Embargos Culturais

Guimarães Rosa e a hora e vez de Augusto Matraga

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de novembro de 2020, 8h01

Em rodapé literário publicado no Diário de São Paulo, em 11 de julho de 1946, Antonio Candido afirmava que "A hora e vez de Augusto Matraga" estaria entre os dez ou 12 contos mais perfeitos de nossa língua. Guimarães Rosa, prosseguia o crítico literário, iria reto para a linha dos nossos maiores escritores. "Sagarana", o livro de contos (ou de pequenas novelas) que fecha com "A hora e vez de Augusto Matraga", ainda segundo Candido, "nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura". É um conto aliciante.

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Em "A hora e vez de Augusto Matraga", aprecia-se um regionalismo de algum modo universalizante. Um argumento local, explicitado em linguagem também local (ainda que interpolada por neologismos e invenções) e protagonizado por personagens ainda mais locais, formam o pano de fundo para um dos temas centrais da experiência humana: o dilema entre o livre-arbítrio e o determinismo.

Até onde somos livres para desenharmos nossos destinos? Qual o limite de nossa capacidade de mudarmos? Quais os obstáculos mais fortes que impedem que consigamos sair de nós mesmos? Há capacidade humana de redenção? Há sabedoria em aceitarmos os fatos da vida? De que modo a resiliência, enquanto capacidade de lidarmos com nossas frustrações, constitui-se como referência última da sobrevivência?

Essas questões são colocadas por Guimarães Rosa, sem pretensão de resposta definitiva e acabada nesse fascinante texto, talvez longo demais para um conto, e curto demais para uma novela. Em carta endereçada ao escritor pernambucano João Condé, que a filha do autor de "Sagarana", Vilma Guimarães Rosa, publicou em livro de memórias sobre o pai ("Relembramentos"), o escritor afirmou que "A hora e vez de Augusto Matraga" era (no contexto de "Sagarana") a história mais séria, uma síntese e chave de todas as outras. Ainda, quanto à forma, considerava sua vitória mais íntima. Desde o começo do livro era o estilo que procurava descobrir.

As personagens que compõem o livro sintetizam contexto local que varia em relação ao contexto universal apenas no que seja pitoresco e contingencial. O Augusto Matraga é, na verdade, o Augusto Esteves, o Nhô Augusto. Era "duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato". Era filho do Coronel Afonsão Esteves. Há também Angélica (preta e mais ou menos capenga) e Sariema (Tomázia, pescoço e pernas finas), as mulheres leiloadas no início da estória. Sariema, no linguajar local, tinha "perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca". Desconheço se o trocadilho é simples rima pobre ou se haveria menção, ainda que com efeito de rima, ao marechal Manuel Deodoro da Fonseca, o proclamador da República. O "capiau de cara romântica" é o enamorado de uma das mulheres que era levada a leilão. Tião é o leiloeiro.

Dona Dionóra (que tinha cabelos e olhos sérios) é a esposa do Matraga, que fugiu com Ovídio Moura, com quem foi morar. Diodóra havia enfrentado oposição da família para se casar. Amou o marido por três anos, duvidou do amor por mais dois anos; o resto do tempo o suportou. O marido era violento, agressivo, desinteressado da família. Mimita (que contava dez anos) é a filha de Matraga, que seguiu com a mãe, e que na idade adulta foi para a prostituição. O Quim-recadeiro é o fiel jagunço que levou ao Matraga a notícia da fuga de Dona Dionóra. Morreu mais tarde, defendendo o patrão. Era fiel.

O Major Consilva é quem ordena que agridam e matem o Matraga. Sarapião e Quitéria são os "pretos samaritanos" que salvaram Augusto da morte. O Padre foi quem chamou a atenção de que havia possibilidade de redenção. O Tião da Theresa foi o parente que o reconheceu, e a quem Augusto pediu discrição. Joãozinho Bem-Bem é o temível jagunço que se afeiçoou ao Matraga, e que protagoniza, com o personagem central, o momento exato da "hora e vez". O Joãozinho Bem-Bem era o "arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa". Há também uma renca de jagunços e de personagens menores: Tobias da Venda, Flosino Capeta, Nicolau Cardoso, Franquilino de Albuquerque, Teófilo Sussuarana, João Lomba, se copio todos.

"A hora e vez de Augusto Matraga" pode ser lido em três partes em narrativa linear e sequencial. No fim de uma festa religiosa, quando apenas bêbedos e arruaceiros estavam na praça fez-se um leilão de mulheres. Com arrogância, o Matraga arrematou uma delas, por dez vezes o valor do lance anterior. Dona Diódora e a filhado Matraga fugiram, e foram viver com o Ovídio Moura, que as recebeu e protegeu. Augusto está em decadência, os negócios vão mal, não consegue pagar os salários dos capangas, que mudam de lado e passam a trabalhar com o Major Consilva. Augusto tenta vingança. Cai numa emboscada. Apanhou muito. Os jagunços do Major marcaram a ferro, com o sinal do Major, a "polpa glútea direita" de Augusto, como se o Matraga fosse gado. O ferido caiu numa ribanceira, foi salvo por Serapião e Quitéria, que conduziram Augusto a uma cabana muito simples, um "cofo de barro seco". Pediu que o matassem, mas ao fim entendeu que valia a pena tentar sobreviver. Viver vale a pena.

Na segunda parte do enredo, Augusto passa por uma transformação espiritual. Toda a gente achava que havia morrido. Lembrou-se da mulher e da filha, sem raiva e sofrimento. Chorava como menino e chamava a mãe. Um padre o atendeu. Pediu fé. Lembrou que temos hora e vez. Pensou muito. Arrependeu-se do passado. Em um rompante, afirmou que iria para o céu, nem que fosse a porrete. Deixou de fumar, de beber, de agredir aos outros. Transformou-se. Soube, por um parente (o Tião) que a esposa estava bem, que a filha se prostituíra e que o Quim-recadeiro morreu na luta por sua memória. Sentiu saudades. E sentiu que Deus lhe tirava um saco pesadíssimo que carregava nas costas.

Na última parte, conhece Joãozinho Bem-Bem, que recebe (junto com seu bando) em sua casa. Entre eles brota um respeito mútuo muito grande. Bem-Bem percebe que Augusto conhecia da vida de jagunços, que sabia lutar e que sabia atirar. O convidou para participar do bando. Augusto não aceitou. Mudara. Mas sua hora e vez chegaram. Bem-Bem, a propósito de vingar a morte de um membro do bando, exige que o pai do assassino entregue um dos filhos em sacrifício, bem como as filhas para saciar os jagunços. Uma crueldade. Augusto intervém. Penalizado com o velho, que suplicou piedade, enfrentou Bem-Bem, a quem matou. Mas foi atacado. Ferido, caído, Augusto pede que abençoem a filha, e que diga à mulher que tudo está bem. "Depois, morreu". Guimarães fecha abruptamente a narrativa.

Uma narrativa pesada, que enfrenta as perguntas lançadas no início da presente intervenção. Augusto viveu o poder, em seu esplendor, com toda ganância, violência e desprezo por quem quer que fosse. Desprezou a família. Perdeu a mulher, a filha. Os bens, as posses, os empregados, o prestígio, o respeito. Foi violentado. Foi marcado como um animal. Com muita força foi recuperando a dignidade perdida. Retomou a fé também perdida. Retomou a confiança.

Quando confrontado com uma injustiça entendeu que chegara sua hora e vez. Agiu. Fechou um ciclo. Morreu, alcançando sua epifania, momento em que compreendeu, com clareza, a essência e a razão de sua existência. Uma sensação que lhe permitiu deixar a vida em paz, na expectativa de subir aos céus e à redenção total e final, ainda que "a porrete". Uma epifania tão real, transformadora e profunda, mas não apagava os traços de sua brutalidade original.

Do ponto de vista formal, a novela contém uma variedade de expressões interessantíssimas, que revelam experiência e criatividade linguísticas sem precedentes em nosso idioma. Confiram "coçar as costas na parede", "fazendo o em-nome-do-padre", "filho único de pai pancrácio", "cresceu poeira, de peneira", "fechar os olhos de gastura", "sapo na seca coaxando, chuva beirando", "amadrinhar", "nomopadrofilhospritossantamêin", entre tantas outras. Vale um caderninho para anotar e ler antes de quando em vez.

A geografia é eufônica. Pindaíbas, Saco-do-Embira, Córrego do Murici, Morro Azul, Pau-Alto, Tachos, Tamanduá, Serra-Fria, Tombador, Rio do Sapo, Rio das Rãs, Peixe-Bravo, Vacaria, Vaca, Broa, Boqueirão, Bacupari, Carinhanha, são alguns dos lugares (a maioria deles reais) nos quais os episódios ocorrem.

Do ponto de vista das fronteiras entre a realidade e a ficção, o texto brinca com o próprio texto. O narrador, em algum ponto, conta que se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, "direitinho deste jeito, sem tirar e nem por, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor". Se a estória (sem o h, insisto) era inventada, e não ocorrida, não havia limites para o narrador. Tudo era real. Absurdamente real. Como a vida. Não nós sabemos quando tudo perdemos.

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