Opinião

Consulta pública à Carta Brasileira para Cidades Inteligentes

Autor

  • Isadora Formenton Vargas

    é advogada de Direito Público no RMMG Advogados. Mestra em Direito (UFRGS) e em Argumentação Jurídica (Universitá degli Studi di Palermo). Especialista em Gestão Governança e Setor Público (PUC-RS). Professora na Faculdade de Direito João Paulo 2º em Porto Alegre.

4 de novembro de 2020, 9h13

No último dia 19, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) abriu consulta pública sobre os objetivos estratégicos e recomendações que integram a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. A carta é de iniciativa da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento regional (SMDRU/MDR), em diálogo com a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. A participação é aberta a toda a sociedade e poderá ser feita até 7 de novembro por meio da Plataforma Participa + Brasil [1].

A relevância da divulgação da referida consulta pública possui inúmeras justificativas. Em recente estudo elaborado pela Comissão Europeia sobre Inteligência Artificial no Poder Público, faz-se referência à necessidade de reforma da Administração Pública para conduzir à inovação possibilitada pelas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) [2].

Dessa forma, o impacto da governança digital e das TICS, além da futura implementação da internet 5G, são alguns dos instrumentos responsáveis por novas formas de viver e compartilhar o espaço público, sem dispensar, entretanto, impactos também na esfera privada dos indivíduos, motivo pelo qual merecem constante acompanhamento e fiscalização que visem às melhores práticas.

De acordo com o MDR, o Processo Carta foi lançado em março de 2019, com o desenvolvimento de várias atividades desde então, resultando no Produto Carta, documento dividido em três partes: o contexto brasileiro (por que, para que e para quem foi feita essa carta); a agenda pública (conceito, princípios, diretrizes, objetivos estratégicos e recomendações); e perspectivas futuras.

A Carta está sendo elaborada para: definir "cidades inteligentes" no contexto brasileiro; apresentar uma agenda pública articulada para "cidades inteligentes" no contexto brasileiro; disponibilizar uma estrutura para indexar iniciativas de "cidades inteligentes"; apoiar os municípios e demais agentes em suas ações locais para cidades inteligentes; consolidar e manter ativa a Comunidade da Carta Brasileira para Cidades Inteligentes.

Diante da breve apresentação, uma primeira dúvida surge quanto à definição de cidade inteligente no contexto brasileiro, primeiro objetivo da carta. Isso porque, de acordo com a União Internacional de Telecomunicações (UIT), existem, pelo menos, 116 definições de cidade inteligente diluídas em aproximadamente trinta dimensões, entre elas: acessibilidade, segurança, economia, educação, transporte e mobilidade, telecomunicações, abastecimento elétrico e hidráulico, governança, cidadãos, saúde. No relatório da UIT, a necessidade de uma compreensão acerca da definição do conceito é fundamental para direcionar a tecnologia da informação, especialmente quanto a políticas relacionadas à segurança de dados [3].

Um dos objetivos estratégicos abertos à consulta pública é o de "3: Esclarecer sistemas de governança de dados e de tecnologia, com transparência, segurança e privacidade". Assim, percebe-se a relevância de aplicação conjunta da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no âmbito da Administração Pública — e, do que couber, em relação a entidades privadas parceiras —, e da Lei de Acesso à Informação (LAI).

A Lei de Acesso à Informação preconiza e ratifica a transparência das informações, inclusive porque sigilo, à Administração, é exceção, diferentemente das informações privadas, cuja lógica é inversa. Assim, publicidade e transparência impõem à Administração, em relação à proteção de dados, o que dispõe a LGPD, especialmente, no inciso X do artigo 6º, quanto à responsabilização e prestação de contas, bem como no artigo 50, que trata das boas práticas e governança.

Ao operar e tratar dados, o poder público, diante do acesso massivo e relevante em termos políticos e sociais, além de econômicos — uma vez que dados são também ativos e matéria-prima a novas formas de consumo —, possui papel fundamental à garantia de segurança dessas informações, mesmo quando adquire tecnologia à implementação das cidades inteligentes por meio de parcerias e contratos com entidades privadas.

Essa relação de compartilhamento e disponibilização de dados ficou bastante conhecida no caso da Medida Provisória nº 954/2020, no contexto da pandemia gerada pela Covid-19, a partir da qual seria possível que empresas de telecomunicação prestadoras de serviços de telefonia fixa e móvel pessoal no país devessem disponibilizar à Fundação IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas. O Supremo Tribunal Federal, ao referendar a medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.389/DF, consolidou importante marco jurisprudencial à tutela da autodeterminação informativa no Brasil, mesmo anterior à vigência da LGPD, com atenção à limitação da finalidade, da minimização e, se possível, da anonimização.

Portanto, acesso e tratamento aos dados coletados pelo poder público representam pontos sensíveis e merecedores de análise prévia, fiscalização constante e guias às melhores práticas que garantam ao poder público autonomia e independência, de forma que seja possível, também, estender aos cidadãos, com papel ativo.

As tecnologias da informação, em resumo, devem servir à promoção de mecanismos de tutela à autodeterminação informativa, bem como aos demais direitos fundamentais em exercício na sociedade da informação.

O que se pretende consolidar é o papel emancipador da transformação digital à sociedade, e não de dominação ou vigilância. Para isso, é preciso viabilizar a participação democrática, de modo que importa a ampla divulgação da consulta pública quanto à temática das cidades inteligentes. Fundamental, também, que a sociedade passe a perceber a importância da proteção de dados como instrumento de cidadania, garantindo-se a liberdade negativa, contra intervenções arbitrárias.

 

Referências bibliográficas
— GOVERNO FEDERAL. Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/carta-brasileira-para-cidades-inteligentes4. Acesso em: 30 out. 2020

— INTERNATIONAL TELECOMMUNICATION UNION. Smart Sustainable Cities: An Analysis of Definitions. ITU-T Focus Group on Smart Sustainable Cities, Telecommunication Standardization Sector of the International Telecommunication Union, 2014.

— MISURACA, Gianluca; VAN NOORDT, Colin. Overview of the use and impact of AI in public services in the EU. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2020.

 


[1] GOVERNO FEDERAL. Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/carta-brasileira-para-cidades-inteligentes4. Acesso em: 30 out. 2020.

[2] MISURACA, Gianluca; VAN NOORDT, Colin. Overview of the use and impact of AI in public services in the EU. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2020, p. 69.

[3] INTERNATIONAL TELECOMMUNICATION UNION. Smart Sustainable Cities: An Analysis of Definitions. ITU-T Focus Group on Smart Sustainable Cities, Telecommunication Standardization Sector of the International Telecommunication Union, 2014, pp. 09-12.

Autores

  • Brave

    é mestre em Argumentação Jurídica pela Universidad de Alicante (ESP) e Università degli Studi di Palermo (ITA), mestranda e graduada pela UFRS, associada ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc) e assessora do Procurador-Geral do Ministério Público de Contas (TCE-RS).

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