Impedimento em SC

"Brasil será vítima de parlamentarismo branco se não regulamentar impeachment"

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3 de novembro de 2020, 9h37

A vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr (sem partido), assumiu interinamente, no último dia 27, o governo do Estado. O posto foi ocupado depois que o governador Carlos Moisés (PSL) se viu afastado do cargo. 

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Ana Blasi acredita que a acusação contra a governadora interina era vazia e infundada
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As mudanças ocorreram no curso de um conturbado processo de impeachment que mirou tanto Moisés quanto Reinehr. Os dois foram acusados de crime de responsabilidade depois que um ato administrativo autorizou o aumento salarial de procuradores do Estado. 

As defesas do governador afastado e da governadora em exercício dizem que o ato administrativo contestado seguiu decisão judicial que determinou a equiparação salarial entre os procuradores de Justiça e os da Assembleia Legislativa. 

No caso de Moisés, o tribunal de julgamento — órgão formado por cinco desembargadores e cinco deputados — decidiu por seis votos contra quatro pelo afastamento até que o impeachment seja decidido em definitivo.

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Karina Kufa afirma que o impeachment precisa ser melhor regulamentado
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Já no caso de Reinehr, a votação terminou empatada em cinco a cinco, cabendo ao presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, desembargador Ricardo Roesler, dar o voto de minerva que absolveu a agora governadora. 

Em entrevista à ConJur, as advogadas Ana Blasi e Karina Kufa, responsáveis pela defesa de Reinehr, comentaram o caso. Para elas, o Brasil precisa regulamentar melhor o processo de impeachment ou se verá vítima de um "parlamentarismo branco". 

"A acusação era totalmente vazia, infundada e controversa. Precisamos discutir a natureza jurídica do crime de responsabilidade, porque estamos vendo o aumento no número de processos de impeachment. O prefeito que não tiver maioria poderá, em um soluço qualquer, se ver impedido", diz Blasi. 

Kufa concorda. "Precisamos de um movimento para regulamentar melhor o impeachment. Em cada Estado é de uma forma. No Rio de Janeiro foi dada oportunidade de defesa prévia, aqui em Santa Catarina esse pedido foi indeferido. A gente fica sem um regramento uniforme. Isso traz uma absurda insegurança jurídica. Quando nos deparamos com uma situação em que o Legislativo, insatisfeito com a condução do Executivo, tenta tirar do poder aqueles que foram legitimamente eleitos, há um problema extremamente sério", complementa.

Além do caso envolvendo o aumento proporcional dado aos procuradores, um segundo processo de impeachment foi aberto contra Moisés e Reinehr. Desta vez, eles foram acusados de comprar respiradores por preço superior ao de mercado. O caso, no que diz respeito à governadora interina, já foi arquivado. Moisés, no entanto, ainda será julgado, mesmo que um relatório da Polícia Federal tenha apontado que o político não participou da compra. 

Leia a entrevista:

ConJur — Quais eram as acusações contra Reinehr?
Ana Blasi —
Foram três acusações. A primeira é a de que ela teria se omitido quando assumiu a governança no início do ano, por 15 dias, do dever de liminarmente suspender a verba de equivalência que tinha sido dada aos procuradores em outubro de 2019. Outra acusação é a de que ela deveria ter agido porque o governador Moisés deu uma entrevista, em fevereiro deste ano, defendendo a legalidade do aumento. A acusação queria que Reinehr se manifestasse publicamente sobre essa questão. A última acusação é incrível: diz que ela teria defendido a legalidade do aumento. Esse impeachment foi arquivado em fevereiro e depois foi renovado. Nós provamos que todas essas condutas são atípicas.
Karina Kufa — Tentaram imputar à vice-governadora, agora governadora em exercício, uma omissão dolosa — como a acusação intitulou — por ela não ter simplesmente derrubado liminarmente um ato administrativo que dependia de um processo administrativo. O ato está em discussão judiciária, então depende ainda de uma decisão dizendo se é legal ou não. Assim, Reinehr foi prudente. Ficamos até surpresas com a inclusão dela no processo de impeachment.

ConJur — O caso é interessa porque o governador foi afastado, mas a vice continuou no cargo. Qual foi a estratégia da defesa?
Ana Blasi —
Uma tese que nós levantamos desde o início é a de que a vice só poderia ser impedida por ato ou conduta praticada no exercício do cargo. A lei fala de presidente, de ministros de Estado, mas não fala especificamente de vices.
Karina Kufa — Em um processo de impeachment, você ataca a pessoa pelo ato praticado durante o mandato. É preciso atacar simplesmente aquele que produziu o ato. No caso dos respiradores, de forma acertada, a Assembleia Legislativa afastou Reinehr do processo de impeachment porque durante toda a pandemia ela não praticou um ato sequer. Foi isso que a gente questionou nos dois processos de impeachment. Nós entendemos que o impedimento tem de recair sobre o governador, esteja ele exercendo o cargo de forma interina ou não. A linha de defesa foi nesse sentido. 

ConJur — A acusação fala que a Justiça de Santa Catarina já reconheceu a inconstitucionalidade do aumento. Por outro lado, há decisão que transitou em julgado determinando a equiparação salarial entre os procuradores de Justiça e os procuradores da Assembleia. Para além das imputações contra Reinehr, o ato administrativo é de fato inconstitucional?
Ana Blasi —
É constitucional. Na Constituição de Santa Catarina existe um dispositivo (artigo 196) que garante essa equiparação. A constitucionalidade nunca foi questionada. Foi com base nesse dispositivo que se requereu o pagamento da verba de equivalência, que nada mais é do que o pagamento do teto. Quando houve o aumento do teto de ministro do Supremo, no início do ano passado, todas as carreiras jurídicas tiveram nivelamento nos Estados de 90,25% do teto de ministro. A Procuradoria-Geral de Santa Catarina não teve esse aumento porque ele não é automático. Precisava de decisão do governador. A Associação dos Procuradores fez o requerimento em um mandado de segurança coletivo, que transitou em julgado, garantindo a equiparação. Então a decisão de atribuir ao governador e à vice a ilegalidade de um ato é muito controversa.
Karina Kufa — O impeachment é um processo excepcional. É muito temerário pensar em impeachment, porque aqui não temos um caso grave. Estamos tratando da constitucionalidade ou não da aplicação de uma lei. Fica até difícil fazer uma análise do ponto de vista da ilegalidade, porque há uma decisão judicial (autorizando o aumento). Tudo mostra que, em relação à Reinehr, não há fundamento para o impeachment. 

ConJur — Nesse sentido, o processo todo é ancorado em uma acusação vazia? Há alguma materialidade?
Ana Blasi —
A acusação era totalmente vazia, infundada e controversa. Precisamos discutir a natureza jurídica do crime de responsabilidade, porque estamos vendo o aumento no número de processos de impeachment. O prefeito que não tiver maioria poderá, em um soluço qualquer, se ver impedido. O Congresso vai ter de se debruçar muito rapidamente sobre a elaboração de uma nova legislação, sob pena de termos um parlamentarismo branco sendo efetivado no Brasil nos próximos anos.
Karina Kufa — Precisamos de um movimento para regulamentar melhor o impeachment. Em cada Estado é de uma forma. No Rio de Janeiro foi dada oportunidade de defesa prévia, aqui em Santa Catarina esse pedido foi indeferido. A gente fica sem um regramento uniforme. Isso traz uma absurda insegurança jurídica. Quando nos deparamos com uma situação em que o Legislativo, insatisfeito com a condução do Executivo, tenta tirar do poder aqueles que foram legitimamente eleitos, há um problema extremamente sério. Se deixarmos isso acontecer, como quase aconteceu aqui em Santa Catarina, teremos diversas formas de parlamentarismo branco, em que aqueles que foram eleitos não podem exercer o mandato sem desagradar o Legislativo. Isso nos preocupa como juristas, como advogadas e como cidadãs. 

ConJur — Acreditam que Carlos Moisés também é alvo de um processo injusto?
Ana Blasi —
Não conheço exatamente a conduta dele, então não posso comentar. O que eu falei na Assembleia, no dia do julgamento, é que o processo está pronto, não tem necessidade de diligência, de produção de prova, nem testemunhal nem pericial. O que se espera é que ele seja julgado muito rapidamente. Acredito que a defesa do governador abrirá mão dos prazos de defesa, pedindo o imediato julgamento. É possível que ele volte ao cargo. Tudo depende da definição do tribunal.
Karina Kufa — Qualquer resultado que for acolhido agora — seja o retorno de Reinehr à vice-governadoria ou a continuidade de forma efetiva, e não interina, no governo do Estado —  para nós é positivo. O que queríamos era que não fosse feita nenhuma injustiça. Nosso objetivo já foi alcançado e desejamos que nenhuma arbitrariedade ocorra. 

ConJur — O processo de impeachment acabou ganhando fôlego depois que o governo foi alvo de uma segunda acusação: a compra de respiradores a preço superior ao de mercado. As acusações contra Reinehr foram arquivadas, mas o governador ainda é alvo de um segundo processo de impeachment. Houve má-fé da acusação ao envolver a vice-governadora no caso dos respiradores?
Ana Blasi —
Totalmente. Reinehr, na pandemia, não ocupou o governo do Estado em momento algum. Ela jamais poderia ser impedida sem ter ocupado o cargo de titular. O vice-governador não tem atribuições compatíveis com eventuais faltas graves ou gravíssimas no exercício do cargo quando não está em exercício. Além disso, quando a Daniela soube pela imprensa de possíveis problemas em relação à compra dos respiradores, foram expedidos 14 ofícios a vários órgãos de controle. Ela comprovou, com documentos, que atuou publicamente no sentido de pedir providências e apurações. Se porventura ela fosse incluída nesse segundo impeachment, seria, escancaradamente, uma manobra política.
Karina Kufa — De fato, não tinha consistência para a manutenção dela (no processo de impeachment). É muito pior do que o primeiro caso, justamente porque Reinehr não exerceu o mandato. Não teria motivo para a Assembleia Legislativa imputar a ela um ato que não lhe seria cabível. Estamos bem tranquilas e satisfeitas com a vitória. 

ConJur — Ela só foi incluída inicialmente no processo pelo fato de ser a vice-governadora?
Ana Blasi —
Sim. Nesse ano difícil que a gente está vivendo, é uma pena enorme a gente ver um Estado tão pujante estagnado durante essa disputa política. A chapa foi eleita com 72% do voto popular e isso é muita coisa. A nossa vitória foi grande também por conta disso. Não só no sentido de manter Reinehr no cargo, mas por manter o respeito à democracia representativa aqui em Santa Catarina.
Karina Kufa — A acusação tentou trazer a jurisprudência da Justiça Eleitoral, que fala que independentemente do ato praticado pelo titular ou pela vice, a chapa responde. Mas são situações totalmente distintas. No processo eleitoral, o vice é beneficiado pelo resultado eleitoral. Por isso que, independentemente de quem praticou o ato, o resultado é a derrubada da chapa. No caso do impeachment, ou de qualquer outro processo de natureza administrativa, o processo deve ocorrer de forma individualizada. Por mais que Reinehr tenha se livrado de dois processos de impeachment, ser noticiado que ela está respondendo a esse processo causa um dano extremamente alto. É um dano à imagem, é um dano político e emocional. A situação aqui em Santa Catarina trouxe à luz essa problemática grande e a necessidade de regulamentação do impeachment. 

ConJur — Levando em conta que Reinehr não responde mais a nenhum processo, há algum próximo passo ou esse já é um assunto encerrado?
Ana Blasi —
Ela está na interinidade do governo aguardando a definição em relação aos processos em que o governador Moisés ocupa a parte passiva e, dependendo do que acontecer, ela ficará como governadora até 2022 ou voltará à sua posição de vice.
Karina Kufa — Exatamente. Do ponto de vista jurídico, nossa missão foi cumprida com total êxito. 

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