Opinião

STF, Jurisdição constitucional da exceção, democracia e coronavírus

Autores

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

30 de março de 2020, 15h33

Em meio à pandemia ocasionada pela Covid-19, o presidente da República ajuíza a ADI 6.357 cujo pedido é de interpretação conforme à Constituição dos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal, assim como dos artigos 114, caput, in fine, e §14º da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2020, com o objetivo de afastar a aplicação dos referidos dispositivos de tal modo que a adequação e complementação orçamentárias inviabilizaria os programas públicos destinados ao enfrentamento do novo coronavírus dentro do contexto de calamidade pública, conforme o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, sancionado pelo Congresso.

O ministro Alexandre de Moraes concede monocraticamente medida cautelar na data de 29 de março de 2020, afastando a exigência do artigo 10 da Lei 9.868/99, valendo lembrar que o Supremo Tribunal Federal não suspendeu suas atividades jurisdicionais no período da pandemia.

Na sua decisão, o relator vai além, a pretexto de conferir interpretação conforme à Constituição, afasta a aplicação ("incidência") dos dispositivos impugnados durante o estado de calamidade pública decorrente da Covid-19, assim como desobriga todos os entes federativos que tenham decretado o estado de calamidade a exigência de adequação e compensação orçamentárias em relação aos programas públicos realizados no contexto de enfrentamento da Covid-19.

Sua fundamentação se orienta no sentido de que, temporariamente, o planejamento e a transparência como pressupostos inarredáveis da execução orçamentária podem ser afastados em virtude de situações excepcionais donde surjam propostas legislativas indefinidas baseadas no oportunismo político que, de alguma forma, atentem contra a vida e a saúde enquanto cláusulas de direitos fundamentais que orientam toda a Constituição Federal.

A ação direta parte de uma situação em concreto, qual seja, a pandemia reconhecida pela OMS em decorrência da Covid-19 para, então, formular um pedido de interpretação conforme à Constituição de suspensão de eficácia de norma abstratamente, o que já contradiz a própria natureza da técnica decisória com decisões intermediárias de controle de constitucionalidade.

A interpretação conforme à Constituição consiste, em verdade, em um mecanismo decisório utilizado pelas Cortes Constitucionais para, em havendo duas ou mais interpretações possíveis decorrentes do mesmo texto, privilegiar àquela que seja compatível com a Constituição e, deste modo, manter a vigência/eficácia de um texto legislativo. É uma técnica que reforça o sentido e a força normativa da Constituição. Jamais pode servir para fragilizar a força normativa constitucional.

Neste sentir, a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes mostra-se inadequada, porque desborda do sentido técnico desta técnica decisória chamada Interpretação Conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), uma vez que, a pretexto de interpretar os dispositivos, suspende a eficácia dos dispositivos legais e corre o risco de autorizar uma espécie de "ditadura" ou "Estado de Exceção" financeiros.

De fato, a decisão do Ministro traz o discurso da "razoabilidade" e da "proporcionalidade" nas medidas de combate. Então, teremos de fazer controle de constitucionalidade e de legalidade com base na decisão monocrática, em sede de cautelar, discutindo o que é "razoável" e "proporcional" ao combate da pandemia?

Cabe, portanto, analisar o modo como que se insere na discussão a "razoabilidade" e a "proporcionalidade". Segundo o Min. Alexandre de Moraes, a própria suspensão da LRF é que seria razoável e proporcional para combater a pandemia, pelo tempo que a pandemia durar. Ou seja, uma decisão como essa "blindaria" os governos contra eventual responsabilização?

Este é o exemplo do funcionamento da jurisdição constitucional de exceção. Além de decidir de forma monocrática, evitando o debate no colegiado, passa ao largo do sentido de técnicas decisórias – consolidadas na tradição jurídica — para, assim, criar possibilidades que não estão previstas na Constituição.

É em meio às turbulências políticas e crises sociais que o juiz "herói" (no sentido dos modelos de juiz propostos por Cass Sunstein)  veste sua capa para impor sua vontade decisória, como se pudesse, a partir de uma decisão, salvar a democracia dela mesma.

Vejam, pois, a consequência dessa decisão monocrática. Em vez de apostar na accountability da execução orçamentária como forma de solução para a crise, a "interpretação conforme à Constituição" afasta o controle democrático na execução orçamentária e a participação popular em meio à crise social. Não é demais lembrarmos que, além do planejamento e transparência, a accountability é uma exigência constitucional do direito financeiro que, nem mesmo no caso de estado de sítio ou defesa, têm sua aplicabilidade afastada.

Aliás, mesmo nas hipóteses constitucionais de Estado de Defesa e de Estado de Sítio há um devido processo constitucional a ser seguido que impõe, por exemplo, a participação do Congresso Nacional para autorização da decretação da extraordinariedade, assim como a aprovação de um orçamento de "guerra".

As hipóteses de restrição de direitos fundamentais durante os Estados de Defesa e de Sítio  (artigos 136 e 139 da CF/88) não contemplam a dispensa de apreciação de planos e programas pelo Congresso Nacional (artigo 165, §4º da CF/88).

Daí que é possível afirmar que a decisão monocrática, a partir da interpretação do estado de calamidade pública, vai além do Estado de Sítio e de Defesa, constitucionalmente previstos.

Afastando os parâmetros constitucionais, a decisão monocrática não prevê nenhuma medida de controle democrático da execução orçamentária, dando uma espécie de autorização "ex ante" de toda e qualquer programa financeiro realizado no futuro pelo Poder Executivo.

Há uma grave ofensa à própria separação de poderes atingindo no âmago também o federalismo ao estender a decisão para os entes regionais e locais. Neste momento, como forma de manter a força normativa da Constituição e não correr o risco de instaurar uma exceção constitucional, havia de ser privilegiado um constitucionalismo democrático, donde a decisão poderia prever mecanismos de diálogos entre os poderes.

Por fim, por falar em coronavírus, é necessário aumentar nossa imunidade. Eis, aqui, o paradoxo da democracia como sistema autoimune. Lembramos, com Derrida, destes paradoxos democráticos. Assim como na patologia causada pelo coronavírus, a pretexto de defender a democracia (e a Constituição), as instituições passam a atacá-la.

Paradoxalmente, essas próprias decisões que supostamente pretendem protegê-la são também fatais. A fronteira entre o remédio e o veneno, Pharmakon, são tênues e porosas.

O único remédio é então nos imunizarmos, isto é, ouvir o hóspede, o outro, os sem-papeis, incondicionalmente. Não podemos matar o hospedeiro para nos livrarmos do hóspede.

A democracia e o coronavírus, ou a democracia contra o coronavírus.

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