Opinião

O espaço da defesa na Covid-19: os tempos mudam, a voz da defesa jamais

Autor

  • Luis Gustavo Soares Amorim de Sousa

    é advogado especialista em Direito Tributário e Administrativo professor do Uniceuma mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade Portucalense e presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB-MA.

3 de novembro de 2020, 19h39

Na militância diária da advocacia, não raro era preciso reafirmar a importância de os advogados serem recebidos pelas autoridades para exercer o mister da defesa nos processos judiciais e administrativos. Com os desafios da pandemia, as cortes judiciais e órgãos públicos têm adotado medidas preventivas, mas nenhuma delas pode restringir a atuação da defesa.

Sempre oportuno lembrar que o constituinte originário pátrio optou por conceder relevância constitucional à advocacia ao inserir o artigo 133 [1] no texto constitucional. Tal escolha não se deu pelo acaso, mas pela firme convicção da importância das advogadas e advogados na sociedade e o papel essencial que desempenham no sistema de Justiça brasileiro.

Como acertadamente pontuou o insigne e sempre decano da Suprema Corte, o ex-ministro Celso de Mello, "o STF tem proclamado, em reiteradas decisões, que o advogado — ao cumprir o dever de prestar assistência àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado — converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade[2].

Ainda que frequente alvo de reclamação o acesso da defesa aos espaços do Judiciário, é certo que sobre esse preceito sempre houve (ainda que utopicamente) verdadeiro consenso. Por outro lado, lembro-me o quanto nós, advogados, comemoramos em 2012 a aprovação de resolução pelo CNMP recomendando que também os membros do MP nos recebessem, independentemente de horário marcado [3].

Assim como no Ministério Público, buscamos no exercício da defesa avanços para que fôssemos recebidos também nos órgãos do Poder Executivo, nos Tribunais de Contas, pois não obstante a prática dentro do fórum ainda seja a regra do nosso Código Processual, os processos administrativos devem respeitar o devido processo legal (artigo 5º, LIV da CF/88) e, como tal, exigem a participação da defesa de forma efetiva.

A pandemia que assola o mundo há meses balançou as estruturas da vida tanto na esfera macro, vejam-se as cadeias globais de produção, quanto no micro, basta pensar nos inúmeros casos de amigos e conhecidos que sofreram perdas fatais ou são acometidos por angústias diversas pela redução do contato humano. Uma certeza que se pode extrair da pandemia é como somos todos interdependentes.

Assim sendo, o sistema de Justiça depende de todos para o regular funcionamento: de juízes e servidores dos tribunais até integrantes do Ministério Público e advogados. Na esteira da teoria de Pierre Burdieu, sobre os campos sociais na sociedade, alguns podem considerar que o capital simbólico do advogado é extremamente inferior ao de juízes, promotores/procuradores e demais integrantes do sistema de Justiça. Entretanto, cabe a nos lembrar as palavras dos constituintes originários: a advocacia é uma das "funções essenciais à Justiça".

Se por algum tempo, e ainda hoje talvez alguns ainda possuam esta visão ultrapassada, considerou-se que advogados eram adversários dos demais integrantes do sistema de Justiça, hoje o paradigma é e deve ser outro. Na esteira do Código de Processo Civil, resultado dos trabalhos conduzidos pelo mestre processualista ministro Luiz Fux, "todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si" (artigo 6°, do CPC). E a cooperação pressupõe que as partes lidem com todos os envolvidos em condição de igualdade. Noção esta que não significa identidade em todos os aspectos, como bem lembra o mestre Fabio Konder Comparato: "A igualdade perante a lei, muito longe de representar o domínio de forma abstrata sobre as exigências vitais, a hipocrisia da uniformização sobre a autenticidade das diferenças criadoras, é a verdadeira garantia para a evolução harmônica da humanidade, cuja grande riqueza, como bem disse Teilhard de Chardin, é feita pela unidade de suas diferenças" [4].

Nessa linha, por mais que a pandemia tenha posto todos nós sob condições inéditas de temperatura e pressão, retirando a todos da zona de conforto da atuação diária, não pode se cogitar que o advogado deixe de ser recebido ainda que virtualmente pelos magistrados, membros do Ministério Público e representantes da Administração Pública suprimindo avanços que tenhamos conquistado.

É de se reconhecer o esforço dos tribunais, do Ministério Público e dos órgãos administrativos em disponibilizar estruturas de acesso, mas sempre importante lembrar as necessidades que nós, causídico,s enfrentamos no nosso cotidiano, que, também preocupados com os cuidados necessários para a nossa saúde, persistimos necessitando expor aos nobres magistrados, membros do Parquet e órgãos públicos a defesa dos nossos constituintes cujos processos seguem e as vidas podem ser duramente afetadas.

As videoconferências com um mínimo de antecedência garantem ao magistrado e ao jurisdicionado acesso ao processo, bem como conferem celeridade ao processo porquanto o advogado tem a chance de expor com síntese os principais pontos de sua defesa especialmente quando tratamos de medidas liminares com risco de perecimento do direito.

Os memoriais por e-mail, muitas vezes munidos de links e vídeos, que resumem o processo também contribuem para que os magistrados, sobretudo de primeira instância, possam acessar os argumentos da defesa de modo claro e sistemático.

As sustentações orais virtuais também têm sido uma forma de dar acesso à defesa, sem prejudicar o andamento dos processos nesses tempos, mas o que é realmente importante em quaisquer desses meios é que os representantes dos poderes que se deparem com a nossa defesa atendam aos esforços que temos dirigido para respeitar a saúde de todos, dando atenção à nossa combalida voz nesse momento.

Nós, a defesa, pedimos a sua ajuda para sermos ouvidos, respeitando a integridade da vossa saúde, sem prejudicar o direito dos nossos constituintes.

O que se espera, ainda mais em tempos nebulosos como os atuais, é que os sujeitos que atuam nos processos judiciais adotem comportamentos serenos — serenidade que significa, nas palavras de Norberto Bobbio, "acima de tudo, serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência. O indivíduo sereno não tem grande opinião sobre si mesmo, não porque se subestime, mas porque é propenso a acreditar nas misérias que na grandeza do homem, e que se vê como um homem igual a todos os demais" [5].

 


[1] Artigo 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

[2] HC 98.237, rel. min. Celso de Mello, j. 15-12-2009, 2ª T, DJE de 6-8-2010.

[3] Resolução nº 88 de 28/08/2012 do Conselho Nacional do Ministério Público.

[4] COMPARATO, Fábio Konder. Direito público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 60.

[5] BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: UNESP, 2002, p. 39.

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