Direto do Carf

Peças e partes de máquinas e seu crédito de IPI, segundo o Carf

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

4 de novembro de 2020, 8h01

Na contramão da contemporânea e louvável tendência de colocar foco no regime tributário aplicável a materialidades desconhecidas pela nossa "primitiva" legislação tributária [1] (e.g. tributação de economia digital), a coluna desta quarta-feira (4/11) busca trazer à tona discussão concernente à mais tradicional e ainda tão importante indústria brasileira e sua clássica tributação pelo IPI. Isso porque, embora tanto a industrialização em si quanto o seu alcance pelo IPI sejam de longa data conhecidos pelos tributaristas, permanecem palpitantes determinados temas na jurisprudência do Carf, como o que passamos a analisar.

Spacca
Trata-se do direito ao crédito básico de IPI — dando efetividade à sistemática da não cumulatividade que rege o imposto, conforme o artigo 153, §3º, inciso II da Constituição , ao qual têm direito os contribuintes ao adquirirem insumos (matéria-prima MP , produto intermediário PI — ou material de embalagem ME) aplicáveis ao processo industrial, conforme coloca hodiernamente o artigo 226 do RIPI/2010. Mais especificamente, a questão é saber se as partes e peças de máquinas que, apesar de não integrarem o produto final, desgastam-se no processo produtivo, podem ser qualificadas como produtos intermediários, concedendo o respectivo crédito de IPI pela sua aquisição.

Para conseguirmos detalhar a problemática enfrentada pelo Carf a respeito do assunto, devemos fazer uma breve digressão.

O artigo 82, inciso I, do Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (RIPI/82), cujo conteúdo foi repetido pelos RIPIs que lhe sucederam, determinava que:

"Artigo 82  Os estabelecimentos industriais, e os que lhes são equiparados, poderão creditar-se;
I – do imposto relativo a matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem, adquiridos para emprego na industrialização de produtos tributados, exceto os de alíquota zero e os isentos, incluindo-se, entre as matérias-primas e produtos intermediários, aqueles que, embora não se integrando ao novo produto, forem consumidos no processo de industrialização, salvo se compreendidos entre os bens do ativo permanente"
.

Diante de muitas dúvidas e disputas acerca do alcance da expressão "consumidos no processo de industrialização", foi editado o Parecer Normativo CST n° 65/79 [2] e, alcançando mais especificamente o ponto das partes e peças de máquinas, o Parecer Normativo CST nº 181, de 1974, dispondo que "não geram direito ao crédito do imposto os produtos incorporados às instalações industriais, as partes, peças e acessórios de máquinas equipamentos e ferramentas, mesmo que se desgastem ou se consumam no decorrer do processo de industrialização, bem como os produtos empregados na manutenção das instalações, das máquinas e equipamentos, inclusive lubrificantes e combustíveis necessários ao seu acionamento".

Diante desse claro posicionamento dos atos interpretativos emitidos pela Receita Federal, a jurisprudência do Carf costumava adotá-lo sem maiores discussões para negar o direito ao crédito de IPI pela aquisição de partes e peças de máquinas, almejado pelos industriais (e.g. Acórdão 203-12.700, de 13/02/2008).

Ocorre que, em 23 de setembro de 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o REsp 1.075.508 na sistemática dos recursos repetitivos, cuja controvérsia era justamente a ora sob análise: a empresa buscou a tutela do Poder Judiciário para tomar crédito de componentes do maquinário que sofrem o desgaste indireto no processo produtivo. Nessa oportunidade, o relator do caso, ministro Luis Fux, destacou que a legislação do IPI afastou o rigor da regra do crédito físico, concluindo que "o aproveitamento do crédito de IPI dos insumos que não integram o produto pressupõe o consumo, ou seja, o desgaste de forma imediata e integral do produto intermediário durante o processo de industrialização e que o produto não esteja compreendido no ativo permanente da empresa".

Foi trazida, assim, a seguinte interpretação vinculante ao Carf (cf. artigo 62, §2º, do seu regimento interno) para fins de crédito do IPI: não é possível o creditamento pelas aquisições de produtos intermediários que só indiretamente façam parte da industrialização (e.g. lubrificantes para máquinas, no contexto da indústria de metais). De outro lado, darão direito ao crédito as aquisições de produtos intermediários que diretamente exerçam ação sobre o produto industrializado, desgastando-se ou consumindo-se.

Usando como base tal dicotomia, passaram a ser julgados os casos no conselho (e.g. Acórdão 3402-004.295, de 24/07/2020; Acórdão 3402-004.295, de 25/07/2017; Acórdão 3402-002.831, de 25/01/2016; Acórdão 3302-005.316, de 21/03/2018; Acórdão 3401-005.702, de 29/01/2019; Acórdão 3302-007.478, de 20/08/2019; Acórdão 3301-004.064, de 27/10/2017), seja para conceder ou para negar o crédito de IPI, fazendo normalmente expressa menção ao citado julgamento do STJ. Inclusive a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais proferiu decisão adotando a diferenciação entre consumo direito e consumo indireto do produto intermediário no Acórdão 9303006.958, em sessão de 13/6/2018, com a seguinte conclusão: "As partes ou peças de reposição de máquinas e equipamentos que não se desgastam imediata e integralmente durante o processo produtivo não geram direito a creditamento".

Tudo levava a crer que, então, a discussão da tese estava finalizada, bastando a aferição das particularidades fáticas de cada caso. Mas não.

Constatamos que existe uma corrente interpretativa, tanto na Receita Federal como no Carf, que entende ser indevido o crédito de IPI sobre a aquisição de peças e partes de máquinas, mesmo que estas se desgastem diretamente em ação sobre o produto industrializado. Vejamos.

No âmbito da Receita Federal, houve uma sinalização no sentido de aceitar que tal sorte de produtos intermediários, mesmo sendo partes ou peças de máquinas, deveriam ser entendidos como suficientes para dar direito ao crédito de IPI na hipótese de seu desgaste direto. Esse entendimento foi explicitado na Solução de Consulta nº 24 — Cosit, de 23 de janeiro de 2014, da qual destacamos o trecho abaixo [3]:

"11. Para que a aquisição de partes e peças propicie ao estabelecimento industrial a apropriação de crédito de IPI faz-se necessário o atendimento cumulativo dos seguintes requisitos: a) que as partes ou peças tenham contato físico direto com o produto industrializado; b) que o produto industrializado seja tributado pelo imposto; c) que desse contato físico resulte desgaste, consumo ou alteração de propriedades físicas ou químicas dessas partes e peças, exigindo sua constante substituição; d) que a troca das partes e peças não aumente a vida útil do bem em mais de 1 (um) ano; e) que haja incidência do IPI na aquisição desses insumos, devidamente destacado nas Notas Fiscais de Entrada.
11.1 Um exemplo claro de partes e peças que atendem aos requisitos das alíneas 'a', 'c' e 'd', referidas no item 11, são as agulhas de teares, utilizadas nas indústrias de tecelagem para produção de tecidos: Têm contato físico com o tecido em produção, desse contato físico resulta desgaste, consumo ou alteração de suas propriedades físicas, exigindo constante substituição, e a troca dessas agulhas não proporciona aumento de mais de um ano na vida útil do bem"
.

Entretanto, tal solução de consulta foi expressamente reformada pela Solução de Divergência nº 4 Cosit, de 11 de dezembro de 2018, cujo fundamento é o conteúdo dos antigos Pareceres Normativos CST nº 65/79 e nº 181/74, inexistindo menção ao julgamento do REsp 1.075.508 pelo STJ.

Como já mencionado, atualmente também no Carf encontramos esse entendimento, porém aqui enfrentando a problemática da aplicação do quanto decidido no REsp 1.075.508 frente aos atos expedidos pela Receita Federal.

Destacamos nesse sentido o Acórdão nº 3302-008.164, de 30/1/2020.

O voto vencedor do caso adota a tese do contato físico do STJ, mas nega o direito ao crédito pleiteado pelo contribuinte. Trazendo uma fundamentada análise da tradição interpretativa a respeito do tema, coloca que: "partes e peças de máquinas não são consideradas como produtos intermediários ou matérias primas para efeito de direito ao crédito do IPI". "Trata-se de entendimento pacífico, construído há décadas na trama normativa do IPI." Segue afirmando que "nesse contexto, sempre vigorou o entendimento de que partes e peças de máquinas, ainda que sofram desgaste pela ação direta com o produto em fabricação, não geram direito ao creditamento de IPI." Assim, o relator, interpretando o REsp 1.075.508, entende como sendo válidas as restrições trazidas pelo Parecer Normativo CST nº 65/1979 e pelo Parecer Normativo CST nº 181/74.

No mesmo diapasão foi proferido o acórdão nº 3401006.143, em 24/4/2019.

Nesse precedente, a conselheira relatora argumenta que o repetitivo do STJ não retirou a regra posta nos atos interpretativos da Receita. Em suas palavras: "a partir das conclusões dos pareceres normativos e do REsp 1.075.508/SC, as condições cumulativas, para que determinado insumo possa ser enquadrado como material intermediário, são: 1) desgaste ou consumo por contato direto com o produto em fabricação, 2) que não seja parte de máquinas e equipamentos ou peças de reposição; 3) não seja classificável como bem do ativo permanente, segundo a legislação do IRPJ; e 4) que o desgaste seja integral e imediato no processo produtivo".

Também nessa toada, julgando a persistente questão dos refratários [4], a 3ª Turma da CSRF negou o direito das indústrias ao crédito, apegando-se, dentre outros argumentos, ao de que "embora sejam repostos com frequência devido às altíssimas temperaturas a que são submetidos, os refratários guardam similaridade não com MP e PI, mas sim com os bens do ativo permanente, pois apenas recondicionam os equipamentos ao seu estado funcional, restabelecendo a sua condição de uso" (Acórdão nº 9303007.143, de 11/7/2018).

Analisando esses três últimos precedentes, fica realmente clara a divergência interpretativa no âmbito do Carf a respeito do quanto decidido pelo STJ no REsp 1.075.508. Afinal, como mencionado acima, em sua maioria os acórdãos do Carf julgam que os atos normativos da Receita realmente falavam que parte e peças de máquinas não dariam direito ao crédito de IPI, mas que tal interpretação foi suplantada pelo repetitivo do STJ. Em outras palavras: "As peças e os materiais refratários, conforme o voto condutor do acórdão [do STJ], são aceitos como assemelhados a produtos intermediários, desde que não devam ser contabilizados no Ativo Imobilizado" (Acórdão 3201004.300, de 23/10/2018).

Disso podemos perceber que mesmo estando diante de situação de "chão de fábrica" há décadas conhecida e interpretada pela legislação nacional; e mesmo em face de antigo precedente vinculante do STJ sobre a matéria; permanece controverso o direito ao crédito de IPI pela aquisição de partes e peças de máquinas, que se consomem diretamente no processo fabril, na jurisprudência do órgão especializado para julgar a matéria. Oremos pelo longo caminho interpretativo a que se submeterão os novos temas de direito tributário.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] No caso do IPI, desde a Constituição de 1934 já constava a competência da União para instituir o “imposto sobre consumo” (Artigo 6º, inciso I, alínea “b”), o qual passou a ser tratado como “imposto sobre produtos industrializados” pelo artigo 11 da EC nº 18/1965. No âmbito infraconstitucional, o a Lei nº 4.502/1964, assinada pelo então Presidente Castello Branco, permanece vigente ao lado do Decreto-lei nº 34/1966.

[2] No sentido de que “deve­-se considerar no conceito de MP e PI, em sentido amplo, os bens que, embora não se integrando ao novo produto, sejam consumidos no processo de industrialização, guardando semelhança com as MP e os PI em sentido estrito, semelhança esta que reside no fato de exercerem, na operação de industrialização, função análoga à das MP e PI, ou seja, se consumirem, em decorrência de um contato físico, ou melhor dizendo, de uma ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação ou desse sobre o insumo,” como se depreende do Acórdão 3403-003.446, de 05/01/2015.

[3] Transcrevemos abaixo sua ementa:

 "ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI CRÉDITOS. PRODUTOS INTERMEDIÁRIOS. INDÚSTRIA DE FIAÇÃO E TECELAGEM. PEÇAS DE REPOSIÇÃO. MANCHÕES. ROLETES. VIAJANTES. Consideram-se produtos intermediários, para fins de creditamento do IPI, desde que atendidos todos os requisitos legais e normativos, as partes e peças de reposição que, apesar de não integrarem o produto final, desgastam-se mediante ação direta (contato físico) sobre o produto industrializado, exigindo sua constante substituição. Dispositivos Legais: Decreto nº 3.000, de 1999, artigo 346, § 1o ; Decreto nº 7.212, de 2010 (Ripi/2010), artigo 226, I; PN CST nº 65, de 1979".

[4] E aparentemente deixando de lado a lógica exposta no Acórdão 9303006.958, mencionado mais acima no texto.

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    é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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