Opinião

Cartel de crise e renegociação dos TCCs na pandemia do coronavírus

Autores

  • Marlus Santos Alves

    é sócio do escritório Silva Matos Advogados vice-presidente Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil (Camarb) vice-presidente da Comissão de Arbitragem da OAB/DF mestrando em Direito Comercial Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/DF.

  • Luiz Guilherme Ros

    é doutorando em Direito Econômico pela Universidade de Brasília mestre em Direito Constitucional pelo IDP advogado sócio do escritório Silva Matos Advogados consultor do Programa das Nações Unidas perante o Cade no projeto Control of Data Market Power and Potential Competition in Merger Reviews secretário da Comissão de Defesa da Concorrência da OAB-DF e membro da Comissão de Direito Regulatório da OAB-DF.

28 de março de 2020, 13h02

Cartéis são condutas anticompetitivas que podem envolver, por exemplo, fixação de preços ou de outras condições comerciais, como a limitação de quantidades vendidas, divisão de clientes e/ou territórios, entre outras. O objetivo destas condutas anticompetitivas são, usualmente, aumentar o valor do produto ou serviço comercializado. Cartéis reduzem a eficiência do mercado, transformando-os em situações de monopólio, onde o preço cobrado pelo produto tende a ser maior do que em um ambiente competitivo.

Normalmente, o que se busca com essas práticas seria, tão somente, um aumento das receitas das empresas que se engajaram na conduta ilícita, em detrimento dos consumidores. Os prejuízos decorrentes de cartéis são de difícil mensuração, mas a doutrina e a jurisprudência tendem a entender que tais práticas importam, em regra, em um sobrepreço de 10% a 20% do que seria cobrado em um ambiente competitivo.

No intuito de combater os cartéis, as autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo, entre as quais se inclui o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), têm entendido que situações que envolvam esse tipo de colusão de mercado se enquadrariam em condutas ilícitas pelo seu próprio objeto. Os Estados Unidos da América, de forma relativamente similar, consideram que tais práticas seriam ilícitos per se, sendo indiferente para a sua condenação que os efeitos pretendidos tenham sido alcançados. Situação similar é imposta pela Lei 12.529/2011, em seu artigo 36[i].

Inegável que as autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo dedicam os melhores esforços para descobrir e punir essas práticas. Especialmente quando se verifica que estas tendem a ser as mais prejudiciais aos consumidores.

Ocorre que, em situações de crises severas, pode ocorrer o surgimento do que se denomina de cartel de crise. O termo "cartel de crise" é concebido na literatura econômica de duas formas. A primeira se refere aos carteis formados durante uma severa crise setorial, nacional ou um colapso econômico global, sem a permissão estatal ou sanção legal. A segunda forma se refere a situações em que o Estado permite a formação de cartel entre empresas durante tais situações econômicas[ii].

Alguns são os exemplos de cartéis que surgiram durante crises[iii], como expõe Stephan (2012)[iv] e Stephan e Nikpay (2015)[v]: Auction Houses é um dos muitos casos de cartel que surgiram durante uma crise. O cartel petroquímico, o cartel de carne francesa, o cartel dos bancos alemães, o cartel no mercado de tubos de aço e de papéis carbono são outros exemplos de carteis que se formaram durante uma crise da indústria[vi].

A questão que se coloca é verificar, nessas situações, se poderia existir uma imunidade concorrencial às empresas que engajaram na prática anticompetitiva.

Tal situação, por exemplo, foi levada à autoridade de defesa da concorrência da Grécia, em 2008, quando seis empresas realizaram um memorando de entendimentos com objetivo de aumentar preços durante seis meses, em virtude da crise econômica que se via no setor. Entendeu-se, no referido caso, que independentemente da crise setorial vivenciada no setor da aquicultura grega, as regras competitivas deveriam ser observadas[vii].

Ocorre que, como já discutido pela OCDE[viii], em regra, quando a demanda geral por um produto cai, como normalmente ocorre durante crises econômicas, os custos incrementais tendem a aumentar significativamente para os participantes do mercado. Portanto, não seria óbvio o que causaria mais danos aos consumidores, isto é, (i) se o exercício de qualquer poder de mercado por parte do cartel, ou (ii) se os preços mais altos necessários para cobrir os custos associados à concorrência entre empresas.

A economia tende a indicar que estes são os momentos mais propícios para o surgimento de cartéis. Tal cenário econômico tende a vir experimentado, após o surto do novo coronavírus (Covid-19), que, muito provavelmente, para além de uma recessão global, tende a impactar de maneira muito negativa a já cambaleante economia brasileira.

Não se defende aqui que a adoção de cartéis em diversos setores produtivos seja uma escolha racional em virtude da crise econômica decorrente do Covid-19, mas, sim, qual seria a atuação do Cade diante deste cenário.

Um outro aspecto que merecerá discussão diz respeito a uma potencial necessidade de renegociação das contribuições pecuniárias decorrentes dos acordos em termos de compromissos de cessação (TCCs). Será a crise econômica — e a recessão que virá em virtude da Covid-19 — motivo suficiente para renegociar os prazos e valores acordados pelo Cade e empresas que firmaram acordos? Resta saber se as obrigações assumidas pelas empresas nos TCCs, sob a ótica jurídico-interdisciplinar, sobrepõem as obrigações necessárias para sua sobrevivência e manutenção da empresa.

Importante posicionamento virá da autoridade de defesa da concorrência quando julgar o pedido da Basso — Basso Argentina and Valbras, Industria e Comércio — para suspender os prazos previstos no TCC firmado pela empresa[ix].

[i] Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados.

[ii] 2 OECD, Directorate for Financial and Enterprise Affairs, Competition Committee, Global Forum on Competition, Crisis Cartels, Background Note, Session III, DAF/COMP/GF(2011)6, p. 6 et seq available at http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/GF(2011)6&docLanguage=En

[iii] De forma indicativa, cita-se os seguintes precedentes europeus: ECJ C-209/07, Irish Beef, ECJ C-238/99 P, C-244/99 P, C-245/99 P, C-247/99 P. C-250/99 P to C 252/99 P and C-254/99 P, LVM and other vs Commission, CFI T-217/03 and T-245/03, FNCBV and other vs Commission, Commission Decision COMP/C.38.279/F3, French Beef etc

[iv] A Stephan, Price Fixing in Crisis: Implications of an Economic Downturn for Cartels and Enforcement (2012) 35 World Competition 511, 514.

[v] A. Stephan and A Nikpay, Leniency Decision-Making from a Corporate Perspective: Complex Realities in C Beaton-Wells and C Tran (eds), Anti-Cartel Enforcement in a Contemporary Age: The Leniency Religion (Hart Publishing 2015). P. 23. Nesse sentido, também: M Motta, Competition Policy: Theory and Practice (Cambridge, Cambridge University Press, 2004) 146; J Haltiwanger and JE Harrington Jr, The Impact of Cyclical Demand Movements on Collusive Behavior (1991) 22 RAND Journal of Economics 89.

[vi] Auction Houses is one of a large number of cartels borne out of crisis. Petrochemical, French Beef, German Banks, Seamless Steel Tubes and Carbonless Paper cartels are all other examples of cartel agreements formed as a reaction to a downturn in the industry

[vii] Concluding, the HCC stressed that the obligation of competing undertakings to independently determine their own business policy also covers periods when the supply and demand present cyclical variations, and competitors are not allowed to artificially maintain prices at higher levels through horizontal agreements until the market conditions return to a balance. Pursuant to the HCC, the independent adaption of undertakings to the developing market conditions, even during a financial crisis, is an indispensable element of the competitive procedure and, in any case, the mere existence of crisis in a given market did not suffice to remove the anticompetitive character of an agreement. Taking a rather strict view on crisis cartels, the HCC held that even if the parties to an agreement acted without immediate intention to restrict competition but in order to address the crisis in a particular sector, such reasons are not taken into account for the analysis under Art. 101 para. 1 TFEU and Art. 1 para. 1 C.L. 703/77, since collusive behaviour may impede competition by object, even if it also serves other purposes. VITZIALAIOU, Lia. Crisis Cartels: For Better or for Worse? Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1800732

[viii] OECD, Directorate for Financial and Enterprise Affairs, Competition Committee, Global Forum on Competition, Crisis Cartels, Background Note, Session III, DAF/COMP/GF, p. 5 (2011)

[ix] Disponível em: https://www.mlex.com/GlobalAntitrust/DetailView.aspx?cid=1172508&siteid=203

Autores

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    é sócio do escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito das Empresas pela Lisbon Business School e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Frequentou especialização em Law Enforcement e Compliance pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É vice-presidente em Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil.

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    é sócio do Escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Comissão de Direito Regulatório e da Comissão de Direito de Defesa da Concorrência da OAB-DF. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral e assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e autor de artigos relacionados à área de antitruste.

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