Opinião

Compra de lei dá tese ou cadeia? A pandemia e a caixa de pandora

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3 de novembro de 2020, 8h17

Spacca
Resumo: dois temas: o caso do advogado que “se meteu em conversas dos outros” (sic) e a denúncia do ministro sobre leis compradas

1. Desrespeitar advogados é o novo normal
Todos os dias — e não é força de expressão — ficamos sabendo de desrespeito às prerrogativas de advogados. Por que será?

A resposta pode ser: porque este país forjou um imaginário pelo qual a bureau-cracia (pilar do Estado Moderno) foi transformada em uma “estrutura patrimonialista”, pela qual o Estado e a autoridade se fagocitam e, como resultado, tem-se que cada ato advindo do “Estado” é tido como uma dádiva, um favor. Por isso, quando algo incomoda a autoridade-Estado, vem, explicita ou implícita, a pergunta-resposta: “você sabe com quem está falando?”. Ou “chame-me de Excelência”!

2. As faculdades e o discurso da servidão voluntária
Claro que o (péssimo) ensino jurídico foi fundamental para a formação desse imaginário. Até os júris simulados reproduzem a estrutura de poder, na qual o advogado é o último da fila. Mas, se o júri é simulado, por que nem ali há igualdade entre os protagonistas? Ao contrário: nas faculdades se reproduz um discurso da servidão voluntária. O custo? Altíssimo. Vem com juros de cartão de crédito.

Esse quadro de humilhação cotidiana pelo qual vinha passando a advocacia ganhou um novo componente: a pandemia. Tudo passou a ser online. E se abriu a caixa de pandora. Todos os nossos medos “se realizaram”.

Resultado: transformou-se uma realidade — que já era absolutamente desfavorável aos causídicos — em um simulacro ou em uma simulação. Ou em uma ficção. Um filme trash, em que o diretor quer fazer a sério, mas esquece de esconder o zíper da fantasia do monstro.

3. O advogado que fica ouvindo a conversa “extra autos” dos outros (sic)
Exemplo simbólico disso — em que o zíper ficou à mostra (é uma metáfora!) — foi o episódio pelo qual passou o advogado paulista Vinícius Vilas Boas, que deixou uma sessão virtual da 8ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo antes de sua sustentação oral em um pedido de Habeas Corpus, após flagrar dois desembargadores da turma julgadora tecerem críticas ao paciente (ver aqui).

Não vou entrar em detalhes. Importa é que a tecnologia traiu os desembargadores. Todo mundo ouviu a conversa pela qual prejulgaram um réu. Nitidamente, levaram ao pé da letra a velha tese de que o direito penal é o do autor e não do fato.

Seria bom que os desembargadores lessem Estrangeiro, de Albert Camus, no qual o personagem foi condenado porque não chorou no velório da mãe. O fato? Não importa. Importa é o autor.

Três personagens do PJ (TJ-SP): os dois que pré-julgaram, para dizer o mínimo (Desa. Ely Amioka e Des. Valala) o paciente e o Presidente da Câmara, Des. Sergio Ribas, quem, em vez de dar razão ao advogado, deu uma resposta corporativa, culpando a “vítima” (o causídico), em tom arrogante e deselegante, dizendo que o Advogado fizera “coisa errada, ouvindo conversa dos outros, extra autos” (sic), e que iria “comunicar à OAB (que ele Advogado) estava escutando conversa que não tinha que ouvir, que não lhe dizia respeito” (sic).

4. A ponta do iceberg e “onde estava o membro do MP na sessão”?
Profundamente lamentável. Importa, no entanto, registrar que essa é um ponta do iceberg cotidiano. A pandemia veio para abrir a caixa de pandora. E mais não preciso dizer. A comunidade jurídica sabe. Ou finge que não sabe. Do couro saem as correias.

Aliás, uma figura ficou na moita em todo esse imbróglio do TJ-SP: o representante do Ministério Público. Fiscal da lei? Escutou tudo aquilo que se quedou silente? Conduta absolutamente inadequada.

Cornelius Castoriadis escreveu A Instituição Imaginária da Sociedade, dizendo: as sentenças de um tribunal — ou os discursos — são simbólicas e suas conseqüências o são quase que integralmente, até o gesto do carrasco que, real por excelência, é imediatamente também simbólico em outro nível. O simbólico é mais forte. É um aviso. Os sinais só não são vistos por quem não os quer ver. Eles são lancinantes.

O que se viu na cena do TJ-SP — e em tantas outras noticiadas cotidianamente — vale muito mais pelo simbólico. Temos de tomar cuidado. De tanto fazermos simulacros, chegará o momento em que todos saberão que é um simulacro. E, se tudo é, nada é.

Nesse momento, quem será a criança inocente que dirá “o rei está nu”?

Eis a questão.

Post scriptum: Existem leis tributárias compradas? Isso dá tese ou cadeia?
Na caixa de Pandora aberta com a pandemia, saiu mais uma: “há provas de que leis foram compradas” (ler aqui), afirmação feita pelo Ministro Hermann Benjamin em uma webinar. Uma denúncia forte, que coloca o parlamento sob suspeição. O problema é que a afirmação vem de um ministro do Superior Tribunal de Justiça. Imaginem na Alemanha um ministro de Tribunal Superior dizer algo desse tipo. Ou na Espanha. Não teria que apresentar provas?

Também aqui o tema é autoexplicativo. Dizer o quê? Quem tem de explicar o tema é o Ministro, certo?

Aliás, como acadêmico que sou, eu responderia ao ministro que também, como eu, é doutor em direito, com bela tese defendida sobre se “compra de leis no parlamento” dá tese de doutorado. Não, ministro, não dá tese. Teria que ter matriz teórica e outros elementos que não meramente uma afirmação empírica. Porém, com certeza, “a compra de leis no parlamento”, se não dá tese de doutorado, dá ou deveria dar cadeia (para o comprador e para o vendedor).

O que fica nisso tudo é que continuar na luta, em terrae brasilis, é para os fortes, parafraseando Sobral Pinto.

Stoik mujic!

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