Opinião

Pandemia, quarentena e as lições de Agambem

Autor

  • Frediano José Momesso Teodoro

    doutor e mestre em Direito Penal pela PUC-SP especialização em Direito Penal Econômico e Empresarial na Universidade Castilla-La Mancha Toledo (ESP) professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Vale do Paraíba (Univip) e advogado criminal.

30 de março de 2020, 19h15

A pandemia do coronavírus ocasionou um toque de recolher no Brasil e no mundo. Uma parte da população mantém-se confinada em suas residências, evitando ao máximo as aglomerações, enquanto uma grande parte, empregadas domésticas, trabalhadores de aplicativos, motoristas, entre outros, continua exposta e trabalhando normalmente.

A necessidade de isolamento coletivo e a suspensão das atividades em escolas, universidades e empresas, disseminada pelos meios de comunicação, parece ter alcançado o consenso unânime no Brasil e no mundo.

Diante desse novo cenário, o jusfilósofo Giorgio Agamben faz um alerta para o perigo da submissão cega às radicais medidas restritivas de liberdade, características de estados de exceção.

A pandemia exige sacrifícios (?)
Autor de uma a série de obras sobre a Teoria do Estado de Exceção, principiada com o Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, Giorgio Agamben escreveu recentemente vários artigos sobre a frenética e irracional reação à epidemia do coronavírus na Itália[2], destacando as medidas de exceção impostas.

A quarentena recentemente decretada no Brasil e em vários países do globo, as compulsórias medidas restritivas de liberdade e a dura postura assumida por agentes públicos, em especial os agentes de segurança pública[3], mostra uma direta correspondência com as lições de Agamben.

Não se pode negar que o vírus já se espalhou para todos os continentes. Do mesmo modo, não se pode negar que o vírus não é de uma gripe letal[4]. Ainda assim, se o número de contagiados for excessivamente alto, os leitos hospitalares para os casos graves não serão suficientes, o que motiva a uma reação coletiva no intuito de dificultar a propagação do vírus.

No dia 19 de março de 2020, praticamente um mês após a publicação do primeiro artigo crítico de Agamben, a Itália ultrapassou a China, no número de vítimas fatais pelo coronavírus, alcançando a cifra de 3.405 mortos[5]. Até o momento foram registrados 341.365 casos em todo o mundo[6]. No Brasil, até o dia 22 de março, o Ministério da Saúde havia contabilizado 1.546 casos confirmados de contágio pelo coronavírus e 25 mortes[7].

Esses números podem parecer impactantes e gerarem um clima de temor, que convença as pessoas a renunciarem suas liberdades civis, mas, sem dúvida, não se comparam, por exemplo, aos números de casos de dengue no Brasil, neste ano de 2020. De acordo com os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, do início deste ano até março, foram registrados 181.670 casos prováveis — não contabilizando os casos de Chikungunya ou Zika — com a confirmação de que pelo menos 32 pessoas mortas pela dengue e mais 115 óbitos em investigação[8].

Aqui no Brasil, diante de dados epidemiológicos tão destoantes, ao se comparar o coronavírus com a dengue, não se vê uma reação correspondente à gravidade dessas endemias. Não obstante à realidade, o Estado, em todas as esferas e em todos os poderes, segue publicando atos normativos carregados de restrições de liberdades, inaugurando um verdadeiro Estado de Exceção, em razão do Covid-19.

Agamben adverte sobre o fato de os meios de comunicação bombardearem a população com notícias, utilizando-se da velha tática de difusão de um clima de pânico e provocando um verdadeiro estado de exceção, com gravosas medidas de restrição das liberdades. Para Agamben, tem havido uma crescente tendência no emprego do estado de exceção como um paradigma normal de governo[9].  As profundas medidas de restrição de liberdades espalharam-se pelo mundo. Muitos países fecharam suas fronteiras, interromperam o tráfego de voos internacionais, restringem o acesso das pessoas aos locais públicos e constrangem as pessoas a não deixarem suas casas.

No Brasil, a lei federal temporária nº 13. 979, de 6 fevereiro de 2020, dispõe sobre medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Em seu artigo 3º determina que poderão ser adotadas medidas de restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, por rodovias, portos ou aeroportos, e a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas — leia-se confisco.

Por meio da Portaria Conjunta Nº 1/2020 – Presi/Gabpres, de 12 de março, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região tornou facultativa aos magistrados a realização de audiências, inclusive as de custódia de presos, audiências por videoconferência, além de recomendar a restrição de acesso dos advogados aos fóruns federais.

Dias depois Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a Recomendação nº 62, recomenda expressamente aos Tribunais e aos magistrados para a não realização de audiências de custódia (artigo 8º). Trata-se de um ato controverso, que coloca a pessoa, alvo de uma persecução penal, a mercê de decisões subjetivistas, posto que o artigo 4º recomenda aos magistrados que reavaliem todas as prisões provisórias, bem como recomenda-se a aplicação preferencial de medidas socioeducativas em meio aberto e a máxima excepcionalidade  de novas ordens de prisão preventiva, observado o protocolo das autoridades sanitárias.

Por fim, a Resolução nº 313 do CNJ, de 13 de março, determina que seja aplicado o disposto na Recomendação CNJ nº 62, nos processos envolvendo réus presos e adolescentes em conflito com a lei internados, ou seja, determina a instauração de critérios próprios, personalíssimos,  sobre as liberdades civis.

Ainda é cedo para se afirmar se essas medidas preventivas e as restrições de liberdades serão realmente eficazes ou não contra a propagação da Covid-19.

Agamben, ao discorrer sobre a Itália, surpreende-se com a desproporção da reação frente ao que o Consiglio Nazionale delle Ricerche[10] identificou como uma gripe normal. Consoante Agamben, poderia se dizer que, exaurido o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-la muito além de todos os limites[11].

É inquietante essa difusão do estado de medo nas consciências dos indivíduos e que se manifesta em uma necessidade real de estados de pânico coletivos, a qual a epidemia volta a oferecer o pretexto ideal. Assim, cria-se um perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que se introduziu pelos mesmos governos que ora intervêm para satisfazê-lo [12] . Outro fato não menos inquietante é que a epidemia revela notadamente que o estado de exceção, ao qual os governos nos acostumaram há muito tempo, tornou-se verdadeiramente a condição normal[13].

Em conformidade com os estudos sobre o Estado de Exceção, o totalitarismo moderno pode definir-se como a instituição de uma guerra civil legal, a qual legitima a eliminação física de inimigos políticos e de indivíduos que se revelem incompatíveis com o sistema político. E esta tem sido uma prática recorrente dos Estados contemporâneos, qual seja, a de instalar um permanente estados de emergência. Desse modo, essa fronteira turva entre o jurídico e o político, esse momento de instabilidade, converte-se em um permanente estado de necessidade[14].

Imposto por meio de leis, decretos e resoluções, o Estado de Exceção anuncia-se com uma forma legal, a despeito de ser um fenômeno que anula a própria forma jurídica, o Estado de Exceção inclui na ordem jurídica a própria exceção, como se fosse uma condição legal[15]. Os atos normativos do Poder Executivo suplantam as leis, violando a hierarquia imposta pela Constituição Federal e enfraquece até desintegrar a democracia.

O estado de necessidade gera o fundamento de validade dos decretos com força de lei emanados do Executivo[16], pois necessárias e excepcionais são as circunstâncias declaradas como tais, ou seja, são resultados de uma avaliação moral e política — extrajurídica —pela qual se julga a ordem jurídica e se considera que é digna de ser conservada, ainda que à custa de sua eventual violação[17].

Nas condições atuais, o estado deixa de tratar cada um dos indivíduos como cidadãos a serem protegidos e passa a tratá-los como sujeitos a serem detidos.

Esse condicionamento massivo que faz com que as pessoas queiram se sentir seguras, em prejuízo de parte de suas liberdades, pode gerar um sentimento de contrariedade em relação às ideias expostas por Agamben.

Não se trata aqui de pregar contra as medidas preventivas ora impostas contra a epidemia. Trata-se apenas de trazer à reflexão o futuro dos direitos. Ponderar sobre o posicionamento de Agamben impede que sejam aceitas cegamente todas as radicais restrições de liberdade, sem qualquer reflexão sobre a pertinência das medidas impostas e o prolongamento destas no tempo.

Trata-se, não apenas de proteger a saúde pública, mas de reflexionar sobre as liberdades essenciais de ir e vir, de associação ou reunião. Trata-se da preservação dos mais caros direitos e garantias fundamentais em um futuro próximo.

Saberemos distinguir entre a proteção da saúde pública e a opressão velada?

Saberemos distinguir entre uma necessidade momentânea e um perene estado de exceção?

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

__________. Homo Sacer: o soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

__________. Chiarimenti. Quodlibet, 17.mar.2020. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti. Acesso em 22.mar.2020.

__________. L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia. Consultado em 22.mar.2020.

__________. Contagio. Quodlibet. 11.mar.2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-contagio>. Acesso em 22.mar.2020.

CORONAVIRUS: Italy death toll rises to 3,405, overtaking China. The Guardian. Disponível em: https://www.thejournal.ie/italy-death-toll-rise-china-5051812-Mar2020/. Publicado em 19.mar.2020. Acesso em 19.mar.2020.

GUTIÉRREZ, Pablo. Coronavirus map: how Covid-19 is spreading across the world. The Guardian. Disponível em:  https://www.theguardian.com/world/ng-interactive/2020/mar/16/coronavirus-map-how-covid-19-is-spreading-across-the-world. Acesso em 23.mar.2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, vol. 51. Março de 2020. Disponível em:  https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/06/Boletim-epidemiologico-SVS-10.pdf. Acesso em 19.mar.2020.

 

[2] L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia>. Consultado em 22.mar.2020.

[3] TOMAZELA, José Maria. Crescem casos de polícia por desrespeito às regras para coronavírus em SP. Jornal O Estado de São Paulo. 22.mar.2020. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,crescem-casos-de-policia-por-desrespeito-as-regras-para-coronavirus-em-sp,70003243539>. Acesso em 23.mar.2020.

[4] AGAMBEN, Giorgio. op. cit.

[5] CORONAVIRUS: Italy death toll rises to 3,405, overtaking China. The Guardian. 19.mar.2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/international>. Acesso em 19.mar.2020.

[6] GUTIÉRREZ, Pablo. Coronavirus map: how Covid-19 is spreading across the world. The Guardian. 23.mar.2020. Disponível em:  <https://www.theguardian.com/world/ng-interactive/2020/mar/16/coronavirus-map-how-covid-19-is-spreading-across-the-world>. Acesso em 23.mar.2020.

[7] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: <http://saude.gov.br/>. Acesso em 23.mar.2020.

[8] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, vol. 51. Março de 2020. Disponível em:  <https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/06/Boletim-epidemiologico-SVS-10.pdf>. Acesso em 19.mar.2020.

[9] Op. cit.

[10] Conselho Nacional de Pesquisa.

[11] Si direbbe che esaurito il terrorismo come causa di provvedimenti d’eccezione, l’invenzione di un’epidemia possa offrire il pretesto ideale per ampliarli oltre ogni limite (AGAMBEN, op. cit.).

[12] Ibidem.

[13] L’altra cosa, non meno inquietante della prima, che l’epidemia fa apparire con chiarezza è che lo stato di eccezione, a cui i governi ci hanno abituati da tempo, è veramente diventato la condizione normale (AGAMBEN, Giorgio. Chiarimenti. Quodlibet, 17.mar.2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti>. Acesso em 22.mar.2020).

[14] AGAMBEN, Giorgio. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[15] Ibidem, passim.

[16] Ibidem, p 43.

[17] Ibidem, p. 46-47.

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    doutor e mestre em Direito Penal pela PUC-SP, especialização em Direito Penal Econômico e Empresarial na Universidade Castilla-La Mancha, Toledo (ESP), professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Vale do Paraíba (Univip) e advogado criminal.

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