Guerra de narrativas

Justiça Eleitoral não é mediadora da verdade, diz presidente do TRE-SP

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2 de novembro de 2020, 8h13

A Justiça Eleitoral carrega a responsabilidade de garantir a lisura e tranquilidade para a realização do mais importante e mais complexo evento da democracia. Em São Paulo, a tarefa é dividida entre os muitos membros do Tribunal Regional Eleitoral e, em especial, pelo seu atual presidente, o desembargador Waldir Sebastião de Nuevo Campos Junior. É um desafio singular, pois envolve o choque de todas as questões sociais, políticas e econômicas mais relevantes e recentes, exigindo uma atuação vanguardista e, paradoxalmente, muito bem presa aos preceitos e jurisprudências estabelecidas.

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Neste ano, não bastasse a tarefa de tentar realizar eleições municipais onde há 93.373 candidaturas registradas nos 645 municípios do estado de São Paulo, existia a expectativa de que a Justiça respondesse aos problemas surgidos no pleito de 2018, flagrantemente marcado pelo uso deliberado de campanhas massivas de desinformação nas redes sociais. E isso antes da epidemia de Covid-19, que forçou pessoas a experimentarem novas formas de interação social.

O presidente Nuevo Campos, com 37 anos de carreira na magistratura paulista, assento na 10ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP e em seu quarto biênio no TRE (já foi vice-presidente e corregedor regional eleitoral, além de presidente do Colégio de Corregedores do Brasil) é enfático na sua confiança na Justiça Eleitoral e na confiabilidade e segurança do processo.

"Renovamos 50% do Congresso Nacional. Políticos tradicionais não conseguiram a sua reeleição. Em 24 anos de uso da urna eletrônica, pela segunda vez houve troca do poder federal de mãos" afirmou. "Esses dados já significam um atestado de segurança do nosso sistema."

Tentativas de enganar o eleitor não faltam. "Eu não quero falar das fake news senão a gente acaba reforçando as fake news", diz. É um problema que inspira um receio quase sobrenatural, pela sua natureza desafiadora e características abrangentes e fluidas. O TSE firmou parcerias com o Facebook e sua subsidiária de mensagens diretas, o WhatsApp, para tentar combater o conteúdo inautêntico, mesmo sendo estas plataformas mesmas as responsáveis ao menos em parte pela disseminação da desinformação.

Para Nuevo Campos, no entanto, as armas legislativas para combater a desinformação já existem e as agências de checagem e as parcerias com as gigantes digitais são importantes, principalmente, para conscientizar o público, combater sistematicamente a desinformação e reduzir a polarização das opiniões. Para ele, é importante que a população lembre que "a Justiça Eleitoral não pode ser a mediadora da verdade".

ConJur — Quais são as metas e objetivos da sua administração no TRE?
Waldir Nuevo Campos —
Veja bem, a Justiça Eleitoral tem uma competência muito específica. Sempre trabalhamos para atender o eleitor da melhor maneira possível e sempre para dar a maior transparência possível, quer à gestão administrativa, quer à gestão do processo político eleitoral. Estamos tomando todas as providências nesse sentido. E a pandemia, por incrível que pareça, vai deixar um legado muito importante nesse sentido. Antigamente, antes da pandemia, no nosso Plenário, só assistia quem lá estivesse presente. E, com a pandemia, nós acabamos adquirindo um programa para fazer reuniões por videoconferência. Já fizemos centenas de sessões, todas transmitidas ao vivo, online, pelo Youtube. Ou seja, a nossa gestão busca sempre a melhoria. Estamos aí dando todo o apoio ao Tribunal Superior Eleitoral, no que tange a biometria, que é mais um passo de legitimidade do processo político eleitoral, que teve, infelizmente que ser suspenso por conta dos riscos.

ConJur — A pandemia prejudicou de alguma forma o trabalho no tribunal e as suas metas? Por exemplo, o concurso para repor quadros no tribunal regional, por conta da pandemia, está suspenso.
Nuevo Campos —
Os concursos estão suspensos há muito tempo na esfera federal.  Agora, a pandemia trouxe, é lógico, para todos nós, problemas. E para a Justiça Eleitoral trouxe a necessidade prudente de adiarmos as eleições. O ministro Barroso, em um diálogo plural, principalmente com o Congresso, ouvindo especialistas, chegou a essa conclusão, e prudentemente foram adiados os pleitos e tivemos que fazer algumas adaptações. Em certo momento, nossos funcionários também estavam trabalhando remotamente. Então, isso gerou um retardamento da preparação das urnas, se estavam em condições, a correção daquelas que estavam apresentando algum tipo de defeito no seu funcionamento, mas já foi tudo superado.

ConJur — De que forma o TRE está pensando em realizar a organização das eleições para proteger o eleitor de focos de contaminação?
Nuevo Campos —
Neste momento o atendimento se dá por meio do site, através de e-mail no cartório, e ele se dá através de agendamento para o atendimento presencial no cartório. No dia da eleição, teremos protocolos de segurança. Não vai ser admitido ninguém sem máscara nos locais de votação, vamos ter uma equipe de apoio logístico, que vai orientar os eleitores. Nas filas, os eleitores ficarão distanciados por pelo menos um metro, com marcação no chão para que haja esse distanciamento. Estamos recomendando que as pessoas não votem acompanhadas e se dirijam [às zonas eleitorais], na medida do possível, sozinhas. Todos terão que estar com a máscara.

Dentro da seção eleitoral existem também alguns cuidados: todos os mesários estarão com máscara, dentro do possível, com face shield e haverá álcool líquido e álcool em gel. Recomendamos que ele vá com a sua caneta. Ele não precisa pegar, na hora, o seu comprovante de votação, ele pode deixar para depois, baixar pelo próprio e-Título, que vai conseguir baixar a certidão de quitação eleitoral. E antes e depois de votar, vai promover a desinfecção das mãos com o álcool em gel. A sua identificação será com documento com foto, que será exibido à distância. Se necessário, rapidamente o eleitor vai baixar a máscara para ser identificado e retornar a máscara ao local. As três primeiras horas da manhã, das 7h às 10h, haverá preferência absoluta para aqueles que estão em grupo de risco. 

ConJur — Depois das campanhas pedindo a colaboração da população feitas pelo TSE com o Doutor Dráuzio Varela, como foi a adesão para ser mesário nesta eleição?
Nuevo Campos —
Foi excelente. A convocação esse ano teve novidades, fizemos convocações pelo WhatsApp, por e-mail, que foi grande quantidade e fizemos através de carta. E estamos tendo adesão, sem dúvida nenhuma. E depois desta ação do TSE, tivemos uma adesão significativa por parte dos mesários voluntários. Aliás, temos filas em algumas seções, gente esperando vaga para poder trabalhar. Trabalhamos com mais de 170 mil colaboradores e mais da metade são voluntários, não tivemos problemas. 

ConJur — Nos EUA e na Europa há uma segunda onda de alta de infecções pelo coronavírus. Se essa segunda onda chegasse ao Brasil agora, com novos recordes de contaminações no estado de São Paulo, a eleição seria afetada de alguma forma?
Nuevo Campos —
Isso está na emenda constitucional que adiou as eleições. É o artigo primeiro, parágrafo quarto, da Emenda Constitucional 107/ 2020. Isso foi objeto de cautela por parte do Congresso, daqueles que fizeram o adiamento. "No caso de as condições sanitárias de um estado ou município não permitirem a realização das eleições nas datas previstas no caput deste artigo, que são os dias 15 e 29 [de novembro], o Congresso, por provocação do Tribunal Superior Eleitoral, instruída com manifestação da autoridade sanitária nacional e após parecer da comissão mista de que trata o artigo segundo do decreto legislativo de número seis, de 20 de março de 2020, poderá editar decreto legislativo a fim de designar novas datas para a realização do pleito observada a data limite de 27 de dezembro de 2020. E caberá ao Tribunal Superior Eleitoral dispor sobre as medidas necessárias à conclusão do processo eleitoral." Ou seja, não é uma especulação, é já uma previsão, cautelosa e prudente, por parte da emenda constitucional. 

ConJur — Na esteira do que fez o TSE, o TRE também formalizou parcerias com os principais veículos de mídia social, como WhatsApp e Facebook, para detectar comportamentos condenáveis na rede?
Nuevo Campos —
Na realidade, não há necessidade de parcerias locais. Podem ser até feitas, não há problema nenhum, mas as parcerias feitas pelo TSE foram feitas para atender de forma sistemática, porque já existe um sistema de informação com o TSE, para que haja um fluxo nesta demanda de checagens. A Justiça Eleitoral, quero deixar bem claro, não pode ser a mediadora da verdade. Ela não é um órgão de checagem. Nós não temos essa função. Nós atuamos em relação às fake news, lógico, de uma forma predominantemente reativa. Nós vamos instruir os procedimentos, vamos produzir e fazer produzir as provas necessárias, para saber quem são os responsáveis pelas transgressões à legislação eleitoral, e vamos punir com severidade. Isso já constitui uma forma de prevenção, mas o enfrentamento, ele tem que ser plural. 

Hoje me parece que a sociedade já conhece o problema em todos os seus segmentos sociais. Já existem, inclusive, trabalhos estatísticos internacionais que mostram que as pessoas estão preocupadas com as fake news. O problema é que nós também temos profissionais trabalhando que sabem, através de algoritmos refinados, formatar a desinformação, de forma que elas possam permear todos os segmentos sociais. Então, o que nós precisamos é que o eleitor jamais baixe a guarda e temos cartilhas, no site do TRE, no site do TSE orientando o eleitor. Dizendo: "Se receber uma informação que chame a sua atenção positiva ou negativamente — não importa — veja quem é o autor da informação, quem lhe transmitiu, veja se está sendo veiculada por outros meios de comunicação, principalmente pelos meios tradicionais de informação, que são empresas comerciais que têm uma responsabilidade muito grande com a sua reputação diante do mercado." Ou seja, é preciso que o eleitor esteja sempre com a sua guarda alta. 

ConJur — As demandas de fake news têm chegado ao TRE?
Nuevo Campos —
A grande demanda nesse momento inicial está em primeira instância. Mas já chegou alguma coisa. Já tem direito de resposta, já estão chegando alguns casos. E isso é difícil. O que é fake news, o que é desinformação? É uma matéria que não é fácil de ser enfrentada.O que a gente precisa ter é eventualmente algo que seja sabidamente inverídico, ou seja um ataque à honra, discurso de ódio, algo muito bem formatado. Mas é muito difícil, porque até uma notícia verdadeira descontextualizada ou resgatada de muito tempo atrás pode ser uma desinformação importante. Agora, esse enfrentamento cultural é muito importante. No ano passado tivemos eleição suplementar para um prefeito que tinha sido cassado. Aconteceu que, três dias antes da eleição, surgiu nas redes sociais no âmbito local que ele estava sendo investigado pela Polícia Federal por ter praticado crime contra menores. E o candidato contra quem surgiu esse documento estava francamente na frente das pesquisas. Em três dias ele perdeu a eleição. Evidente, mesmo que quem ganhou venha ter o mandato cassado, mas o prejuízo pessoal, político, econômico não vai deixar de existir, já está concretizado. 

ConJur — Hoje a Justiça Eleitoral tem uma compreensão melhor ou uma compreensão total do que é a desinformação eleitoral?
Nuevo Campos —
Conceituar o que é desinformação, o que é fake news, é uma tarefa muito difícil, porque, como eu já disse, até uma fotografia isoladamente tirada no momento de um evento pode ser fake news, porque a pessoa pode estar com uma feição contraída quando na realidade ela esteve feliz durante todo o evento. E nós temos alguns exemplos na nossa imprensa a respeito disso. É uma tarefa muito difícil, então o caminho mais adequado para chegarmos à definição do que é fake news tem que ser algo, juridicamente, sabidamente inverídico ou algo que esteja, por estar descontextualizado, promovendo alguma distorção na formação da vontade do eleitor, ou representando efetivamente uma ofensa à honra, uma calúnia, uma injúria, uma difamação. Mas é difícil essa verificação, essa contextualização. Temos que analisar caso a caso. É por isso que dependemos das demandas, das representações e, como eu disse, a Justiça Eleitoral não faz checagem, não faz controle de conteúdo das informações. Ela recebe as demandas e através dessa recepção ela promove a reação, salvo naqueles casos em que a ilegalidade é muito flagrante, ai seria cabível, excepcionalmente, o poder de polícia do juiz eleitoral, mas para fazer cessar, mas não para instaurar um procedimento. Pra isso, ele depende de uma demanda.

ConJur — E como que o Judiciário atua para reparar o dano causado por uma fake news? No limite, é cancelar uma vitória eleitoral?
Nuevo Campos —
Veja bem, os três grandes abusos que podem ocorrer são o abuso do poder econômico, o abuso de autoridade ou o abuso dos meios de comunicação social. E esses três abusos, uma vez detectados, uma vez provados, uma vez demonstrado o estrago que ele fez, pode levar até à cassação de um registro ou até à cassação de um diploma, no limite. Mas é por isso que eu digo: nem sempre há tempo de evitar o prejuízo para o município, como agora na eleição municipal. Por quê? Porque, uma vez cassado o prefeito, eu terei que fazer uma eleição suplementar. E isso vai comprometer toda a transição de poder nesse município. Todas as consequências negativas que são inerentes a essa necessidade da cassação e da realização de nova eleição.

ConJur — As parcerias com os gigantes digitais para fazer o trabalho de checagem de informação são efetivas, dada a complexidade da matéria até para a Justiça Eleitoral? As empresas têm a competência necessária?
Nuevo Campos —
 As checagens estão disponibilizadas a todo mundo. E lá nós temos as referências a quais plataformas fazem checagem de fake news. É lógico que essas parceiras, têm uma função de atuar nesse enfrentamento plural, promovendo educação midiática e promovendo no âmbito técnico um ataque aos comportamentos inusuais, não o conteúdo das informações. Disparos em massa, os perfis falsos, os robôs, isso já é extremamente importante. E isso independe de qualquer demanda da Justiça Eleitoral, é uma parceria para que se insira nesse enfrentamento plural. Agora, no âmbito de uma representação, cabe à parte fazer a prova e produzir os elementos, não é a Justiça Eleitoral que é a responsável pela produção dessa prova, cabe a quem apresenta a representação trazer as provas.

Aliás, o nosso sistema, ele foi objeto de ataques veementes no pleito eleitoral passado. Numa constatação objetiva, dados da realidade, renovamos 50% do Congresso, políticos tradicionais não conseguiram a sua reeleição, por vários motivos. Gente nova no Congresso, em 24 anos de uso da urna eletrônica, pela segunda vez houve troca do poder federal de mãos. Ou seja, sem referir às várias auditorias, às várias audiências públicas, que ocorrem durante a preparação de cada eleição, esses dados da realidade já significam um atestado de segurança do nosso sistema. Participei de dois eventos internacionais sobre direito eleitoral, da Rede Mundial de Direito Eleitoral, tínhamos países do Ocidente e do Oriente, as grandes potências participando e a única referência ao nosso sistema foi de que é um sistema eletrônico de alta confiabilidade.

Mas o problema é que a desinformação, ela vem formatada de um tal jeito, que por vezes acaba comprometendo a confiança de pessoas muitas vezes altamente capacitadas. Em 24 anos, não tivemos nenhum caso de fraude eleitoral. Não é que seja inexpugnável, mas eu acho que o ministro Carlos Veloso, quando chamou os profissionais de ponta da área, engenheiros de alta capacitação, lá em 1996, ele conseguiu aquilo que ele queria: um sistema simples e seguro. Simples porque ele é operado com o teclado do telefone da época. E seguro: é uma máquina que, uma vez preparada com o sistema de votação e o nome dos candidatos, ela recebe a votação, e, no final do dia, ela já se auto apura com a distribuição das tiras. Ou seja, é difícil intervir. E depois alguém pode falar: "é, mas na comunicação dos dados pode acontecer alguma coisa". Pode, mas cada lote vai devidamente identificado e é possível fazer a conferência se houver alguma dúvida. Então, eu acho que é um sistema realmente bastante seguro. 

ConJur — Na sua opinião, qual o objetivo da desinformação que tenta minar a confiança da população no processo eleitoral?
Nuevo Campos —
É impossível saber qual é o objetivo específico dessas fake news, dessa desinformação. Mas me parece que, de alguma forma, o que se quer é desestabilização do processo político eleitoral para, tirar algum tipo de proveito dessa desestabilização e influir de alguma forma na formação da vontade do eleitor, na adequada formação da vontade do eleitor. Então, talvez criar um clima de desconfiança com alguma finalidade específica. É difícil nós sabermos exatamente qual é a orientação dessa desinformação. É algo que realmente não há base sólida para dar uma resposta mais concreta. Lógico que ela tem um objetivo. Agora, qual objetivo específico? A primeira consequência dessa desinformação é justamente criar um clima de desconfiança, inclusive em relação à própria gestão do processo político eleitoral. Creio que, de algumas formas, algumas pessoas podem tirar proveito disso durante a campanha eleitoral.

ConJur — Na falta de uma lei específica para esse assunto das fake news, como os juízes eleitorais têm procedido? Está acompanhando os debates no Congresso sobre o PL das fake news?
Nuevo Campos —
Sinceramente eu não estou acompanhando porque, na realidade, ainda está em discussão e pode caminhar de maneiras diversas esse projeto de lei. Agora, eu não digo que nós não tenhamos um quadro normativo, um marco regulatório que possa ser suficiente, porque fake news pode ser ofensa à honra, pode ser a utilização indevida de meio de comunicação social, abuso do poder econômico, abuso do poder de autoridade. Então, nós temos alguns instrumentos, algumas representações, algumas ações eleitorais que podem ser utilizadas no caso da desinformação ou das fake news que de alguma forma venha distorcer o processo eleitoral. E a Justiça Eleitoral, no âmbito restrito de cada um desses instrumentos tem atuado reativamente. Agora, o que você está pensando é uma proteção mais sistemática, mais específica. Creio eu que a melhor forma de enfrentar as fake news é educação midiática, é a conscientização da sociedade. Os países em que há essa conscientização da sociedade sobre as fake news, sobre a importância do processo político eleitoral, baixou a polarização e diminuiu o efeito das fake news, porque as fake news acabam tendo um trânsito muito maior em ambientes polarizados. A polarização acaba abrindo a porta para esse tipo de estratégia de convencimento da população.

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