Opinião

Testamento de bens digitais evita intervenção do Judiciário no assunto

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2 de novembro de 2020, 11h16

O mundo mudou absurdamente nas últimas duas décadas. A vida dos cidadãos se tornou, ao longo dos anos, mais digital, mais virtual.

Computadores, smartphones, tablets, laptops, todos conectados ao "mundo virtual", fazem parte da rotina de bilhões de pessoas em todo o mundo. Caminhamos para um mundo em que o virtual e o real se interseccionam cada vez mais, surgindo conceitos como o da internet das coisas, que bem representam estas mudanças. E não há dúvidas de que tais mudanças vieram para ficar.

Possuímos identidades eletrônicas, perfil de redes sociais diversas, apps para todos os gostos em nossos celulares, contas em bancos virtuais, wallets, carteiras de moedas eletrônicas (exemplo: bitcoins), licenças de livros eletrônicos, músicas e jogos digitais — bens, em suma, intangíveis —, que são protegidos por senhas e perguntas secretas.

As nossas informações pessoais nunca estiveram tão expostas como hoje, a ponto de termos regulamento a chamada LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal nº 13.709/2018), que pena para entrar em vigor e, efetivamente, proteger os dados de milhões de cidadãos.

Por sua vez, os bens digitais atrelados a essas ferramentas diversas têm valor econômico e pessoal.

Daí nos surgem algumas perguntas: qual a melhor forma de o titular do direito resguardar os seus bens? O que acontece com esses bens digitais quando morrermos? Como eles entram na sucessão hereditária? Um famoso caso ocorreu com a discussão sobre a conta do Instagram do ex-jogador de basquete Kobe Bryant (que tinha uso pessoal e comercial), falecido em 26 de janeiro deste ano .

Após o início da pandemia da Covid-19, que atualmente assola o mundo, ficou ainda mais clara a importância dessas perguntas e a necessidade de regulamentar o assunto em nossa legislação.

Há um crescente questionamento sobre a proteção de tais bens digitais ao seu titular, em eventual testamento ou inventário. No entanto, os conceitos de bens digitais e de herança digital ainda não são regulamentados por lei no Brasil. O melhor de que dispomos, no momento, são a LGPD e os artigos 10 a 12 da Lei Federal nº 12.965/2014 (a chamada Lei do Marco Civil da internet).

Hoje, quando surgem tais questões nos inventários judiciais, tem cabido ao Poder Judiciário, caso a caso, fazer a interpretação sistemática da norma existente. Mas isso claramente não é suficiente.

Na Câmara dos Deputados, ao menos, quatro projetos de lei (PLs 4.099/2012, 4.874/2012, 7.742/2017 e 8.562/2017) [1] trataram, ainda que de forma supérflua, do assunto. Eles estão atualmente arquivados, mas é certo que o assunto deverá ser retomado, diante da relevância do tema e dificuldades em sua interpretação, pelo aparente conflito de direitos fundamentais como direito à privacidade, direito de propriedade etc.

A regulamentação se faz necessária especialmente por haver a necessidade de tratar o conteúdo patrimonial, como também o resguardo de informações e dados personalíssimos (o chamado conteúdo existencial), cujo sigilo o titular não gostaria de ter violado.

Em outros países, temos discussões similares ao que ocorre no Brasil. Em alguns países, ela já vem sendo tratada de forma mais avançada (inclusive com legislação vigente), e em outros ainda de forma incipiente.

Nos Estados Unidos, por exemplo, desde 2015 a questão é sintetizada pela ULC (Uniform Law Comission — algo como Comissão de Uniformização da Lei, em português) em um documento intitulado Uniform Fiduciary Access To Digital Assets Act (UFADAA), o qual serviu de referência — e foi adotado — por todos os Estados ao longo dos últimos quatro anos, tratando da definição de conceitos importantes como o de bens digitais, além de instituir regras para acesso a esses bens digitais, tanto pelo titular, quanto, em caso de usuário falecido, por aqueles autorizados por lei, decisão em processo judicial (promovido pelos sucessores do titular) ou procuração com poderes específicos para tal fim.

Nos países europeus, a legislação ainda é tímida.

No Reino Unido da Grã-Bretanha, não há legislação específica sobre a questão dos bens e herança digital, mas em decisão recente, proferida no processo CL-2019-000746, em 13 de dezembro de 2019, em caso relacionado a bitcoins, a Corte Superior Britânica se posicionou sobre o assunto, reconhecendo a existência destes bens digitais.

Na Alemanha, em 2018, a questão da herança digital foi objeto de interessante discussão no julgamento do processo BGH III ZR 183/17, decisão esta que concedeu aos pais de uma adolescente, falecida em um acidente no metrô de Berlim em 2012, o direito de acessar a conta de sua filha no Facebook para buscar pistas que esclarecessem o ocorrido, já que havia a suspeita de suicídio da menor e a necessidade de defesa em ação indenizatória promovida pelo condutor do trem, que buscava reparação pelo abalo emocional sofrido por conta do evento. Esse caso, pela profundidade do debate instaurado, tornou-se um leading case europeu [2].

Destacamos, ainda, que dar aos herdeiros acesso ao conteúdo digital do falecido não implica permitir que as contas sejam utilizadas livremente, nem tampouco que as mensagens ou outros dados sejam divulgados, como ressaltou a decisão do BGH.

E no Brasil? Por aqui, enquanto não há legislação, o Poder Judiciário, ao apreciar alguns casos, tem decidido de forma controvertida.

Em Minas Gerais, por exemplo, no Processo nº 0023375-92.2017.8.13.0520, foi negado um pedido formulado pela mãe que buscava acessar a conta virtual de sua falecida filha em um aparelho celular, sob o fundamento de que o sigilo da comunicação não poderia ser violado.

No Mato Grosso do Sul, Processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110, a Justiça permitiu que a mãe acessasse a conta de sua filha em uma rede social a fim de exclui-la, vez que amigos da filha continuavam postando mensagens nesse perfil, acarretando mais sofrimento aos familiares.

Na ausência de uma regulamentação sobre o acesso das contas e a transferências de bens eletrônicos, as pessoas podem elaborar um testamento a fim de comunicar seus herdeiros sobre sua vontade de ter ou não suas contas acessadas e, inclusive, determinar se seu perfil na rede deve ser excluído.

O testamento elencando a existência de bens eletrônicos e manifestando à vontade impede que seja necessária a intervenção do Poder Judiciário para decidir sobre o tema e, consequentemente, garante que a vontade do testador seja impositiva para seus herdeiros.

Advogados têm orientado seus clientes, quando da feitura de testamentos, quando cabível, a declarar manifestação de vontade quanto à manutenção de sigilo ou resguardo de informações dos titulares de contas eletrônicas.

Mesmo assim, o testamento não subtrai a necessidade de as pessoas conversarem entre si sobre a existência de bens eletrônicos e a sua vontade de existir em redes sociais, após a sua morte.

 


[1] O Projeto de Lei nº 4.099/2012, ao qual foi apensado o Projeto de Lei nº 4.874/2012, visava alterar o artigo 1.788, com a inclusão de parágrafo único garantindo a transmissão aos herdeiros da chamadas herança digital, mas foram arquivados.
O Projeto de Lei nº 7.742/2017, acrescentaria o artigo 10-A à Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet), a fim de dispor sobre a destinação das contas de aplicações de internet após a morte de seu titular. Ele foi apensado ao PL nº 8.562/2017.
O Projeto de Lei nº 8.562/2017 por sua vez, visa incluir os artigos 1.797-A, 1.797-B e 1.797-C ao Código Civil para regulamentar a chamada herança digital, definida como conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual.

[2] Referência tirada do excelente texto elaborado pela Dra. Karina Nunes Fritz, que comenta em detalhes o julgamento deste caso e pode ser visualizado em https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/308578/leading-case-bgh-reconhece-a-transmissibilidade-da-heranca-digital.

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