Opinião

Assembleias anuais e os desafios impostos pela Covid-19

Autores

  • Grasiela Cerbino

    é diretora jurídica da B3 – Brasil Bolsa Balcão membro do Conselho Editorial da Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários e doutoranda pela Università La Sapienza.

  • José Romeu Garcia do Amaral

    é advogado e professor de Direito Societário e Governança Corporativa doutorando e mestre em Direito Comercial pela USP com LLM pela Northwestern University Pritzker School of Law. É membro do Conselho Editorial da Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários.

29 de março de 2020, 6h31

Estamos no período de realização das assembleias gerais ordinárias, que se estenderá até 30 de abril de 2020 (para as companhias que encerraram o exercício social em 31 de dezembro de 2019). Por um infortúnio, estamos coincidentemente no período mais crítico de enfrentamento da pandemia da Covid-19, e os governos federal e estaduais têm adotado, progressivamente, diversas medidas restritivas à aglomeração e circulação de pessoas.

A gravidade da situação se reflete nas medidas recentemente adotadas: (i) o Decreto Legislativo 6/2020, do Congresso Nacional, em que se reconhece o estado de calamidade pública no país, com efeitos até 31 de dezembro de 2020; (b) o Decreto 64.881/2020, do estado de São Paulo, que estabelece a quarentena e restringe as atividades em todo o estado, excetuadas as essenciais; (c) o Decreto 515/2020, do estado de Santa Catarina, que declara situação de emergência e, consequentemente, suspendeu por 30 dias a realização de eventos e reuniões, de qualquer natureza, de caráter público ou privado, naquele estado; (c) o Decreto 46.973/2020, do estado do Rio de Janeiro, que suspende por 15 dias a realização de eventos e atividades com a presença de público, que envolvam aglomeração de pessoas; e (d) a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas do governo federal para enfrentamento da emergência de saúde pública causada pela pandemia, e o seu respectivo decreto regulamentador (Decreto 10.282/2020).

No âmbito das companhias abertas, a preocupação tomou conta do mercado e das áreas de relações com investidores das companhias abertas, principalmente em virtude das incertezas sobre a realização ou não das assembleias no formato atual — geralmente, com a presença física, ainda que os acionistas possam exercer seu direito de voto através do boletim de voto a distância, esse de divulgação obrigatória pela companhia, nos termos da Instrução CVM 481/2009.

Tudo isso leva a diversos questionamentos. É possível realizar a assembleia inteiramente por meio de sistema virtual? Se não, ou se a companhia não estiver preparada, é possível cancelar a assembleia prevista no calendário anual (já convocada ou não) e designar nova data, a qual ultrapassaria o prazo legal do artigo 132 da Lei das Sociedades Anônimas? A administração (conselho e/ou diretoria) poderia ser responsabilizada, nos termos do artigo 158 da Lei das Sociedades Anônimas, por descumprimento do prazo legal, caso decidisse postergar a realização da assembleia?

A princípio, o regime das assembleias pressupõe a realização do conclave no edifício da sede da companhia (regra) ou, por motivo de força maior (exceção), em outro lugar, desde que na mesma localidade da sede. Esta é a dicção do parágrafo 2º do artigo 124 da Lei das Sociedades Anônimas. Assim, deve haver, no mínimo, quantidade suficiente de acionistas presentes para a instalação[1] e composição da mesa dos trabalhos,[2] que, neste caso, exige que a escolha dos membros recaia sobre os “acionistas presentes”.

É possível incluir na definição de “acionistas presentes” aqueles que participam virtualmente? A nosso ver, se a companhia possui sistema para a realização de assembleia virtual, parece que a resposta é sim. Do mesmo modo, os acionistas que manifestam o voto por meio de boletim de voto à distância também devem ser considerados para fins de contagem do quorum de instalação e, consequentemente, enquadram-se na definição de acionistas presentes.

Ainda no que diz respeito às assembleias virtuais é importante ter em conta que, além de se assegurar o registro dos acionistas e o registro de seus votos, é de suma importância verificar a identidade dos que dela participam, seja em nome próprio, quando se tratarem de acionistas pessoas físicas, seja em nome de terceiros, quando se tratarem de representantes dos acionistas pessoas jurídicas ou institucionais. Parece-nos, portanto, necessário organizar, antes da realização da assembleia, a participação de tais acionistas de tal modo a assegurar que a sua participação e o exercício dos demais direitos se deem por aquele que detém a posição acionária que o legitima a participar.

No entanto, se a companhia não possuir sistema para a realização da assembleia virtual, ou seja, não estiver preparada para implantá-lo em tão curto espaço de tempo, é de se ponderar, então, a possibilidade de adiamento da reunião.

Quais seriam os efeitos do adiamento da assembleia por decisão da administração da companhia?

Em primeiro lugar, vale recordar que a assembleia geral ordinária (AGO) deve ser realizada, obrigatoriamente, nos quatro meses seguintes ao término do exercício social. Geralmente, nas companhias cujo exercício social se encerra em 31 de dezembro, a AGO deve ser convocada até o dia 30 de abril (ou primeiro dia útil anterior). A regra está prevista no caput do artigo 132 da Lei das Sociedades Anônimas.[3] E a convocação deve ser feita pelo conselho de administração, se existente, ou pelos diretores, conforme artigo 123 da Lei das Sociedades Anônimas; em que pese, excepcionalmente, os acionistas e o conselho fiscal também o possam fazê-lo em certos casos.

Cabe, assim, ao conselho de administração, se estiver em funcionamento, ou aos diretores a decisão sobre o adiamento da AGO. Neste caso, dois cenários possíveis: (i) o adiamento da AGO para outra data que respeite o limite do artigo 132 da Lei das Sociedades Anônimas, ou seja, até 30 de abril de 2020; ou (ii) o adiamento da AGO para data posterior ao dia 30 de abril de 2020.

Na primeira hipótese, não haveria qualquer impedimento ou sanção à administração da companhia, eis que respeitado o prazo legal para realização da AGO. Na segunda, todavia, a administração, teoricamente, violaria a lei e responderia civilmente pelos prejuízos eventualmente causados (artigo 158, segunda parte do caput e inciso II, da Lei das Sociedades Anônimas).

Diz-se teoricamente pois a ilicitude da conduta do administrador deve ser verificada de acordo com o sistema de responsabilidade da Lei das Sociedades Anônimas e, nos casos omissos, com base no regramento geral contido no Código Civil (artigo 1.089).

Lamy Filho e Bulhões Pedreira ensinam que “o sistema de responsabilidade dos administradores, de uma forma geral, foi erigido sobre dois pilares: diligência e lealdade. Por essa razão a doutrina e a jurisprudência se caracterizam por reconhecer a exclusão da culpa quando presente a boa-fé do administrador e verificada a falta de conflito de interesses ou violação do dever de lealdade.”[4]

Assim, ainda que haja ato ilícito por violação da lei e do estatuto – por não cumprimento do prazo de realização da AGO -, os administradores (conselheiros ou diretores, conforme o caso), ao decidirem adiar a AGO em virtude da pandemia da Covid-19, estariam a agir de boa-fé no sentido de preservar a saúde dos acionistas e dos demais participantes da AGO, inclusive dos empregados da companhia responsáveis por toda a preparação e funcionamento da assembleia.

Ainda, na lição dos autores do anteprojeto da Lei das Sociedades Anônimas, constata-se que, não raramente, o administrador “é posto em situações onde não existe decisão ideal; onde não há tempo para a reflexão necessária, mas é preciso decidir e decidir rápido; onde por mais que o administrador se esforce, não é possível conhecer tudo, controlar tudo, estar informado de tudo; onde uma decisão significa o sacrifício de outra. Não seria razoável que, nesses casos, o administrador fosse responsabilizado pelo eventual dano que sua decisão causasse à companhia”.[5]

Supondo a boa-fé e a ausência de conflito de interesses, a questão se encerraria no artigo 159, parágrafo 6º, da Lei das Sociedades Anônimas, admitindo-se ao juiz o reconhecimento da “exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.” O mesmo raciocínio, na opinião de Lamy Filho e Bulhões Pedreira, deve ser aplicado à responsabilidade administrativa perante a CVM.[6]

Outro argumento de defesa dos administradores, a nosso ver, é a superveniência de caso fortuito ou força maior a justificar a não realização da assembleia no prazo legal, mediante a comprovação de que a pandemia da Covid-19 impediu a realização da assembleia (p.ex., havendo orientação das autoridades sanitárias para a não realização de reuniões). É o caso, por exemplo, de proibição expressa à realização de reuniões proveniente de ato normativo do Ministério da Saúde, do governo estadual ou da prefeitura da localidade da sede da companhia, em virtude da decretação de situação de emergência de saúde pública, nos termos da Lei 13.979/2020, ou de calamidade pública.

Ainda que se trate de um dever (a convocação da AGO dentro do prazo legal), o seu descumprimento por caso fortuito ou força maior acarreta a ausência de culpa dos administradores, configurando causa de exclusão da ilicitude.[7] Essa interpretação se vale do artigo 393[8] do Código Civil aplicado às sociedades anônimas por força do artigo 1.089 do mesmo diploma legal. Trata-se de inadimplemento relativo, eis que ainda há a possibilidade de cumprimento tardio daquele dever, mediante a convocação da AGO para período posterior a 30 de abril. Todavia, essa excludente depende do elemento subjetivo, ou seja, deve-se verificar se o administrador foi diligente ao adotar essa decisão de adiamento, isto é, se não havia outros meios de realizá-la no prazo legal.

Por outro lado, para dar segurança jurídica aos administradores, caberia ao Congresso Nacional aprovar projeto de lei (ou medida provisória enviada pelo Executivo) sobre o tema, assim como o fez a Espanha. O recente Real Decreto-ley 8/2020, de 17 de março de 2020,[9] estabelece uma série de medidas extraordinárias aplicáveis às pessoas jurídicas de direito privado espanholas, entre elas, a suspensão por três meses do prazo para apresentação das contas anuais e, consequentemente, o adiamento do prazo legal para realização da AGO pelo mesmo período.

Nesse mesmo sentido (e no mesmo dia), a Itália, através do Decreto-Lei de 17 de março de 2020 (18),[10] também conhecido como Decreto “Cura Italia”, passou a admitir a possibilidade de realização da AGO apenas por meio eletrônico e estendeu o prazo de sua realização para 180 dias a contar do encerramento do exercício social. Ainda, Portugal (Decreto-Lei 10-A/2020)[11] facultou a realização das assembleias gerais das sociedades comerciais até 30 de junho de 2020, estendendo, portanto, o prazo legal.

A extensão do prazo legal nos parece medida desejável no Brasil e deve ser feita por meio de lei. No entanto, a postergação dilatada da realização das assembleias sequer é situação confortável para as companhias abertas e para seus administradores, já que a falta de deliberação pode ter relevante impacto na continuidade de suas atividades, e, também, para os acionistas, nos casos em que há expectativa de recebimento de dividendos.

Nessa medida nos parece complementar e igualmente meritória a construção de arcabouço regulatório que trate especificamente da realização das assembleias em modo exclusivamente virtual e que traga mais segurança jurídica para o assunto, o que poderia ser feito através de normativa específica sobre o tema e, também, de orientação às companhias e aos acionistas, assim como o fez a França, por meio da recomendação da AMF,[12] e Portugal, através da CMVM[13].

*Este artigo foi concluído em 26/03/2020. Medidas adotadas posteriormente para solucionar as problemáticas nele versadas poderão afetar as conclusões e entendimentos aqui expressados.

[1] Art. 125. Ressalvadas as exceções previstas em lei, a assembléia-geral instalar-se-á, em primeira convocação, com a presença de acionistas que representem, no mínimo, 1/4 (um quarto) do capital social com direito de voto; em segunda convocação instalar-se-á com qualquer número.

[2] Art. 128. Os trabalhos da assembléia serão dirigidos por mesa composta, salvo disposição diversa do estatuto, de presidente e secretário, escolhidos pelos acionistas presentes.

[3] Art. 132. Anualmente, nos 4 (quatro) primeiros meses seguintes ao término do exercício social, deverá haver 1 (uma) assembléia-geral para: (…).

[4] LAMY FILHO, Alfredo; e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 905.

[5] Lamy Filho e Bulhões Pedreira, ob. cit., p. 905.

[6] Ibidem, p. 906.

[7] “A violação do direito subjetivo de outrem ou da norma destinada a proteger interesses alheios constitui, em regra, um fato ilícito; mas pode suceder que a violação ou ofensa seja coberta por alguma causa justificativa do fato, capaz de afastar a sua aparente ilicitude.” (VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. Vol. I. 10ª ed. (2000), 14ª reimp. Coimbra: Almedina, 2017, p. 552.

[8] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

[9] Disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/2020/BOE-A-2020-3824-consolidado.pdf. Acesso em: 19/03/2020.

[10] Disponível em: https://www.gazzettaufficiale.it/atto/stampa/serie_generale/originario. Acesso em: 19/03/2020.

[11] Disponível em: https://dre.pt/home/-/dre/130243053/details/maximized. Acesso em: 19/03/2020.

[12] Disponível em: https://www.amf-france.org/fr/actualites-publications/communiques/communiques-de-lamf/communique-de-presse-relatif-aux-assemblees-generales-de-societes-cotees. Acesso em: 19/03/2020.

[13] Disponível em: https://www.cmvm.pt/pt/Comunicados/comunicados_mercado/Pages/20201903a.aspx. Acesso em: 24/03/2020.

Autores

  • Brave

    é diretora jurídica da B3 – Brasil Bolsa Balcão, membro do Conselho Editorial da Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários e doutoranda pela Università La Sapienza.

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    é advogado e professor do Insper. Mestre em Direito Comercial (USP), LLM pela Northwestern University School of Law, especialista em Direito Empresarial (Mackenzie) e pós-graduado em Gestão Empresarial (Unicamp). Membro do Instituto de Direito Societário Aplicado.

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