Defesa da concorrência

O caminhar do Cade e da defesa da concorrência no Brasil

Autor

2 de novembro de 2020, 21h09

Foi motivo de enorme satisfação ser informado pela ConJur da abertura de um espaço nesta prestigiada revista eletrônica para debates sobre o Direito Concorrencial. E à satisfação somou-se a honra ao ser convidado para contribuir com o artigo inaugural desta série.

Spacca

Assim, para ajudar os leitores da ConJur a contextualizar o tema, julguei interessante apresentar uma síntese histórica do desenvolvimento da defesa da concorrência no Brasil e, como não poderia deixar de ser, do próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Como será mostrado, o Cade atravessou, ao longo de sua vida, diversas e significativas mudanças não apenas internas, mas também legais, econômicas e políticas no Brasil, de forma que cabe a seguinte pergunta: o Cade e a defesa da concorrência no Brasil atingiram o grau desejado de maturidade institucional? Ou ainda há espaço para aprimoramentos?

Para essa análise, vou considerar a vida do Cade em três períodos. O primeiro vai de sua inauguração, em 1962, até a entrada em vigor da Lei nº 8.884/94. O segundo corresponde ao período de vigência da lei anterior até a edição da nova lei antitruste, a Lei nº 12.529/2011. Já o terceiro corresponde ao período que vivemos agora, nesta década em que o Cade é um senhor quinquagenário, respeitado no Brasil e no exterior.

Por fim, acho válido trazer algumas reflexões sobre o que está por vir. Esse olhar para o futuro, embora arriscado, tendo em vista que novos personagens, contextos, teorias e metodologias vão surgir, é indispensável para que o Cade continue sua trajetória de sucesso.

Cade: passado, presente e futuro
O Cade foi criado com a promulgação da Lei nº 4.137/62, no governo do presidente João Goulart, como um órgão do Ministério da Justiça. Ao longo desse período, ele teve um papel limitado, tendo em vista principalmente que o modelo econômico do país não era voltado para a busca da concorrência, mas, sim, para a intervenção estatal.

Motta e Salgado (2015) expõem que anteriormente já havia iniciativas no país de combate ao abuso do poder econômico, como decretos publicados em 1938 e 1942 que coibiam condutas abusivas e acordos ou fusões que dificultassem a concorrência. Contudo, é apenas com a entrada em vigor da Lei nº 8.884/94 [1] e sua transformação em autarquia que o Cade passa de fato a ter autonomia e força para fazer a defesa da concorrência.

Ressalte-se, como exposto por Silveira (2021), que a origem do Direito da Concorrência — sendo norte-americano seu núcleo primordial, porquanto suas primeiras expressões ocorrem nos Estados Unidos e no Canadá — data de mais de cem anos atrás. No entanto, segundo o autor, ele chega ao Brasil no formato de política pública efetivamente apenas nos anos 90.

A partir daí, importantes avanços foram realizados, sendo possível citar alguns dos principais. Em relação à jurisprudência, um dos exemplos foi a mudança de entendimento do conselho sobre o faturamento de qualquer dos participantes para notificação obrigatória de atos de concentração. O artigo 54, §3º, da lei vigente dispunha que eram R$ 400 milhões, sendo que inicialmente o conselho considerava como faturamento mundial. Só que, devido ao excesso de notificações, alterou-se o entendimento para que o valor fosse apenas no Brasil, posição sumulada em 2005, reduzindo-se consideravelmente o número de casos. Isso gerou um importante ganho de eficiência.

Ainda na vigência da Lei 8.884/94, houve outros avanços, como nos Acordos de Leniência e nos Termos de Compromisso de Cessação (TCC). Como explicado por Martinez (2013), o acordo de leniência segue a lógica "da cenoura e do porrete" (stick-and-carrot approach), com base na teoria dos jogos. O primeiro acordo foi firmado pela antiga Secretaria de Direito Econômico (SDE) em 2003 e, desde então, o procedimento vem sendo aperfeiçoado. No mesmo sentido, o programa de TCC do Cade conta com vasta experiência e credibilidade, sendo modelo para programas de acordos de outros órgãos públicos. 

Passando à fase seguinte, simbolicamente houve uma nova transformação quando o Cade completou seus 50 anos. Em termos práticos, vale ressaltar a mudança de sede e, principalmente, a entrada em vigor da atual lei concorrencial, ambas no ano de 2012.

Um relevante ganho de eficiência ocorreu pelo fato de o Cade assumir as atribuições da SDE e parte das atribuições da Secretaria de Acompanhamento Econômico, aumentando a eficiência operacional. Para tanto, foi criada a Superintendência-Geral, com uma estrutura singular que permite maior agilidade, em que pese também algum risco organizacional. Contudo, para mitigar esse risco, há os institutos da avocação e dos recursos para o tribunal, que é um colegiado. Dessa forma, o Cade se beneficia da celeridade e eficiência de um órgão singular, mas analisando de forma colegiada os casos mais complexos e relevantes.

Outro importante avanço foi a criação do Departamento de Estudos Econômicos (DEE). Em que pese o conhecimento econômico do corpo técnico e dos membros do tribunal, um departamento especializado em análise econômica é fundamental. Ele não apenas presta assessoria nos casos concretos, como também vem sendo bastante atuante na elaboração de estudos, com dezenas disponibilizados à população.

Esses estudos são utilizados inclusive em uma área de atuação muito relevante no Cade, que é a advocacia da concorrência, também conhecida por advocacy. Ao lado do controle de condutas e de estruturas, a conscientização dos setores privado e público em relação à importância da concorrência para o desenvolvimento do país é fundamental para que de fato o país tenha uma cultura de respeito a regras adequadas de mercado.

Outro ponto importante refere-se à cooperação do Cade com outros órgãos nacionais e estrangeiros, seja referente a processos, seja para advocacia da concorrência. Entre outros, o Cade atualmente possui acordos de cooperação técnica com todos os Ministérios Públicos. Digno de nota é o acordo com o Banco Central, que pôs fim a um conflito de competência que durou décadas.

Com tudo isso, o Cade é bastante respeitado no mundo todo, com diversos prêmios e sendo considerado uma das melhores agências do mundo, segundo o ranking da respeitada Global Competition Review. Ademais, vale citar o ingresso do Cade na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), fruto do reconhecimento, por parte dos principais países do mundo, da maturidade institucional do Cade.

Se voltarmos no tempo e compararmos as realidades vividas em meados dos anos 90 do século passado e hoje, não tenho dúvidas em afirmar que neste quarto de século a análise antitruste, tanto sob o ponto de vista do direito quanto da ciência econômica, é uma das áreas de conhecimento que mais evoluiu no Brasil. E esse sucesso é compartilhado pelos setores público e privado, bem como pela academia e pelo terceiro setor.

Com isso, cabe a pergunta se o Cade alcançou um nível de maturidade em que haverá uma provável estabilização de sua atuação e da prática antitruste no Brasil. Ou será que ainda há espaço para mudanças significativas ao longo dos anos?

Acredito que ainda há espaço para novas evoluções relevantes, em diversos aspectos. Um aspecto extremamente importante é em relação aos mercados digitais. Embora não seja mais novidade e o Cade já esteja atuando nesse tema, a tecnologia começou a afetar profundamente toda a sociedade, o que impacta diretamente os mercados e a análise antitruste. E a tendência é de haver grandes revoluções.

Internamente, o Cade também tem como objetivo continuar com o aumento da produtividade e da qualidade de suas decisões. A capacitação dos servidores e o investimento em tecnologia e informação tem sido significativos, o que, aliado à qualidade do ambiente de trabalho, com a consequente retenção de profissionais motivados, vem gerando importantes ganhos para a instituição. Adicionalmente, nos últimos anos tivemos a oportunidade de estreitar bastante os laços com outras instituições, mas a continuidade desse trabalho é muito relevante para a ampliação da capacidade de atuação do Cade.

Por fim, gostaria de ressaltar não algo novo, mas um ponto extremamente importante e há muito debatido no Direito de forma geral, mas que ainda há um déficit na prática. Trata-se da segurança jurídica. A análise concorrencial, baseada na teoria econômica, oferece um interesse meio de interpretar e aplicar a lei, de modo a se alcançar decisões adequadas, e que, por isso, tendem a ser mais perenes.

A consolidação da jurisprudência reforça a segurança jurídica, e isso reduz custos de transação no setor privado, facilitando o desenvolvimento dos negócios e incrementando a riqueza do país. Com isso, em que pese todas as evoluções na história do Cade e na defesa da concorrência no Brasil, não podemos perder de vista a especialização do Cade, a jurisprudência, e a teoria e o instrumental econômicos. Não que mudanças não possam ocorrer, mas ela deve ser bem fundamentada, a fim de não gerar enormes prejuízos, apesar das boas intenções.

Conclusão
Considerando todos os aspectos trazidos, verifica-se que o Cade vem se adaptando e se modernizando, e, com isso, aplicando de forma célere e eficiente a bem-sucedida teoria e prática da defesa da concorrência, sendo referência de órgão público no Brasil e no mundo. O desafio é continuar nesse rumo.

Também pode-se concluir pelo notável progresso tanto do Direito Concorrencial quanto da análise econômica concorrencial. A quantidade, e a qualidade, do material produzido nessas áreas nos últimos anos impressionam. Tenho a certeza que teremos uma excelente amostra desse nível de excelência nos artigos que se sucederão neste espaço idealizado pela ConJur.

Ainda assim, acredito que cada um dos pontos levantados possa ser aperfeiçoado, e que novidades relevantes tendem a surgir. Contudo, não se pode perder de vista, tanto por parte tanto dos membros do Cade, como pelos demais que interagem com a defesa da concorrência, sobre a importância da segurança jurídica e a busca por decisões que efetivamente melhorem a vida da sociedade. Esse é um dever do Estado.

 

Referência bibliográfica
MARTINEZ, A. P. A Repressão a Cartéis: interface entre Direito Administrativo e Direito Penal. São Paulo: Singular, 2013.

MOTTA, Massimo; SALGADO, L. H. Politica de Concorrência: teoria e prática e sua aplicação no Brasil, 1ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

SILVEIRA, Paulo Burnier da. Direito da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

 


[1] A lei concorrencial veio na esteira na Constituição de 1988, que prevê expressamente no artigo 173, § 4º, que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!