Opinião

O pessoal é político: gênero, raça e classe em tempos de coronavírus

Autor

  • Firmiane Venâncio

    é defensora pública do estado da Bahia e doutoranda em Gênero pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Gênero Mulheres e Feminismos da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

31 de março de 2020, 6h34

A expressão do pensamento feminista cunhada por Carol Hanischi em 1969 com a publicação do artigo "O Pessoal é Político" sintetiza a maneira como as esferas públicas e privadas se relacionam na dinâmica dos conflitos sociais. Às vezes indicando um caminho para sua compreensão, outras tantas, representando a chave para solucioná-los.

A ideia de que os problemas pessoais são problemas políticos ajuda-nos a compreender, em tempos de pandemia, que é a doação de parcela de nossas liberdades individuais o que pode evitar o colapso dos serviços essenciais e nos permitir uma condição existencial que nos leve ao final dessa jornada com sanidade física, mental e política.

Mas será que a "dose" de sacrifício é igual para todos os segmentos da sociedade brasileira? Evidentemente não. O coronavírus, a princípio, parecia promover uma mudança no vetor das vulnerabilidades, visto que atingia eminentemente pessoas de classe social mais elevada, advindas de países cujo processo de contaminação se iniciara anteriormente.

Bastou o primeiro caso diagnosticado na Bahia vir a público, para percebermos que por aqui a coisa seria bem pior: em poucos dias a patroa diagnosticada após chegar da Itália havia transmitido para sua empregada doméstica e, esta, para sua mãe.

Se a crise gerada pela pandemia leva empresas a buscarem alternativas de sobrevivência econômica, o que dizer às mulheres que: chefiam 40% dos lares brasileiros; que suportam taxa de desocupação formal superior à dos homens; e em Salvador, segundo dados do IBGE (2018), representam 40% dos trabalhadores informais, 2,7% a mais que os homens?

Como é que se explica quarentena domiciliar a mulheres negras, chefes de família e trabalhadoras da informalidade, para quem o lar representa o lugar mais inseguro às suas vidas? Segundo Atlas da Violência 2019, enquanto a taxa de feminicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de feminicídios de mulheres negras cresceu 29,9%.

As mulheres são ainda aquelas que se encontram no front das profissões relacionadas ao cuidado e saúde, sem as quais os serviços mais essenciais hoje não se sustentam: enfermeiras e auxiliares de enfermagem, junto com médicos/as representam indiscutível grupo de risco, mas, indubitavelmente, são as duas primeiras categorias, diante das condições em que as unidades hospitalares funcionam no Brasil, as mais vulnerabilizadas.

Portanto, se é verdade que a pandemia nos leva a refletir sobre a fragilidade da nossa existência, há um composto estruturante público e privado de gênero, raça e classe que precisa ser considerado tanto na destinação dos apoios estatais emergenciais quanto na ressignificação das nossas relações familiares, comunitárias e de trabalho.

Não podemos tornar mulheres, negras, negros e pobres mais uma vez os alvos da seletividade de uma tragédia sem precedentes na nossa história.

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    é defensora pública do estado da Bahia e doutoranda em Gênero pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismos da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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