Opinião

Os direitos sociais como limites ao poder de reforma constitucional

Autor

  • Luísa Lacerda

    é assessora no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ex-assessora de ministro no STF e no TSE e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

4 de novembro de 2020, 19h30

Assegurar a supremacia e a continuidade da Constituição pressupõe a sua proteção contra reformas constitucionais, impondo que essas mudanças sejam mais difíceis que a elaboração da legislação ordinária. O tema da reforma constitucional envolve, portanto, o debate entre as demandas por mudança e permanência da Constituição [1]. Facilitar em excesso a reforma da Constituição pode colocá-la em risco ao submetê-la às maiorias políticas. No entanto, consagrar a total imutabilidade do texto, além de antidemocrático por subtrair os direitos das gerações futuras de decidirem seu próprio destino, acabaria por condenar a Constituição a uma vida curta ou a se tornar letra morta, quando não mais correspondesse às necessidades sociais ou aos valores hegemônicos na sociedade [2]. A necessária possibilidade de alteração do texto se revela indispensável para o contínuo ajuste da Constituição formal à Constituição real, revelando-se tão indispensável para a afirmação e manutenção de sua força normativa quanto o é a previsão de limites à reforma [3].

Nesse contexto, os limites materiais à reforma constitucional visam a assegurar a permanência de determinados conteúdos da Constituição, tidos como essenciais pelo constituinte originário [4], subtraindo do alcance do poder constituinte reformador determinadas decisões [5]. A existência de tais limites justifica-se, portanto, para preservar as decisões fundamentais do constituinte originário, evitando que uma reforma ampla e ilimitada signifique a destruição da ordem constitucional.

Oscar Vilhena Vieira defende que se as cláusulas superconstitucionais forem interpretadas de forma ampla, muitos aspectos da Constituição irão sofrer um processo de engessamento, o que põe em risco a própria sobrevivência do texto constitucional como um todo [6]. No entanto, uma interpretação restritiva abre a possibilidade de se flexibilizar ainda mais o processo de reforma constitucional, deixando os valores fundamentais da Constituição de 1988 totalmente vulneráveis. Assim, para o autor, o desafio do estudo dos limites materiais ao poder de reforma é alcançar um equilíbrio entre as duas interpretações, chegando a uma interpretação das cláusulas superconstitucionais capaz de assegurar a proteção dos procedimentos democráticos de tomada de decisão, das instituições que asseguram o Estado de Direito e todos os direitos essenciais à realização da dignidade humana, sem desautorizar, no entanto, o direito de cada geração de realizar sua autonomia.

Na discussão sobre os limites materiais ao poder de reforma, podemos identificar uma posição neoliberalizante e outra que busca assegurar os avanços sociais reconhecidos pela Constituição. A primeira posição entende que a realização de amplas reformas na área social é pressuposto para a inclusão do Brasil em uma economia globalizada e competitiva. Assim, as cláusulas superconstitucionais deveriam ser interpretadas restritivamente, de modo a excluir os direitos sociais, em especial os trabalhistas e previdenciários [7]. A segunda posição, em sentido contrário, busca bloquear reformas capazes de suprimir o cerne social-democrata da Constituição, incluindo os direitos sociais dentre os limites materiais.

O objetivo desse artigo é responder o questionamento sobre se os direitos sociais são abrangidos ou não pelo limite material ao poder de reforma da Constituição.

O artigo 60, § 4º, IV, da Constituição utiliza a expressão "direitos e garantias individuais", gerando dúvida em relação à inclusão dos demais direitos fundamentais (sociais e políticos, por exemplo), no elenco das cláusulas pétreas. Uma interpretação literal do dispositivo indicaria que apenas os direitos fundamentais individuais estariam abrangidos pela proteção em face do poder de reforma constitucional. Os adeptos dessa posição defendem que uma interpretação abrangente do dispositivo iria de encontro à vontade do poder constituinte originário.

O professor Gilmar Ferreira Mendes é um dos defensores dessa tese. O autor sustenta que com a expressão "direitos e garantias individuais" o constituinte pretendeu resguardar do poder de reforma apenas os direitos individuais propriamente ditos, que abrangeriam apenas as liberdades fundamentais, já que esses direitos, ao exigirem do Estado apenas a implementação de obrigações negativas, estariam vinculados ao núcleo essencial do Estado de Direito, juntamente com o princípio da separação dos poderes [8]. Essa visão se harmonizaria com a história constitucional de diversos países, como a Lei Fundamental de Bonn e a Constituição Portuguesa. Ainda que o autor admita que essa posição poderia incluir direitos equiparáveis aos de liberdade, como o direito de greve e à livre associação sindical, estariam excluídos os direitos prestacionais e os direitos difusos e coletivos [9].

Entendemos que essa não é a melhor leitura da Constituição. A adoção de uma interpretação exclusivamente literal do dispositivo nos levaria a concluir que não somente os direitos sociais, mas também os de nacionalidade e os políticos estariam excluídos da proteção outorgada pela norma do artigo 60, § 4º.

Esse entendimento acabaria por conferir a esses direitos um status de proteção inferior ao dos demais direitos fundamentais, em interpretação que claramente não se harmoniza com a nossa Constituição. No nosso sistema constitucional, não encontramos qualquer fundamento para justificar uma distinção em relação à fundamentalidade dos direitos sociais e a dos direitos de liberdade e de defesa [10]. Pelo contrário, há uma íntima vinculação dos direitos sociais com a nossa Constituição, razão pela qual não há como se defender, em uma interpretação sistemática, que os direitos sociais não são protegidos como cláusulas pétreas [11]. A Constituição de 1988 possui uma inequívoca dimensão social, conjugando durante todo o seu texto os valores da liberdade e da igualdade, com um claro compromisso com um projeto de transformação social, destinado a promover a liberdade da opressão social [12].

Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto defendem que não há como excluir os direitos sociais da proteção conferida pelas cláusulas pétreas. Afirmam os autores que, ao relacionar os limites materiais de reforma às exigências básicas de moralidade política relativas à proteção da democracia e da igual dignidade dos indivíduos, a extensão da proteção dos limites materiais a outros direitos fundamentais além dos individuais é inquestionável [13]. Nesse contexto, direitos como educação, saúde, férias remuneradas e participação política, assim como os direitos voltados à proteção de minorias vulneráveis, são essenciais para o constitucionalismo democrático e para a construção de uma comunidade inclusiva, de pessoas livres e iguais [14].

Oscar Vilhena Vieira busca construir uma teoria que fundamente materialmente os limites materiais ao poder de reforma. O autor defende que as constituições, caso se pretendam válidas, "devem ser intrinsecamente boas, funcionando como 'reserva de justiça' para os sistemas políticos e jurídicos que organizam [15]". Além do mais, para que determinadas cláusulas constitucionais sejam aceitas como limitadoras do poder de cada geração de alterar suas próprias constitucionais é necessário que seu conteúdo possa ser justificado e aceito racionalmente. O autor defende que as limitações materiais "apenas serão consideradas legítimas se servirem como elementos estruturantes, que habilitam e favorecem os cidadãos a se constituírem em sociedade, como uma comunidade de indivíduos iguais e autônomos, que decidem ser governados pelo Direito. Não devem, portanto, ser compreendidas ou mesmo utilizadas como instrumento de bloqueio absoluto de mudanças, de proteção de privilégios ou do status quo, mas como elementos que viabilizam a evolução da sociedade democrática e a promoção das mudanças necessárias às condições essenciais para uma sobrevivência digna [16]". Assim, uma teoria das cláusulas superconstitucionais exige que saibamos quais direitos e condições básicas servem de pressupostos para que seres humanos livres e iguais possam organizar suas vidas por meio do Direito, assegurando a autonomia presente e futura.

A partir das teorias de Habermas e de Rawls, chega a quatro matérias que devem ser protegidas pela superconstitucionalidade: 1) direitos que conferem autonomia privada a cada indivíduo, como a liberdade de pensamento e de crença, a liberdade de locomoção e as garantias necessárias para que essas liberdades sejam preservadas; 2) a instituição do Estado de Direito, que garanta o princípio da legalidade, o que exige um Estado organizado com base no princípio da separação de poderes; 3) um rol de direitos essenciais para que a igualdade e a dignidade dos cidadãos, enquanto seres racionais e autônomos, sejam mantidas, o que abrange os direitos de participação — votar e ser votado, a liberdade de expressão, o direito de formas associações políticas etc; e 4) os direitos sociais básicos, não apenas por serem instrumentais à realização dos direitos civis e políticos, mas também pelo seu próprio status de direitos morais, assim como os direitos civis e políticos.

Assim, ao interpretar o artigo 60, § 4º, IV, defende que a especial proteção deve abranger aqueles direitos que possam ser moralmente reivindicados e racionalmente justificados enquanto elementos essenciais à proteção da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de decisão entre seres racionais, iguais e livres, abrangendo não apenas os positivados nas normas constitucionais como os previstos em tratados de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário.

Conclui, assim, que além dos direitos e garantias que asseguram a autonomia privada e o Estado de Direito, deve compor o rol de direitos protegidos contra reformas constitucionais os direitos políticos e os direitos de ordem econômica e social [17]. Oscar Vilhena ressalta que especialmente em países marcados por enormes desigualdades socioeconômicas, como é o caso do Brasil, a promoção e a garantia de direitos que assegurem a subsistência, a educação, a habitação, a saúde e o trabalho são essenciais não apenas para que os indivíduos estejam aptos a participar do processo democrático, mas, também como garantia da própria dignidade humana. Os direitos sociais, nesse sentido, podem ser defendidos como direitos individuais à dignidade e à igualdade ou como direitos políticos essenciais à realização da democracia. O processo de autovinculação constitucional não se refere apenas à possibilidade de se retirar direitos de ordem liberal do processo de decisão majoritário, mas, também, de vincular as gerações futuras à produção de condições dignas a todos os membros da comunidade.

No mesmo sentido, Rodrigo Brandão defende que o Judiciário, na busca por identificar quais direitos seriam protegidos contra o poder de reforma, deve estar atento aos direitos que garantam os pressupostos da "continuidade da jornada liberal-democrática" inaugurada pela Constituição, o que, ao contrário de restringir, acaba por promover o autogoverno do povo [18]. Afirma que a Constituição de 1988 consagrou a indivisibilidade e a interdependência das gerações de direitos fundamentais, tendo em vista que trata com igual hierarquia e destaque os direitos individuais, os sociais, os políticos e os de nacionalidade. A defesa de que os direitos sociais não seriam abrangidos pelo limite material contra reformas apenas em razão da exigência de prestações positivas do Estado soa puramente ideológica e em ideologia contrária à adotada pela constitucional.

É importante ressaltar que a interpretação restritiva da expressão "direitos e garantias individuais" não foi acolhida pelo STF. No julgamento da ADI 939, relator ministro Sydney Sanches, o Supremo foi provocado a analisar a constitucionalidade da EC nº 3/1993, que estabeleceu o imposto provisório sobre movimentações financeiras ("IPMF") a ser arrecadado a partir de agosto do mesmo ano. Nesse precedente, o Supremo entendeu ser inconstitucional a emenda constitucional por violação ao princípio da anterioridade, garantia constitucional do contribuinte, que deveria receber a proteção do artigo 60, §4º, IV. O Supremo reconheceu, portanto, que a expressão "direitos e garantias individuais" não se restringe aos direitos inscritos no rol do artigo 5º, abrangendo, também, direitos fora do capítulo que consagra os direitos individuais os direitos implícitos.

Assim, não há dúvidas de que os direitos sociais constituem limites ao poder de reforma da Constituição. O caráter substantivo, dirigente e ambicioso da Constituição de 1988 recebe críticas. Entendemos, no entanto, que essas características não devem ser vistas como algo negativo. A Constituição de 1988 tem claro comprometimento com a mudança social, com a redução das desigualdades e com a construção de um patamar de cidadania a todos os cidadãos, assegurando a efetiva liberdade e igualdade de todos. Sua pretensão normativa, por ser ambiciosa, é constantemente frustrada, gerando, por vezes, um sentimento de insinceridade constitucional [19]. Cabe a seus intérpretes, no que se incluem Executivo, Legislativo e Judiciário, buscar a sua máxima efetividade para realizar a vontade constitucional.


[1] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 282.

[2] Ibidem, p. 282.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais e o Problema de sua Proteção contra o Poder de Reforma na Constituição de 1988. Revista Direto Público, Brasília, v. 1, n. 2, p. 11, out./dez. 2003.

[4] Ibidem, p. 10.

[5] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit, p. 293.

[6] VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça (um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma). São Paulo: Malheiros, 1999, p. 137.

[7] VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 137-138.

[8] Confira MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, v. 5, n. 21, p. 69-91, out./dez. 1997.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 69-91.

[10] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 20.

[11] Nesse sentido, Ibidem, p. 22-26.

[12] BRANDÃO, Rodrigo. Op. cit., p. 200-201.

[13] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 309.

[14] Ibidem, p. 309.

[15] VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. cit., p. 203.

[16] Ibidem, p. 225.

[17] Ibidem, p. 246.

[18] BRANDÃO, Rodrigo. Op. cit., p. 212-224.

[19] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades na Constituição brasileira. 9. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 41 e ss.

Autores

  • é assessora no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, ex-assessora de ministro no STF e no TSE e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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