Opinião

Breves notas sobre o impacto da pandemia da Covid-19 nas relações contratuais

Autores

  • Marcus Filipe Freitas Coelho

    é advogado mestre em Direito (com bolsa Capes) pela Universidade Católica de Santos professor de Direito Civil e Direito do Consumidor no Curso Proordem em Santos.

  • Gilberto Passos de Freitas

    é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Santos. Foi corregedor-geral de Justiça do TJ-SP.

31 de março de 2020, 13h35

Ultimamente, em decorrência de toda a turbulência, em escala global, decorrente da expansão geométrica do novo coronavírus, emergem as mais variadas questões e preocupações, entre elas, as consequências geradas a partir do potencial descumprimento de cláusulas e condições dos mais diversos tipos de contratos, sejam eles, o de fornecimento de mercadorias, prestação de serviços, locação, construção civil etc.

Uma dúvida muito comum é a seguinte: diante de situações absolutamente imprevisíveis, há a possibilidade de exclusão da responsabilidade das partes pela eventual quebra unilateral do contrato? Como fica a questão frente a boa-fé contratual?

Temos de avaliar primeiramente as potenciais causas de descumprimento, as razões que foram o gatilho do potencial descumprimento, ou seja, o que levou uma das partes ou ambas a não honrar sua(s) obrigação(ões).

Como é notório e amplamente divulgado pela mídia impressa, digital e televisiva, diversas medidas estão sendo adotadas pelas autoridades de todas as esferas, federal, estadual e municipal, por intermédio de ministérios, secretarias e demais órgãos, a fim de minimizar a proliferação do vírus em nosso país, inclusive com a edição da Lei 13.979/2020, que vão desde o isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, estudo ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver, restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, locomoção interestadual e intermunicipal, requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, passando pela determinação de fechamento de portos, aeroportos e rodovias, de shoppings centers, centros de compras, galerias, academias de ginástica, clubes sociais, esportivos e similares, buffets infantis, casas de festas, casas noturnas, danceterias, bares e estabelecimentos congêneres, bem como igrejas e templos de qualquer culto e de todas as atividades não essenciais.

Diante desse cenário, certamente haverá a necessidade de revisão das relações comerciais e contratuais, tendo em vista o esperado desequilíbrio financeiro que certamente atingirá as partes envolvidas nessas relações.

E para analisarmos essa questão, imprescindível situarmos a discussão sob o enfoque do caso fortuito e força maior, bem como do tipo de relação contratual que se discute, se decorrente de uma relação interempresarial ou consumerista.

Diante de uma relação interempresarial, regida pela simetria entre as partes contratantes e pelo respeito àquilo que entre elas restou ajustado, a regra que impera é a da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual.

É essa a diretriz adotada pelo Código Civil, com as alterações promovidas recentemente pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que traz nova redação aos artigos 421 e 421-A, assim redigidos:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

Contudo, apesar da regra ser a revisão contratual de maneira excepcional e limitada, a possibilidade de resolução do contrato por onerosidade excessiva está positivada no artigo 478 do Código Civil, assim redigido:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Referida previsão legal tem o objetivo de tutelar o sinalagma e o equilíbrio contratuais, regra clara de justiça comutativa, a impor aos contratantes iguais sacrifícios e benefícios. Trata-se, na realidade, de preceito que se espraia por toda a codificação, avessa ao enriquecimento de um indivíduo em detrimento irrazoável por parte de outro.

Entretanto, requisitos indispensáveis para aplicação do dispositivo são: 1) configuração de eventos extraordinários e imprevisíveis; 2) comprovação da onerosidade excessiva que causa a insuportabilidade do cumprimento do acordo para um dos contratantes; 3) que o contrato seja de execução continuada ou de execução diferida.

A respeito do primeiro requisito, entende-se como eventos extraordinários e imprevisíveis aqueles que são totalmente considerados como impossíveis de previsibilidade pelos contratantes. E aqui a pandemia do novo coronavírus se encaixa com exatidão.

Já a onerosidade excessiva significa um fato que torna difícil o cumprimento da obrigação na forma ajustada, pois impõe uma desproporção entre a prestação e a contraprestação que, por consequência, acabará por provocar uma desvantagem exagerada para um dos contratantes e comprometerá a execução equânime do contrato.

O último requisito refere-se aos contratos de duração continuada, que são aqueles que se prolongam no tempo, isto é, são contratos de execução sucessiva, ao contrário dos contratos de execução instantânea, que são aqueles em que a prestação é realizada em um só ato e os contratos de execução diferida, que são aqueles que possuem o cumprimento da obrigação num momento futuro, previamente acordado entre as partes.

Portanto, a revisão de contratos é admissível em casos especialíssimos, pois impera o princípio da força obrigatória, já que nos contratos empresariais presume-se que as partes envolvidas, de forma prudente e sensata, avaliaram os riscos da operação e, lançando mão de sua liberdade econômica, vincularam-se. Supõe-se que, no momento da celebração da avença, os contratantes entenderam que o contrato ser-lhe-ia vantajoso naquelas condições estipuladas.

Ocorre que, no caso da pandemia do novo coronavírus, é evidente que tal situação configura-se como força maior, atingindo e impactando diversas relações, razão pela qual entendemos pela plena possibilidade de revisão dos contratos e relações comerciais diante dessa situação excepcional que atinge o mundo todo.

Por outro lado, em se tratando de relação consumerista, regida pela Lei 8.078/90, impõe-se o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor diante do fornecedor (artigo 4º, I, CDC), já que se encontra em situação de desequilíbrio na relação contratual, portanto diferente das relações interempresariais.

No que tange, por exemplo, ao pagamento antecipado de mensalidades escolares, academia, curso de idiomas, o serviço em questão estará suspenso pelos próximos dias, semanas e, quiçá, meses. Nesse caso, a restituição da quantia pelo fornecedor num primeiro momento não é obrigatória, já que o serviço apesar de não ser prestado enquanto perdurar as medidas de isolamento e quarentena, o será futuramente.

Há de se ressaltar que o ministro da Educação editou a Portaria 343/2020, que dispõe sobre a autorização para a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus.

Independentemente do quanto previsto na referida portaria, as instituições de ensino têm a faculdade de, enquanto suspensas as aulas, adotarem o período de recesso, mas obrigatoriamente repor esse serviço e cumprirem com a carga horária determinada no ano letivo.

Então o que temos num primeiro momento é a suspensão do serviço, mas que será prestado num momento posterior.

Outra situação que está acontecendo com frequência diz respeito às viagens planejadas pelos consumidores. Muitas pessoas tinham viagens marcadas e decidiram cancelar por medo ou até mesmo em razão das medidas adotadas pelo governo, dentre elas, o fechamento de fronteiras.

Em situações ordinárias, se um passageiro, por exemplo, decide cancelar ou remarcar uma passagem, terá que se submeter às regras previstas no ato da compra da passagem.

Contudo, no atual cenário, em decorrência da pandemia mundial que se configura como força maior, ou seja, ante a imprevisibilidade dos efeitos do fato, os fornecedores têm por dever atender à solicitação do consumidor, em especial diante do quanto previsto no inciso V do artigo 6º do CDC, que dispõe ser direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Atualmente, as empresas do ramo de hotelaria, transportes aéreos, rodoviários e marítimos, estão dando aos consumidores duas opções: uma delas é deixar o crédito em aberto para um momento posterior; a outra é efetuar o reembolso sem retenção do valor da multa.

Importante consignar que é dever do fornecedor disponibilizar ao consumidor todos os canais possíveis de comunicação: telefone, e-mail, site. Limitar o atendimento ao consumidor é violar o direito do consumidor de obter a informação adequada e clara e a efetiva prestação do serviço (artigo 6º, III, CDC).

Feitas essas considerações, certo é que, em qualquer relação contratual, a solução deverá ser guiada pelos princípios da boa-fé, razoabilidade, proporcionalidade e transparência, sendo imprescindíveis equilíbrio e bom senso.

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