Estado da Economia

Os desafios que a pandemia da Covid-19 impõe ao Estado

Autores

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Pedro Júlio Sales D'Araújo

    é doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários e foi pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha).

29 de março de 2020, 11h34

Vivemos um momento único nesta década que se inicia. Em vários sentidos, o ano de 2020, com a grave pandemia da Covid-2019 que se espalha, estará marcado na história da humanidade e os desafios a nós impostos demandarão não apenas um exercício de revisão de nossas instituições, como, em especial, do modo em que vivemos em comunidade.

Ao mesmo tempo que observamos, atônitos, a expansão do novo coronavírus pelos quatro cantos do planeta, somos obrigados a nos reinventar enquanto sociedade. Com um custo humano associado a este cenário imensurável. Para além do espantoso número de doentes e mortos, que por si só já dão contornos trágicos ao presente momento, vemos diversos postos de trabalho serem interrompidos e as pessoas obrigadas a ficarem em suas casas.

Aqueles que conseguem manter seus empregos devem se acostumar com a rotina do trabalho à distância, com o convívio humano restringido. Quando não trabalhamos de casa, saímos às ruas com a preocupação de eventual contágio, colocando em risco nossa saúde física e mental.

 O cenário traz consequências. Mal a economia mundial se recupera do grave tombo sofrido com a crise financeira de 2008, somos empurrados para dentro de nossas casas para assistirmos aos sinais de mais uma grave recessão. A globalização, com seu consequente livre trânsito de mercadorias e pessoas, é contraposta com o fechamento de fronteiras e com as (necessárias) políticas de isolamento e quarentena impostas pelos mais diversos países na busca por conter a propagação do vírus.

Mas como vem sendo destacado nos diversos pronunciamentos de autoridades e líderes internacionais, a política de isolamento total é o meio mais eficiente de lidarmos com a doença, reduzindo a velocidade de expansão da contaminação e dando tempo para que os governos possam tratar adequadamente os acometidos pelo coronavírus.

Não podemos nos enganar neste momento. Nossa prioridade é a vida dos inúmeros brasileiros, em especial aqueles mais pobres, que, historicamente negligenciados, não têm condições de lidar adequadamente com a doença.

Ao Estado cabe o papel de fornecer as condições materiais para que tal isolamento seja possível, com a disponibilização de uma renda mínima que permita às pessoas permanecerem em casa durante o período necessário. Com a concessão de regimes fiscais especiais para que as empresas permaneçam mantendo seus funcionários empregados durante o isolamento e que voltem a funcionar quando este não for mais necessário. Com a facilitação de acesso aos insumos necessários para que a população possa sobreviver, sejam eles medicamentos e produtos de higiene, sejam eles alimentos e demais itens de primeira necessidade. Com a abertura de novos leitos em hospitais para atender aos inúmeros doentes que surgirão, sejam os acometidos pelo coronavírus, sejam os que vierem a sofrer com as já tradicionais doenças respiratórias e tropicais que nos atacam nesta época do ano.

É necessário, assim, de um Estado forte, que não só garanta direitos, mas que também venha a assumir o protagonismo conferido por nosso texto constitucional.

E por que sempre o protagonismo cabe ao Estado? Porque este momento, como em vários outros em nossa história, exige-se uma ação coletiva de larga escala que dê conta dos desafios impostos. A ideia de um Estado mínimo e pouco regulador é uma idealização que não ocorreu nem no capitalismo liberal do passado (de curta duração), nem no presente momento.

O momento, portanto, é importante para alcançarmos uma correção de rumos e (re)discutirmos o papel do setor público na busca pelo bem-estar coletivo. Para que o Estado possa atuar como principal ator desse processo, é necessário que se reconheça a ele certas atribuições e retirem dele certas amarras que engessam seu campo de atuação.

É preciso que aceitemos que a intervenção se faz necessária, em especial nas situações de crise, na qual o mercado não consegue operar de maneira satisfatória e necessita que o poder público exerça as funções alocativas, estabilizadoras e redistributivas, para se romper o ciclo recessivo.

O cenário, portanto, demanda uma intervenção imediata do Estado, com a expansão de gasto público necessária para darmos conta do presente momento de propagação da pandemia. Pela excepcionalidade e urgência da situação, as medidas não dependem necessariamente de uma revisão da estrutura tributária, sendo possível, por exemplo, expandirmos a dívida pública ou mesmo buscarmos na simples emissão de moeda a fonte de receita necessária para financiar a intervenção estatal. 

Ainda assim, no futuro, teremos um encontro marcado com a reforma tributária do país, sendo necessário não apenas enfrentarmos os reflexos do quadro de excepcionalidade causada pela pandemia, como também corrigirmos os desvios históricos de nossa sociedade. E as lições tiradas desse nosso momento histórico deverão guiar os debates do Congresso Nacional.

De início, e mais importante, será necessário revermos a distribuição do ônus tributário entre as parcelas de nossa sociedade, não podendo aceitar a perpetuação da atual regressividade da matriz tributária, que em muito colabora para os alarmantes níveis de desigualdade socioeconômica que vivenciamos.

Como é sabido, a pandemia da Covid-19 irá nos conduzir a uma profunda recessão econômica de escala global, a qual geralmente é mais sentida pela população mais pobre do país. Se mantivermos as coisas como estão (e os debates ora postos não parecem mudar o cenário), o investimento público necessário para reaquecermos a economia e reequilibrarmos as contas públicas será feito às custas daqueles que mais sofrerão com os efeitos da pandemia, por meio de tributos que historicamente oneram mais aqueles que menos têm.

Em um segundo momento, deveremos rediscutir as amarras orçamentárias hoje impostas ao poder público no que toca à dinâmica de investimento público. Como apontado acima, a superação do quadro imposto pela Covid-19 demandará uma forte atuação estatal, enquanto direcionador da retomada do desenvolvimento econômico e social suplantando as sequelas da pandemia.

Para tanto, será necessário termos um Estado com capacidade e liberdade de investimentos que faça frente às demandas do século XXI[1]. Será necessário reestabelecermos investimentos em educação e pesquisa de ponta, avançarmos na infraestrutura de saneamento básico, tanto nas áreas urbanas quanto nas áreas rurais, e até mesmo mantermos e aperfeiçoarmos a estrutura de saúde criada em decorrência do avanço do novo coronavírus. Tais investimentos, hoje, são restringidos pela busca platônica por um equilíbrio orçamentário frio e desatento ao compromisso constitucional de efetivarmos uma sociedade justa e solidária[2].

Por fim, teremos de reencontrar na matriz tributária brasileira um papel condizente com tais objetivos, não apenas na já citada utilização enquanto instrumento de redistribuição de renda, como também enquanto indutora de desenvolvimento econômico. Para tanto, em que pesem os bons motivos para se manter uma estrutura de alíquotas únicas e a extinção de benefícios fiscais na tributação sobre o consumo, deve-se sempre lembrar que, nos momentos críticos, não é o manual do equilíbrio simples e das alocações eficientes que são demandados, e, sim, o investimento público, seja como ferramenta de uma política desenvolvimentista, seja em momentos de necessidade de atuação anticíclica.

A busca pela neutralidade tributária, importante para se evitar efeitos distorcivos e danosos para a economia, não deve ser encarada como um fim em si mesmo[3]. Ainda que possamos falar que aquela encontra-se contemplada constitucionalmente, sua concretização só se faz em conjunto com diversos outros princípios constitucionais também presentes no artigo 170 da Constituição de 1988.

O mesmo vale para o mantra da simplicidade. Embora importante, não podemos ignorar o fato de que vivemos em uma sociedade do século 21, com relações sociais complexas e que demandam a correspondente complexidade do ordenamento jurídico para que este dê conta de satisfazer as expectativas sociais.

E o cenário que vivenciamos hoje, com a propagação da pandemia da Covid-19, ilustra bem tal afirmação, visto que, entre as primeiras medidas adotadas pelas três esferas federativas para fazer frente aos avanços da doença, estão a concessão de diversos benefícios fiscais aos insumos médicos e de higiene, bem como aos itens de primeira necessidade. E, mesmo após a pandemia, com a necessidade de se buscar reaquecer os diversos setores de nossa economia, provavelmente por meio do consumo de massa, a concessão de benefícios fiscais provavelmente poderá exercer importante contribuição.

Não se pretende, aqui, defender a prática predatória de guerras fiscais, como as que vivenciamos hoje, nem sequer o atual quadro de inúmeros regimes especiais que deturparam contribuições sociais como se elas devessem ser instrumentos de política industrial. Os extremismos de posições devem ser combatidos, por isso temos buscado convergência com as discussões que defendem uma modernização de nosso sistema tributário.

Contra tais cenários de exagero do voluntarismo de certos incentivos fiscais, a denúncia existente nas justificativas dos projetos de reforma tributária são extremamente pertinentes, instigando um debate necessário quanto à revisão de tal prática.

A crítica que se faz, e o contexto atual corrobora, é tão somente que imaginar um cenário no qual a Constituição engessasse tal campo de atuação por meio de alíquota única da tributação sobre o consumo notadamente uma tão elevada quanto a que se vislumbra significa ignorar todo o potencial extrafiscal inerente a matriz tributária de um país.

Extrafiscalidade esta que, aplicada conforme os princípios constitucionais, com parcimônia, pode representar importante ferramenta política de concretização do nosso Estado Social, ainda que pontualmente e com controles de implementação e análise de resultados, como sempre defendemos. Certamente essa seria uma regra bem melhor do que apelar para o impopular empréstimo compulsório, que será o que sobrará se adotarmos modelos tão comprometidos com manuais de boa prática feitos para exportação.


[1] STIGLITZ, Joseph, TUCKER, Todd, ZUCMAN, Gabriel. The Starving State. Why Capitalism's Salvation Depends on Taxation.  in https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2019-12-10/starving-state

[2] Como exposto por Heleno Taveira Torres, " na atualidade, está consolidado na Teoria da Constituição Econômica que a estrutura econômica da sociedade capitalista, sob o pressuposto da propriedade privada, não pode funcionar sem o intervencionismo do Estado. (…) Por isso feneceram, uma a uma, as teorias liberais que apregoavam a eliminação (neutralidade) ou redução ao mínimo da atuação do Estado na economia, como aquela doutrina enaltecedora do propalado 'equilíbrio orçamentário', como se o Estado Social fosse determinado pela economia e não pela Constituição." Relação entre Constituição financeira e Constituição econômica. in Extrafiscalidade: conceito, interpretação, limites, alcance. p. 137

[3] Ainda de acordo com Heleno Taveira Torres, "a neutralidade tributária é uma quimera. A atividade tributária do Estado nunca foi neutra, nem aqui nem alhures. Todo e qualquer gasto público relevante ou ato de criação ou aumento de tributo é intervenção direta e indireta sobre a macro e a microeconomia de uma nação, a modificar o volume da renda total disponível ou a distribuição de rendas" Idem. p. 136.

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

  • Brave

    é pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); e especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários. Advogado.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!