Opinião

O STJ na encruzilhada: há ou não segurança jurídica nas concessões brasileiras?

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4 de novembro de 2020, 18h22

O STJ está prestes a decidir sobre um tema que definirá se ele continua a ser o tribunal da estabilidade e confiabilidade dos marcos regulatórios do país — ou se assumirá o risco de abrir as portas para a insegurança jurídica no setor de infraestrutura [1].       

No julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 2.792/RJ, a Corte Especial do STJ se pronunciará sobre se as concessões de obras e serviços públicos — rodovias; ferrovias; água e saneamento; gás canalizado; energia elétrica; aeroportos etc. — podem ser livremente retomadas pelos poderes públicos.

A questão de fundo é simples: lei municipal  autorizou a encampação dos serviços concedidos. Ao invés de indenização em dinheiro, a prefeitura ofereceu bens públicos em garantia e remeteu a apuração da indenização a futura prova pericial. Assim, se autoatribuiu a ordem de encampação imediata, postergando a indenização, que deveria ser prévia, para uma  data futura e incerta.

Mas o processo de encampação é regido pela Lei Geral de Concessões, a Lei nº 8.987/1995. Seu artigo 37 determina que o serviço pode ser retomado, desde que atendidas as seguintes condições: 1) lei autorizativa expressa; e 2) prévio pagamento de indenização. O pagamento da prévia indenização exige a plena "indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados" (Lei nº 8.987/1995, artigo 36).

Perante a Justiça estadual, a encampação fora suspensa para que se decidisse antes o valor da indenização — e de sua liquidação. Em liminar na SLS nº 2.792/RJ, o presidente do STJ entendeu que as irregularidades na execução do contrato seriam  tamanhas que a "defesa do bem comum" autorizaria a imediata encampação. Isso sem se pronunciar sobre o pagamento da indenização exigida em lei.

Esse é o cenário de fundo, que autoriza muitos temas para o debate. Selecionamos três deles: 1) a contrariedade da decisão face à LINDB; 2) os contratos de concessão como negócios jurídicos de investimento de longo prazo; e 3) a encampação e respectiva liquidez da indenização prévia.

Os artigos 20 e 21 da LINDB vedam decisões de autoridades públicas que se baseiem unicamente em valores abstratos. Elas devem, diz a lei, levar em conta — como condição de validade — suas "consequências práticas".

Não nos parece possível deixar de lado a LINDB em qualquer hipótese. Mesmo nos casos de suspensão de liminar, é imprescindível analisar o caso concreto e as efetivas consequências que a decisão gerará. O direito não incide no vazio normativo puro, mas na vida real. Especialmente porque casos como o ora analisado possuem desdobramentos em outros tantos, instalando incentivos ou desestímulos a todos aqueles que cogitem fazer investimentos em projetos de interesse público. O que nos traz o segundo tema.

Contratos de concessão de serviço público não envolvem desembolso de verbas públicas (ao contrário do que se passa nas empreitadas de obras), mas investimentos privados de longo prazo. O edital de licitação convoca investidores a fazerem aportes significativos de recursos privados em obras e serviços públicos, geralmente nos primeiros anos de contrato. Em contrapartida, a lei garante que tais investimentos sejam remunerados ao longo do contrato.

Num cenário deste tipo, a segurança jurídica é peça-chave: se os investidores tiverem dúvidas quanto ao cumprimento dos seus contratos e à possibilidade de terem os seus investimentos remunerados ao longo do tempo, eles evitarão participar das licitações. Ou cobrarão preço mais elevado. Isso acarreta o sacrifício do "bem comum", traduzido em mais investimentos, melhores serviços e na prestação adequada de serviços de interesse coletivo.

Daí por que a lei previu condições fechadas e rigorosas para a hipótese extraordinária de encampação. Se o poder público decidir por retomar a concessão, haverá de ser autorizado para tanto pelo legislativo (requisito político) e precisará promover a indenização prévia do concessionário (requisito econômico-financeiro). E, quando a lei exige pagamento anterior à encampação, o intérprete não pode ler "pagamento a ser definido no futuro, mas garantido por bens públicos inalienáveis".

Se for possível encampar sem prévia e justa indenização, o contrato de concessão se transformaria num jogo com regras aleatórias. A depender do governante, a concessão seria extinta no dia seguinte à posse — e a prova pericial, que dura décadas, seria garantida por bens que não podem ser transferidos às pessoas privadas.

Ou seja, nas próximas licitações, não haverá interessados. Ou, pior: apenas acudirão aventureiros, que não se preocupam com o dia de amanhã em contratos que perdurarão por mais de 20 anos. E os governantes ímprobos serão estimulados a fazer negócios escusos, invocando a ameaça de encampar e não pagar coisa alguma a quem quer que seja. Quem, em sã consciência, investiria em contratos com esse grau de insegurança?

Por fim, o terceiro assunto é apenas o desdobramento do segundo. Se a lei fala em prévia indenização, ela necessita ser líquida e certa. A encampação é uma decisão pública que, para ser exercitada, exige que a indenização seja apurada e paga. Não se admite submetê-la ao regime de discussão judicial e precatórios. Determinar o valor da indenização em perícia posterior à encampação significa que ela não será prévia.

Em suma, o STJ não irá julgar um caso isolado. Irá decidir o futuro dos investimentos privados em infraestrutura no Brasil. Manter a decisão da Prefeitura do Rio de Janeiro significa colocar fim nos programas de concessão, parceria e contratações públicas. Decisões pretéritas do STJ sobre incolumidade de tarifas, reequilíbrio contratual ou arbitragem nestes contratos foram responsáveis em grande parte pelo sucesso desses programas. Será trágico se o próprio Tribunal da Cidadania puser tudo isso a perder.


[1] Os autores pedem licença para cumprir com o dever de revelação: além de professores de Direito Administrativo e Direito Econômico, todos são — ou foram — advogados de concessionárias de serviços públicos (nenhum deles atua no caso concreto). Inclusive, um deles proferiu parecer técnico imparcial no caso em análise, com exame e argumentos próprios (que aqui não foram reproduzidos). As ideias trazidas a debate não são novas nem inéditas em sua bibliografia, mas constam de livros e artigos acadêmicos escritos pelos autores, quando menos desde 1997.

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