Opinião

Advocacia criminal holística e intervenção ampla para solução de problemas sociais

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4 de novembro de 2020, 7h57

Há certo grau de consenso entre os estudiosos do sistema pátrio de administração da Justiça criminal quanto às suas mazelas, dentre as quais avulta a gravidade do aumento das taxas de encarceramento em massa e do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário [1].

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Curiosamente, o debate público sobre esses problemas tende a gravitar em torno de reformas legislativas sobre penas corporais, execução penal, prisão processual, medidas cautelares alternativas à prisão etc.

Infelizmente pouca ou nenhuma atenção é dedicada às possíveis soluções para problemas tais como a falta de efetividade da defesa técnica penal e o modelo de assistência jurídica dispensada aos acusados hipossuficientes.

A esse propósito, é interessante conhecer a teoria e prática da advocacia criminal holística.

Esta surgiu nos Estados Unidos da América na década de 1990, ensejando ruptura paradigmática da tradicional concepção de advocacia criminal (pública e privada) baseada em intervenção restrita e unidimensional: prestação de assistência jurídica ao acusado, em razão de determinado caso concreto.

A advocacia criminal holística, por outro flanco, preconiza intervenção ampla e pluridimensional no caso concreto e nas suas causas e consequências (jurídicas e extrajurídicas).

Nessa toada, equipe multidisciplinar de profissionais (além de assistente técnico e investigador, Advogados especializados em outras áreas do Direito, assistente social, psicólogo etc.) atua de forma colaborativa, desenvolvendo estratégia integrada de intervenção. Esta abarca a defesa técnica no caso concreto e o atendimento às demais necessidades pessoais do acusado (v.g. tratamento para dependência química ou psiquiátrico, manutenção de benefícios públicos, emprego, guarda de filhos, moradia, status migratório etc.).

Robin Steinberg aponta os quatro pilares da advocacia holística [2].

O primeiro é o acesso contínuo a serviços jurídicos e extrajurídicos que atendam às necessidades do acusado. Já na primeira entrevista reservada, o defensor é treinado a fazer, com base em checklist padronizado, perguntas sobre os fatos imputados, contraprovas defensivas, status migratório, filhos, benefícios públicos, saúde mental, emprego, moradia, empréstimos estudantis etc. Com base nas respostas do acusado, o defensor avalia as consequências da persecução penal e quais serviços jurídicos e extrajurídicos são necessários, colocando o acusado em contato com os prestadores de serviços adequados.

O segundo é a comunicação dinâmica e interdisciplinar entre os integrantes da equipe e o acusado. Sua função é permitir reflexão coletiva sobre a estratégia de intervenção integrada, viabilizando a dispensa de assistência mais eficiente. Há divisão dos recursos humanos em equipes multidisciplinares, reuniões periódicas e rodízios de equipes, e concepção arquitetônica do local de trabalho, tudo para facilitar tal comunicação.

O terceiro é o conjunto habilidades multidisciplinares dos defensores. Para tanto, há programa de treinamento básico que abarca todas as áreas de atuação jurídica da entidade (criminal, familiar, imobiliária, trabalhista e migratória), as complexidades burocráticas dos sistemas públicos educacional, de seguridade social e saúde pública, e as diferentes dependências químicas e condições mentais. Ademais, há acompanhamento de defensores de outras áreas, a fim de propiciar experiência prática, capacidade de identificação das necessidades do acusado e indicações corretas de prestadores (internos ou comunitários) de serviços. 

O derradeiro é a compreensão aprofundada da comunidade atendida, e a forte conexão com ela, via variegadas táticas, tais como: atendimento consultivo aos membros comunitários, atividades educativas, eventos festivos, participação em políticas públicas, coligações e colaborações com outras entidades, litígio estratégico etc.

Já Michael Pinard salienta a característica da mudança paradigmática de mentalidade do defensor, que deve considerar as questões econômicas, psicológicas e sociais subjacentes ao caso penal. Isso porque acusados hipossuficientes podem ter vários problemas que são causas convergentes da persecução penal, os quais devem ser reconhecidos e enfrentados pelo defensor, com vistas à uma solução abrangente [3].

Esse objetivo pode exigir a canalização de recursos defensivos para a localização de provas defensivas e de pessoas que, malgrado desnecessárias para o processo criminal, são relevantes para a solução das questões subjacentes ao caso penal (educacionais, familiares, psicológicas, residenciais etc.), tais como pais, filhos, médicos, professores, colegas de trabalho, vizinhos etc.

Assim, a premissa é que o modelo institucional de assistência jurídica aos acusados hipossuficientes deve enfrentar as causas e consequências pessoais do envolvimento com o sistema de administração da Justiça criminal — que podem ser mais terríveis do que o caso criminal em si.

Via de consequência, o defensor deve ter entendimento mais amplo sobre o seu papel, que inclui o enfrentamento: 1) das causas sociais e pessoais que levaram o acusado a ser criminalizado (v.g. dependência química, condição mental, família desestruturada, falta de moradia etc.); 2) das consequências da sobredita criminalização (v.g. perda de emprego, moradia ou guarda de filhos, deportação ou expulsão etc.).

A entidade precursora na implementação do modelo holístico de assistência jurídica a acusados hipossuficientes é a The Bronx Defenders [4].

Vale fazer menção às características que a diferenciam das entidades congêneres que seguem o modelo tradicional de assistência jurídica.

A primeira é a contratação de quantidade proporcionalmente menor de advogados criminalistas, e proporcionalmente maior de advogados especializados em Direito de Família, Direito Imobiliário, Direito do Trabalho e Direito Migratório, assistentes sociais, psicólogos etc.

A segunda característica é o atendimento dispensado por equipe heterogênea, cujos integrantes possuem formação multidisciplinar e interagem com o acusado de forma independente. Também há foco na construção de relações comunitárias, pela dependência de organizações sociais públicas e privadas que prestam serviços auxiliares (v.g. assistência médica, moradia pública etc.).

A terceira característica é a tentativa de reconciliação ótima dos diversos interesses potencialmente conflitantes do acusado — que pode eventualmente implicar sacrifício do resultado processual penal ideal, em prol da satisfação de interesse prioritário do acusado.

A quarta característica é a política organizacional de constantemente avaliar e incentivar a qualidade da comunicação interdisciplinar entre os integrantes de equipes, a identificação de necessidades do acusado para além de cada área de especialização individual, o encaminhamento de consultas de dúvidas a colegas etc.

Há doutrinadores que apontam algumas limitações do modelo holístico.

Brooks Holland, malgrado reconheça que tal modelo aumenta a qualidade da assistência jurídica a acusados hipossuficientes, argumenta que ele deve ser visto como um meio de aperfeiçoamento, e não como fundamento institucional [5].

Para Holland, o modelo em digressão não prioriza duas realidades do sistema de administração da Justiça criminal, pois este: 1) é estruturado com base na premissa de que todo caso tem como potencial desfecho sentença ou veredito meritório; 2) não raro tem objetivo punitivo e não reabilitador, tal como a retribuição.

Assim, a eleição de trabalho comunitário ou social como fundamento institucional pode ensejar desequilíbrio e despreparo para a essência da função do defensor: prática jurídica contenciosa em favor de acusados que em regra são impopulares, mesmo em suas comunidades originárias.

Segundo Holland, há outros problemas práticos decorrentes do modelo holístico: 1) tendência de aumento da carga de processos do defensor, e diminuição do seu tempo disponível para a atuação processual; 2) geração de impactos negativos na reputação profissional do defensor perante magistrados e acusadores, e na percepção do acusado sobre a qualidade da sua assistência jurídica; 3) dilemas éticos resultantes de potenciais conflitos entre as necessidades pessoais prioritárias do acusado e suas necessidades processuais penais.

Sobre a eficácia do modelo em análise, há pesquisa empírica de James Anderson, Maya Buenaventura e Paul Heaton. Essa pesquisa analisou, ao longo de uma década, mais de meio milhão de casos no sistema de administração da justiça criminal do condado do Bronx, cidade de Nova Iorque [6].

Nesse condado, atuam duas entidades de assistência jurídica aos acusados hipossuficientes, uma que adota abordagem tradicional (Legal Aid Society of New York), e outra que adota abordagem holística (The Bronx Defenders).

Tal pesquisa buscou investigar a hipótese de que a abordagem holística proporciona melhores resultados processuais e menor índice de reincidência, por melhor contemplar as necessidades do acusado e as razões do seu envolvimento com o sistema de administração da Justiça criminal, além de mitigar possíveis causas de reincidência.

A conclusão obtida foi a de que a abordagem holística não interfere no resultado processual, nem no índice de reincidência, porém reduz a probabilidade de prisão processual em 9%, reduz a probabilidade de aplicação de pena corporal em 16%, e reduz a duração média da pena corporal em 24%.

Depuração com base no critério da natureza do delito imputado revelou resultados ainda mais expressivos, com relação aos crimes de entorpecentes: a abordagem holística reduz a probabilidade de aplicação de pena corporal em 25%, e reduz a duração média da pena corporal em 63%.

Ao longo dessa década de pesquisa, a abordagem holística reduziu a duração da pena corporal imposta em sentenças em um total de mais de um milhão de dias, poupando do erário estimados 160 milhões de dólares, que seriam gastos na manutenção do sistema penitenciário.

Uma explicação plausível é que a abordagem holística se beneficia das habilidades do assistente social de ouvir o acusado, traçar seu perfil social detalhado e identificar corretamente as causas econômicas, pessoais ou sociais do crime. Esse contributo torna o defensor mais capacitado para humanizar o acusado aos olhos do julgador, e este mais propenso a substituir a pena corporal, ou reduzir sua duração.

Assim, a precitada pesquisa empírica de Anderson, Buenaventura e Heaton sugere que importante pauta de reforma legislativa e organizacional pode ser a transição do modelo tradicional de assistência jurídica aos acusados hipossuficientes para o modelo holístico.

Essa transição pode contribuir para a redução de abusos e excessos do poder punitivo, das taxas de encarceramento em massa e do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário.

Não obstante, a eficácia da abordagem holística no âmbito do sistema pátrio de administração da Justiça criminal ainda carece de comprovação empírica. Por esse motivo, ela pode ser implementada por alguma Defensoria Pública, ou entidade de assistência jurídica dativa, em caráter experimental.

O ideal seria que esse projeto piloto fosse acompanhado por pesquisadores, para amealhar dados empíricos sobre variáveis tais como: 1) o seu impacto no resultado processual; 2) o índice de condenações à pena corporal; 3) a duração média das penas corporais impostas; 4) o índice de reincidência dos acusados; 5) o grau de satisfação dos acusados com sua assistência etc.

Independentemente dessa implementação, o conceito de advocacia criminal holística é interessante para tornar cada defensor (público e privado) mais capacitado para identificar as causas e consequências pessoais do envolvimento do acusado com o sistema de administração da Justiça criminal e identificar suas necessidades prioritárias, tornando a representação processual mais contextualizada e informada.

Além disso, o defensor deve atentar para a importância de atuação colaborativa com outros profissionais (advogados civilistas, assistentes sociais, psicólogos etc.), desenvolvendo estratégia de atuação integrada, focada nas sobreditas necessidades prioritárias do acusado.

Por fim, a abordagem holística é importante por destacar a necessidade de avaliação pelo defensor de todas as potenciais consequências (jurídicas e extrajurídicas) desfavoráveis da persecução penal (v.g. demissão do emprego, expulsão do país, incapacidade para o exercício do pátrio poder, inabilitação para dirigir veículo, inelegibilidade, perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, perda de habilitação profissional etc.).

Essas consequências, principalmente quando são desproporcionais, injustas ou transcendentes da pessoa do acusado, podem ser cuidadosamente talhadas como argumentos aptos a sensibilizar o acusador ou julgador, com vistas a resultado processual penal mais favorável ao acusado [7].


[1] STF, Pleno, ADI 347 MC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 19.02.2016.

[2] STEINBERG, Robin. Heeding Gideon’s call in the twenty-first century: Holistic defense and the new public defense paradigm, In: Washington & Lee Law Review, v. 70, n. 02, pp. 961-1.018, 2013.

[3] PINARD, Michael. Broadening the holistic mindset: Incorporating collateral consequences and reentry into criminal defense lawyering, In: Fordham Urban Law Journal, v. 31, n. 04, pp. 1.067-1.096, 2004.

[5] HOLLAND, Brooks. Holistic advocacy: An important but limited institutional role, In: NYU Review of Law & Social Change, v. 30, n. 04, pp. 637-652, 2006.  

[6] ANDERSON, James; BUENAVENTURA, Maya; HEATON, Paul. The effects of holistic defense on criminal justice outcomes, In: Harvard Law Review, v. 132, n. 03, pp. 819-893, 2019.

[7] SMYTH, McGregor. Holistic is not a bad word: A criminal defense attorney’s guide to using invisible punishments as an advocacy strategy, In: University of Toledo Law Review, v. 36, pp. 479-504, 2005.

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