Opinião

O Projeto CNJ e a decadência das ações coletivas no Brasil

Autor

  • Antonio Gidi

    é professor na Faculdade de Direito da Universidade de Syracuse onde ensina Direito Processual Civil Responsabilidade Civil Ações Coletivas e Direito Comparado professor colaborador do PPGD da UFBA doutor e mestre pela PUC-SP e doutor pela Universidade da Pensilvânia.

5 de novembro de 2020, 15h41

O CNJ apresentou uma proposta de Lei de Ação Civil Pública, o PL 4.778/20 (Projeto CNJ). O Projeto CNJ apareceu de surpresa, no meio de uma pandemia, sem debate acadêmico ou popular. O objetivo, segundo o site publicitário do CNJ, seria "aperfeiçoar o marco legal e institucional que regula as ações coletivas (…), aprimorar a atuação do Poder Judiciário (…) e corrigir anomalias e incoerências que geram falta de unidade do Direito e potencial insegurança jurídica". Mas não faz nada disso; o seu real objetivo era outro.

O Projeto CNJ é um presente para os bancos, para as grandes empresas e para o Estado. Parece que só eles foram representados perante o CNJ: é como se os grandes litigantes repetitivos tivessem feito uma listinha com os seus mais recônditos desejos e algum estagiário do CNJ publicou essa lista por engano, em vez do projeto verdadeiro.

Já o grupo titular do Direito foi um saco de pancadas do Projeto CNJ. E quem perde são grupos específicos e direitos específicos: consumidores, mulheres, negros, investidores, crianças, pessoas com deficiência, trabalhadores, usuários de serviços públicos, comunidade LGBT, a ordem econômica, o patrimônio público e social, o meio ambiente. Todos aqueles direitos listados no artigo 1º da LACP (que, aliás, fica revogado) saíram perdendo com o Projeto CNJ.

Os retrocessos mais graves do Projeto CNJ
O Projeto CNJ contém dezenas de normas mal escritas, desnecessárias e atécnicas. A maioria representa retrocessos para a tutela coletiva, além de ser a perda de oportunidade histórica de aprimorar o sistema. Faço uma análise mais detalhada do Projeto CNJ em outro trabalho [1]

Neste artigo me limitarei a comentar apenas as três normas mais perversas: a não interrupção da prescrição individual na pendência da ação coletiva e as duas normas sobre despesas e sucumbência. A genialidade dessas normas é que elas são aparentemente neutras: o leitor desatento, aquele que desconhece a realidade dos conflitos de massa, não compreenderá como elas afetam o delicado equilíbrio das ações coletivas, prejudicando sistematicamente os grupos e beneficiando sistematicamente os réus.

A não-interrupção da prescrição com a propositura da ação coletiva
O artigo 26, § 4º do Projeto CNJ prevê que "a propositura da ação coletiva não interrompe a prescrição para ações individuais".

Essa norma é uma armadilha cruel para os membros do grupo que confiaram na ação coletiva e não propuseram suas ações individuais. Caso o processo coletivo venha a ser extinto sem resolução de mérito depois do prazo prescricional, o direito de todos os membros do grupo perece. Ninguém poderá propor a sua ação individual.

Não há motivo moral ou juridicamente legítimo para se adotar essa norma. Segundo a exposição de motivos do Anteprojeto CNJ, "admitir que prevaleça certa posição jurisprudencial no sentido da interrupção da prescrição implica, praticamente, a criação de prazos infinitos". O deboche com que a exposição de motivos se refere a "certa posição jurisprudencial" é injustificado: essa é a posição firme do STJ [2]Aliás, essa é a posição em todo o mundo. Desconheço jurista brasileiro ou internacional sério que defenda a posição tomada pelo Projeto CNJ.

Ademais, é disparatado dizer que os prazos prescricionais serão "infinitos". Afinal, a ação individual civil e penal sempre interrompeu a prescrição no Brasil (e em todo mundo) e ninguém jamais ousou dizer que o prazo prescricional seria infinito [3].

Um dos principais objetivos de uma ação coletiva é reduzir o número de demandas individuais. Para que isso ocorra, porém, os membros do grupo precisam confiar nas instituições e no resultado do processo coletivo. É um contrassenso, portanto, que o prazo prescricional das pretensões individuais continue a correr na pendência da ação coletiva. Essa norma inusitada do Projeto CNJ é um convite para os membros do grupo ajuizarem ações individuais, ainda que haja ação coletiva em curso com objeto correspondente.

Isso nos remete ao caso infame dos poupadores lesados com os planos econômicos heterodoxos das décadas de 80 e 90, em que o STJ equivocadamente alterou seu entendimento anterior sobre prescrição, para aplicar o prazo quinquenal nas ações coletivas, ainda que o prazo nas ações individuais em tutela do mesmo direito material fosse vintenário [4]. A extinção súbita dessa ação coletiva fez com que os poupadores que aguardavam de boa fé a resolução da ação coletiva tivessem que propor milhares de ações individuais. O problema foi que o prazo prescricional das pretensões individuais já tinha escoado. Alguns julgados, acertadamente, consideraram que a propositura da ação coletiva havia interrompido a prescrição das pretensões individuais [5], mas outros consideraram, equivocadamente, que não teria havido a interrupção [6]. O direito de muitos poupadores prejudicados desapareceu de um dia para o outro, pelo passe de mágica de uma filigrana jurídica inventada pelo autoproclamado Tribunal da Cidadania para favorecer réus reconhecidamente violadores de direitos e prejudicar os cidadãos.

O Projeto CNJ vem agora legitimar retroativamente uma situação que tanto prejudicou a população brasileira. E o que achamos absurdo alguns anos atrás vai passar a ser a realidade de todos os dias.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é regra incontroversa há meio século que "o prazo prescricional das pretensões individuais dos membros ausentes [é] interrompido com a propositura da ação coletiva [e] recomeça a correr quando a ação é extinta [7]". De acordo com a minha proposta de CPC Coletivo, "a propositura da ação coletiva interromperá o prazo prescricional das pretensões individuais e transindividuais relacionadas com a controvérsia coletiva [8]". A mesma norma foi adotada em todas as propostas brasileiras de codificação do processo coletivo… até hoje.

O Projeto CNJ deveria ter corrigido o erro do STJ e previsto expressamente que o prazo prescricional na ação coletiva é o mesmo do direito material pleiteado e que a propositura da ação coletiva interrompe o prazo prescricional das pretensões individuais. Claramente não houve interesse político para resolver essa questão da melhor forma para os cidadãos brasileiros.

Despesas e sucumbência para associações
No Direito atual, os autores de ações coletivas não adiantam custas ou quaisquer outras despesas nem são condenados em honorários advocatícios, custas e despesas em caso de sucumbência, salvo associações agindo em má-fé (CDC, artigo 87 e LACP, artigo 18). Essas normas foram fundamentais para o desenvolvimento do processo coletivo no Brasil.

O Projeto CNJ vira o sistema vigente de cabeça para baixo, ao prever em seu artigo 35 que "aplicam-se às ações coletivas as regras relativas às custas e à sucumbência do Código de Processo Civil".

Se o Projeto CNJ for promulgado, a associação terá que pagar custas no momento da propositura do processo coletivo. Essas custas podem ser significativas, o que, por si só, pode desencorajar a propositura de ações coletivas meritórias. E o pior nonsense: dez mil ações individuais poderão obter a gratuidade da Justiça, com despesa imensa para o Poder Judiciário, mas a ação coletiva, não.

Além disso, a associação pagará honorários sucumbenciais em caso de o processo ser julgado improcedente por qualquer motivo. Uma associação estará sujeita à falência com a simples propositura de uma ação coletiva. Se o Projeto CNJ for promulgado, o processo coletivo proposto por associações acabará, um resultado que só interessa aos grandes litigantes repetitivos.

Sucumbência para o Ministério Público e a Defensoria Pública
A norma de honorários de sucumbência para o Ministério Público e para a Defensoria Pública também é um retrocesso. O artigo 35, parágrafo único do Projeto CNJ prevê que essas entidades serão responsáveis pelos ônus sucumbenciais, se a ação coletiva for "tida como manifestamente infundada, por decisão unânime".

Essa norma gerará um transtorno em todos os Ministérios Públicos e Defensorias Públicas do país. Seus membros têm independência funcional para propor ações dentro de seu âmbito de atribuição e as instituições não podem impedi-los. Qualquer promotor ou defensor, em qualquer cidade do país, poderá gerar um prejuízo enorme para sua instituição. É o próprio Estado e os cofres públicos que serão prejudicados.

Não há dúvida de que pode haver excesso do MP ou da defensoria, e que qualquer um dos seus membros pode propor ações coletivas que gerem prejuízos enormes para os réus. Mas se esse é o problema que preocupa o Projeto CNJ, que enfrente especificamente essa questão.

Ademais, a expressão "manifestamente infundada" é um conceito aberto. A lei sequer exige má-fé. Uma ação que propusesse o reconhecimento da união homoafetiva seria "manifestamente infundada" no ano anterior àquele em que sua validade foi declarada pelo STF. Várias ações podem ser consideradas "manifestamente infundadas" por muitos anos antes de serem aceitas como pacíficas. Isso faz parte do próprio desenvolvimento do direito. O Projeto CNJ criará, com essa norma, um ambiente de instabilidade e insegurança, que é contrário à segurança jurídica que alega buscar.

Também essa norma tem beneficiário certo: os grandes litigantes repetitivos.

O efeito de alterar as normas de sucumbência nas ações coletivas
Ao alterar as normas de sucumbência, o Projeto CNJ intimida as instituições mais ativas na propositura das ações coletivas e limita o acesso à Justiça dos grupos sociais. Trata-se de um ataque frontal às associações, ao Ministério Público e às Defensorias Públicas. É uma ameaça velada, disfarçada em forma de dispositivo legal.

O risco se agiganta porque o artigos 82-97 do CPC, que regulam os honorários de sucumbência, criaram um sistema caríssimo para as partes, inclusive vedando a compensação em caso de sucumbência parcial.

Ademais, a imensa responsabilidade financeira gerada pelo Projeto CNJ para os representantes do grupo é despropositada. Os honorários de sucumbência não são sequer destinados para as empresas rés, mas para os seus advogados. Isso porque o Estatuto da Advocacia, desde 1994, transferiu para os advogados os honorários de sucumbência, que tradicionalmente pertenciam à parte vitoriosa. E o CPC de 2015 jogou sal na ferida, aumentando ainda mais esse ônus para a sociedade, em benefício dos interesses corporativos dos advogados. Mas esse é tema para outra briga, quer dizer, para outro artigo.

Conclusão
Em vez de tornar as ações coletivas mais efetivas, o Projeto CNJ restringe o acesso à Justiça. Aliás, um dos objetivos fracassados do Projeto CNJ foi extinguir a ação coletiva em tutela dos direitos individuais homogêneos deixando em seu lugar o patético IRDR. Se a coisa continuar assim, talvez esteja na hora de criar um "órgão externo" para controlar o CNJ.

As principais falhas do Projeto CNJ não se devem à falta de experiência ou à ausência de bons modelos, mas a escolhas políticas maléficas. O trabalho de confeccionar um CPC Coletivo inovador e efetivo, que equilibrasse os interesses do grupo e do réu, já foi realizado quase duas décadas atrás, quando apresentei o projeto original de CPC Coletivo em 2003 [9]. Houve algum debate, mas o tema virou tóxico e foi enterrado por vaidade acadêmica. Aqui, aqui e aqui. Dois outros projetos derivados foram publicados. Eles eram ruins apenas porque eram mal concebidos, não porque prejudicavam a sociedade, como é o caso do Projeto CNJ. Como fruto desse debate, uma comissão de notáveis juristas preparou o excelente Projeto de Lei 5.139/2009, arquivado por falta de vontade política. Se o país tivesse aproveitado aquela oportunidade e aprimorado a ação coletiva dez anos atrás, o nosso Direito Processual coletivo estaria em outro patamar e o CNJ não teria espaço para tentar esvaziá-lo.

A prática e a doutrina das ações coletivas chegou a um nível demasiadamente elevado para retroceder. Se o Projeto CNJ for promulgado, o Direito Processual Civil coletivo brasileiro retrocederá quatro décadas, e voltaremos para um estágio anterior à Lei da Ação Civil Pública, de 1985. Os juristas brasileiros do futuro olharão para trás sem entender o que aconteceu. Perderemos espaço na vanguarda e passaremos a ter vergonha: de motivo de inveja mundial, passaremos a ser objeto de desprezo. E ainda há o sério risco de que o Congresso transforme o Projeto CNJ em algo ainda pior: o Projeto CNJ é muito ruim, mas não tão ruim que não possa ser piorado.

O Projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública é uma traição aos princípios do processo coletivo e aos interesses dos brasileiros. Se levado adiante, será uma mácula no jovem Conselho Nacional de Justiça. Que tenha a recepção que mereça.


[2] AgInt no REsp 1878630 — SP, relator ministro Sérgio Kukina, DJ 24/09/2020 ("É firme nesta corte o entendimento segundo o qual o ajuizamento de ação coletiva interrompe a prescrição para fins de manejo de ação individual").

[3] Para citar apenas o Direito Processual Civil e Penal brasileiro, v. CPC-39, artigo 166, V; CPC-73, artigo 219 e 617; CPC-15, artigos 240, § 1º e 802; Código Penal, artigo 117.

[4] REsp 1.070.896/SC, relator ministro Luis Felipe Salomão, DJe 4/8/2010. Esta decisão foi um golpe na população brasileira, com o objetivo de proteger os interesses dos bancos. O seu equívoco é manifesto, mas isso é assunto para outro artigo.

[5] REsp 1426620 – RS, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, DJ 12/08/2015.

[6] Reclamação 22.484 — RS, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJ 05/12/2014.

[7] Antonio Gidi, A class action como instrumento de tutela coletiva de direitos, 2007, p. 315.

[8] Antonio Gidi, Código de Processo Civil Coletivo, RePro, vol. 111, 2003, pp. 192-208 (artigo 8, "Interrupção da prescrição"). V. ainda Antonio Gidi, Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo, 2008, pp. 135-144.

[9] Antonio Gidi, Código de Processo Civil Coletivo, RePro, vol. 111, 2003, pp. 192-208. V., ainda, Antonio Gidi, Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo, 2008.

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    é professor na Faculdade de Direito da Universidade de Syracuse, onde ensina Direito Processual Civil, Responsabilidade Civil, Ações Coletivas e Direito Comparado, professor colaborador do PPGD da UFBA, doutor e mestre pela PUC-SP e doutor pela Universidade da Pensilvânia.

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