Embargos Culturais

Estado de exceção e anormalidade constitucional no contexto da CF

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de março de 2020, 7h01

Spacca
O estado de exceção identifica um período de anormalidade constitucional que se pretende recorrentemente regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, em termos constitucionais e, no limite, também com balizas legais e regulamentares. Essa anormalidade na conjuntura de uma pretensa normalidade é a característica mais marcante do estado de exceção, que consiste também em permanente problema para a teoria do direito público.

Há um dilema regulamentador, uma aporia, que acompanha a conceituação e a prática do estado de exceção, que de algum modo encontra-se confinado a fronteiras que supostamente abstrairiam a vontade política da vontade normativa, isto é, a ação política propriamente dita do direito positivo. Além do que, como a experiência histórica tem apontado, o estado de exceção deslumbra aqueles que o decretam, e que o pretendem definitivo. As experiências da Alemanha nazista, do franquismo, do salazarismo, do fascismo e do Estado Novo, para nomear apenas alguns, são exemplos emblemáticos dessa assertiva.

O assunto foi teorizado por Giorgio Agamben em provocador estudo no qual comparou e contrastou o estado de exceção em dois autores alemães absolutamente opostos, na teoria, na ideologia e na experiência existencial: Carl Schmitt e Walter Benjamin. Agamben partiu do mote de Schmitt, para quem “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”, contrapondo-o com a tese de Benjamin, no sentido de que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de emergência no qual vivemos não é uma exceção, e sim uma regra”.

Há uma tensão entre o decisionismo de Schmitt e a penumbra da conjectura política de Benjamin, que Agamben, filósofo italiano, identifica como uma “terra de ninguém”, isto é, um espaço limítrofe entre o direito público e o fato político, entre a ordem jurídica e a vida. Agamben percebeu a insuficiência dos instrumentos de análise jurídica para a compreensão do estado de exceção, que situou no ambiente dos problemas políticos.

O estado de exceção é, de um lado, o instrumento que objetiva manutenção da ordem, exatamente no contexto patriótico invocado por Cícero, para quem, no século I a.C., infeliz a sorte de quem administra e conserva a República. Há também percepção mais ostensiva, nesse mesmo sentido, de que o estado de exceção seria mecanismo de defesa e conservação do Estado, qualificando-se como um direito potestativo, garantido pelo direito positivo por intermédio de um conjunto de regras de aplicação episódica. Por outro lado, e de um modo mais instrumental a práticas totalitárias, o estado de exceção é a suspensão do direito existente, no interesse de uma ação eficaz. Um dilema constitucional.

Na história constitucional brasileira, o estado de exceção se desdobra discursivamente por ampla terminologia, transitando em expressões como segurança do Estado (Constituição de 1824), estado de sítio (Constituições de 1891, 1934, 1946, 1967, 1946 e 1988), estado de emergência (Constituição de 1937), estado de guerra (Constituição de 1937), estado de defesa (Constituição de 1988). O estado de exceção marcou substancialmente e com mais intensidade quatro momentos da história política do Brasil, designadamente, a ditadura de Floriano Peixoto, disfarçada de volta à legalidade, o golpe do Estado Novo, camuflado por Getúlio Vargas como plano de combate a integralistas e a comunistas, e as intervenções de 1964 e de 1968.

Opções terminológicas nunca são neutras, especialmente no sentido de que a terminologia é o momento propriamente poético do pensamento”, segundo Agamben.

E se plausível a tese de Carl Schmitt, para quem a soberania é definida e medida por quem tem competência para fixar o estado de exceção, a trajetória dos modelos brasileiros de regulamentação da matéria sugere uma oscilação politicamente muito eloquente, com indicação de épocas de extremo autoritarismo: foi prerrogativa do Poder Legislativo, ou do Imperador se a Assembleia não estivesse reunida (1824), foi do Congresso Nacional, ou do Presidente, quando aquele não estivesse em sessão (1891, 1946), foi exclusiva do Legislativo, que autorizaria o Presidente a decretar o estado de sítio (1934), foi exclusiva do Presidente em todas as circunstâncias (1937, 1967), foi da União, com Congresso aprovando ou suspendo determinação do Presidente (1969) e presentemente é também da União, com o presidente ouvindo o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, e em seguida pedindo autorização para o Congresso Nacional (1988).

Os níveis de regulamentação também oscilam substancialmente. Procedimentos são fixados com abundância de pormenor, inclusive com indicação de limites da ação governamental, hipóteses de imunidades, responsabilização por abusos, possibilidade (ou não) de provocação de intervenção judicial. O que se observa é uma ampliação da regulamentação do modelo, sintético ao extremo, na Constituição de 1824, para superlativamente analítico, na Constituição de 1988, que inclusive conta com título próprio para tratar do que se denominou de "defesa do Estado e das instituições democráticas". É esse o grande paradoxo do estado de exceção, que concebido para a defesa das instituições democráticas, fez-se historicamente instrumento e recurso para minar as instituições para as quais fora concebido para defender. 

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