Opinião

Os contratos de adesão representam uma conquista evolutiva

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1 de novembro de 2020, 6h04

Há meio século, o mestre doutrinador baiano Orlando Gomes tratou dos contratos de adesão [1] como instrumentos previamente confeccionados pelo fornecedor, que poderiam ser pessoas físicas ou jurídicas, de Direito público ou privado, que atuassem no mercado do consumo, introduzindo, então, a figura no debate nacional.

Não por acaso, o surgimento dos contratos de adesão foi percebido em vários países diante da sua inegável importância para concretizar as negociações cada vez mais massificadas, num contexto de diversificação de bens de consumo e de serviços, em ascensão nos últimos séculos.

Não obstante, essa espécie de contrato possui como característica o fato de que a maioria das condições sejam estabelecidas pelo proponente. Assim, tornou-se comum o estigma de que a modalidade seria desproporcional em sua essência.

Sob essa ótica, questiona-se: tal percepção faz sentido?

De início, importa dizer que a visão supramencionada carrega um reducionismo conceitual que incorre em um erro sobre a real funcionalidade dessa modalidade contratual.

Por equívoco grave, invocam-se vícios nos contratos de adesão justamente por esses serem analisados a partir das lentes que analisam os contratos cíveis, fundados no pacta sunt servanda, o que não é completamente transportável ou cabível para as relações cada vez mais racionalizadas da sociedade moderna.

Desse modo, por exemplo, serviços de energia elétrica, fornecimento de água e gás públicos também possuem condições de contratação fixadas unilateralmente pelo poder público por meio de contratos de adesão. E, ainda assim, é raro deparar-se com ideias de que esses contratos seriam abusivos em essência, haja vista que ninguém imagina que numa relação massificada como essa haveria a necessidade de confeccionar um contrato para cada adquirente.

O contrário, porém, não ocorre quando ambas as partes são entes privados, mesmo que as relações também se deem de forma massificada, com bens e serviços padronizados.

Esclarece-se aqui que o que foi dito acima não procura excluir por completo as hipóteses em que há abuso. Ao contrário, exatamente por esse motivo existe ampla regulamentação da espécie "de adesão" no Código de Defesa do Consumidor, e eventuais comportamentos nocivos devem ser corrigidos pelos meios adequados.

Arrisca-se, inclusive, dizer que, nesse caso, eventual debate judicial sobre cláusulas abusivas pode corrigir o problema de maneira muito mais veloz, exatamente por consequência dos contratos serem iguais. Eventual correção de uma cláusula acarretará na correção de todos os contratos daquele tipo.

Isso não importa concordar, porém, com a ideia de que os contratos de adesão seriam ruins "por si só". De modo diametralmente oposto, eles representam verdadeira aquisição evolutiva [2] de nossas sociedades, sem os quais nossa vivência atual seria, no mínimo, impossível, para não dizer caótica.

É notório que, nas relações contratuais do Direito Civil, pressupõe-se que aqueles que desejam contratar apertam mãos após sentarem-se em uma mesa para negociar em igualdade de condições, transmitindo seu elemento volitivo de suas subjetividades para um instrumento objetivo — o contrato. Essa realidade ainda persiste — e assim deve permanecer — para as situações em que for a mais racional.

No entanto, no mesmo caminho da racionalização, os contratos de adesão configuram-se como uma resposta dos fornecedores de produtos e serviços perante os expressivos avanços econômicos e tecnológicos. Em outras palavras, significa dizer que as relações sociais se tornam a cada dia mais dinamizadas e, assim, caracterizam-se por exigir rapidez de solução das demandas dos clientes e dos mercados

Dessa forma, esse modelo de oferecimento de produtos para os milhões de clientes pressupõe um planejamento estratégico do fornecedor que deve ser acompanhado de um modelo contratual compatível. Pontua-se como exemplo a produção eletroeletrônica: não faria sentido uma empresa produzir um novo telefone celular para reproduzi-lo um milhão de vezes e, depois, elaborar um milhão de contratos diferentes para um milhão de compradores [3].

Mesma análise se aplica ao setor de serviços e para os produtos financeiros, bancários e securitários. Com efeito, os empréstimos bancários são efetuados em grande parte por meio de contratos de adesão. Essa prática, longe de ser "abusiva" em si, é, na verdade, uma alternativa eficiente das instituições financeiras para responder à demanda crescente por crédito e outros produtos.

Não é exagero afirmar que, diante desse cenário, os contratos de adesão praticados possuem como objetivo justamente reduzir a complexidade das milhões de negociações que ocorrem diariamente no mundo e, ao cabo, facilitar e baratear o acesso aos bens e serviços, sedimentando práticas mais corriqueiras e, com isso, oferecendo condições mais vantajosas de acordo com perfis, segmentos e padrões de consumo.

Essa prática, portanto, deve ser um dos pilares de contribuição para uma economia vibrante, saudável e que estimule a competitividade entre os fornecedores pelo melhor modelo de contrato, não sendo isenta de controle e regulamentações quando se provar necessário.

Finalmente, nessa mesma toada, uma lei de proteção ao consumidor, bem como a sua interpretação, pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos e, para isso, importante firmar entendimento de que o contrato de adesão não pode ser considerado "abusivo" a partir de uma ótica da tradição privatista, uma vez que essa parte da hermenêutica típica das relações privadas, com base na ideia romana do pacta sunt servanda, é, em certa medida, inaplicável às relações dinamizadas e velozes da sociedade moderna, sob pena de excluir o elemento mais importante dos contratos de adesão: a sua função facilitadora.

 


[1] Em seu livro de 1972, "Contratos de Adesão".

[2] Termo trabalhado pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann quando trata das constituições dos Estados modernos.

[3] Exemplo similar ao brilhante raciocínio utilizado pelo desembargador aposentado do TJ/SP, Rizzatto Nunes, ao falar sobre a indústria automobilística.

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