — e vejam, quem diz isso é um otimista — estamos lascados. Já não tem volta. Já tinha ouvido uma desembargadora dizer, com orgulho, que jamais tinha concedido liminar em HC; já vi prisão de ofício no bojo de HC… vi e vejo tanta coisa…
Eles venceram.
Pirro venceu!
Uma frase final: no relatório da sentença, o juiz… não fez constar nada, nada mesmo do que aconteceu! Nem o MP em suas alegações. Só para deixar bem claro!