Opinião

A federação em tempos de coronavírus: quem devemos ouvir na crise

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28 de março de 2020, 15h51

O alastramento do novo Coronavírus (Covid-19), classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia, na medida em que já se prolifera em escala global, chama o mundo à reinvenção e ao experimentalismo institucional. Às sociedades é imposto o redimensionamento de prioridades, de estilo de vida, das relações familiares, sociais e profissionais. Aos governos, por sua vez, é mandatório guiar e amparar essas transformações, para que gerem o mínimo impacto socioeconômico possível. 

Com o número de contágios aproximando-se de 600 mil e o de óbitos beirando os 30 mil, espera-se de todos os governos o óbvio movimento de ampliar e fortalecer os sistemas de saúde, bem como a implementação de outras medidas que possam diminuir e retardar picos de contágio (como isolamentos sociais e quarentenas), a fim de que a estrutura para tratar os enfermos não colapse e se reduza a desvantagem na corrida científica por possíveis curas e/ou vacinas.  

Paralelamente, as medidas protetivas, quanto mais rígidas, mais geram impactos imediatos na economia, altamente onerada pelo Covid-19, tanto no que tange à empregabilidade quanto à renda de trabalhadores autônomos, especialmente em setores como construção civil, beleza, economia criativa (eventos e produções) e turismo.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê que a pandemia deixe 25 milhões de desempregados ao redor do mundo – mais do que a crise de 2008-2009 -, ao passo que a iniciativa privada lança apostas ainda mais assustadoras, que chegam à 40 milhões, só no Brasil. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), por sua vez, estima expressivo aumento da população em situação de extrema pobreza na região, de 67,4 para 90 milhões de pessoas. 

O cenário é trágico e é evidentemente complexa a estruturação de políticas públicas em curtíssimo espaço de tempo, com recursos financeiros escassos, diante de variáveis desconhecidas e imprevisíveis, e, especialmente, quando toda medida (comissiva ou omissiva) tem graves reflexos sociais – e inexiste um balanço ótimo de proteção. 

Um dos poucos pontos tratados de forma incisiva e uníssona nos discursos dos organismos internacionais é a necessidade de os países agirem rápido e coordenadamente. O que se vislumbra, contudo, são dificuldades até mesmo na coordenação interna. 

A questão não está apenas no “como agir?”, mas inicia-se com o “quem pode agir?” e com o “quem deve agir?”. Fato é que o Brasil não viveu períodos de graves calamidades naturais ou conflitos armados como os vivenciados mundo afora e, talvez por isso, não conheçamos nosso sistema o suficiente para termos respostas prontas e conclusivas, notadamente no que tange às competências de cada ente de nossa singular Federação em situações que fogem à normalidade. Pode-se dizer que nossa experiência mais parecida em termos de necessidade de coordenação tenha sido a crise do apagão, que nem de longe foi tão intensa quanto a problemática ora experimentada.

Um mês após a confirmação do primeiro caso no Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, foram diversos os atos normativos editados pelo Governo Federal e por Estados e Municípios – os dois últimos tomando a dianteira com relação à grande parte das medidas, especialmente as restritivas.  

O que se vivencia, no presente momento, ainda é a edição de medidas de forma desordenada e, muitas vezes, contraditória, ao ponto de uma empresa, com estabelecimento comercial único, estar simultaneamente submetida à uma ordem de suspensão das atividades e outra de determinação de funcionamento. A quem obedecer é um mistério – que, como quase todos os mistérios jurídicos, tende a desaguar no Judiciário. 

O Judiciário, porém, não tem condições de solucionar todos os problemas que afligem o país atualmente. O Supremo Tribunal Federal começou a discutir o tema ao enfrentar questionamento referente à chamada Lei Nacional de Quarentena (Lei 13.979), de 06 de fevereiro de 2020, que estabeleceu diretrizes básicas para o enfrentamento da crise, mas não adentrou em regras de competência (pelo menos não segundo a decisão liminar do Ministro Marco Aurélio, que estará sujeita a referendo ou alteração na próxima sessão plenária do STF, no dia 01 de abril).

Na ADI 6.341, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) alegou que o artigo 3º da referida Lei (com redação dada pela Medida Provisória n. 926/2020) esvaziaria a competência comum dos entes federados nos cuidados com a saúde (art. 23, inciso II e 198, inciso I, CF/88) e execução de ações de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 200, inciso II, CF/88), concentrando as possíveis medidas para combate ao Coronavírus no âmbito da União. Em decisão liminar, o Ministro Marco Aurélio entendeu pela procedência parcial do pedido, indicando que o dispositivo deve ser interpretado em conformidade com a Constituição, de modo a não afetar a competência concorrente de Estados e Municípios. 

Ainda que mantenha o entendimento pró-Federação, não poderá o Supremo resolver o conflito de forma mais detalhada, especificando o que caberia à cada esfera de governo em cada uma das distintas atividades ali mencionadas. O momento atual, aliás, talvez não seja o mais propício para uma decisão maximalista da Corte. Em tempos de crise generalizada, o melhor caminho parece ser a cautela institucional por parte das Cortes Constitucionais, na linha da proposta doutrinária de se decidir one case at a time, e segundo uma perspectiva temporal de blindagem recíproca, i. e. de modo que a crise não seja guiada pelas exigências e expectativas de tempos ordinários, como, igualmente, não projete seus padrões para os tempos de normalidade futuros. 

Questão igualmente relevante, se o entendimento majoritário for pela concentração das medidas no âmbito da União, será a consequência do rompimento com a cláusula pétrea do federalismo, cuja essência é a autonomia dos entes federados, que devem coexistir em harmonia sob um único Estado soberano, representado, no cenário internacional, por seu governo central (o que não lhe confere maior grau hierárquico). E, para além de regras de mera repartição de tarefas, o que está em jogo nesse contexto é a tríplice capacidade (autogoverno, autoadministração e auto-organização) dos entes subnacionais.

Desse modo, embora a ideia de uma gestão integralmente unificada possa parecer sinônimo de maior organização, a centralização não é fórmula de sucesso e nem se demonstra simples em um país com tantas peculiaridades e larga dimensão territorial como o Brasil. 

A forma de organização dos países fortemente atingidos pelo vírus também tem se demonstrado muito variável. Na Itália (Estado unitário), as medidas restritivas têm sido impostas, desde o princípio, por atos do Governo Central. Mesmo quando circunscritas à determinadas áreas denominadas “zonas vermelhas”, os regramentos já eram provenientes de decretos expedidos pelo Primeiro-Ministro Giuseppe Conte – que também decretou, da mesma forma, a quarentena nacional, que teve início em 10 de março. 

Já a Espanha – considerada um Estado unitário com alto grau de descentralização ou Estado semi-federal – empreendeu restrições de modo regional até a declaração de estado nacional de emergência, em 14 de março de 2020, que permitiu a imposição de regramento unificado pelo Governo Central, conforme previsão do art. 116.2, da Constituição Espanhola. 

Nos Estados Unidos, por sua vez, critica-se a excessiva descentralização no que tange à imposição de quarentenas e outros tipos de medidas restritivas para o combate a emergências de saúde pública. No modelo norte-americano, os departamentos de saúde locais e estaduais é que seriam detentores dessa competência, enquanto caberia ao Governo Federal, tão somente, a imposição de quarentenas em fronteiras internacionais e interestaduais, vedando a circulação de pessoas nessas circunstâncias, em específico. 

A crítica se impõe na medida em que haveria excessiva fragmentação e desordem no sistema, podendo os mais de 2.000 departamentos de saúde valerem-se de regramentos diferentes entre si. 

A análise internacional, ao que tudo indica, não nos empresta uma fórmula pronta e acabada. Fato é que, como os Estados Unidos, somos uma Federação. Porém, diferente do Estado norte-americano, não temos porque sofrer com fragmentação excessiva se considerarmos a capacidade de nossas unidades de governo regionais – os 26 Estados mais o Distrito Federal. 

O direito, especialmente diante de situações excepcionais, precisa ser vislumbrado à luz do experimentalismo institucional, i. e. pensado em uma perspectiva de desapego dos velhos modelos, mas olhando-se prospectivamente para a Constituição e para os melhores arranjos institucionais para a concretização de seus preceitos. 

O ânimo de tal transformação, por sua vez, não pode ser depositado exclusivamente na atuação do Judiciário, mas só é capaz de florescer através do Legislativo, que tem agora mais uma oportunidade de aproximar o Brasil da concretização do ideal federativo inscrito na CF/88  (e isso perpassa pela discussão dos papeis de cada esfera de governo que compõe nosso Estado Democrático). 

Se por um lado as competências do art. 24 (legislativas concorrentes) vêm acompanhadas de divisão de tarefas, as competências comuns (ou administrativas concorrentes) do art. 23 são consubstanciadas pelo mesmo ideal de cooperação de nosso federalismo. 

Pelo critério de repartição de competências, per si, não há o que se falar em superioridade hierárquica de leis federais sobre leis estaduais. Em última análise, contudo, acaba-se por reconhecer a preponderância de interesses da União (mais amplos) sobre os dos Estados (mais restritos) – o que definitivamente não interessa ao Estado brasileiro por uma perspectiva federativa, nem é compatível com uma Constituição que optou por diferenciar competências concorrentes de caráter legislativo e administrativo. 

Ressalta-se, ainda, que o próprio Sistema Único de Saúde foi criado como clara expressão cooperativa, de modo que, financiado pelos três níveis de governo (art. 198, §§1º e 2º, da CF/88), é descentralizado em termos administrativos (art. 198, inciso II, CF/88).

A saída, portanto, pode estar no próprio artigo 23, cujo parágrafo único prevê a fixação “de normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”, por meio de Lei Complementar. 

Fato é que, ao passo em que constantemente se fala em reinvenção institucional e necessidade de solução de conflitos, muito se bate às portas do Supremo e pouco se enxerga as possibilidades de harmonização inscritas na própria Constituição.

Deve-se reconhecer que o processo Legislativo pode ser tortuoso, mas também destacar: a) a importância do dissenso político para a concretização democrática; e b) o célere funcionamento de todos os Poderes de República neste momento de crise, que têm demonstrado excepcional empenho na solução de demandas relativas ao Coronavírus – à exemplo da aprovação do PL 23/2020 (convertido na Lei 13.979) nas duas Casas do Congresso em menos de 48h; e da decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio na ADI 6.341 apenas um dia após seu protocolo.  

Assim, entende-se que a alternativa mais adequada seja a aprovação de Lei Complementar (nos termos do art. 23, parágrafo único, da CF/88) para que, respeitada a competência comum das três esferas de governo, sejam harmonizadas as atuações de cada ente, seja através de um fórum específico para debate (como proposto pelo Senador Anastasia, no PL 39/2020), seja através da estipulação de definições mais precisas acerca de como deve ser desenvolvida a atuação de cada nível governamental. 

Precisamos, pressurosamente, de diretrizes sobre como conciliar as competências legislativas privativas, e. g. sobre transportes (art. 22, IX e XI), com a competência comum material sobre a saúde, uma vez que, se considerarmos que em um momento como este toda atividade de deslocamento (especialmente a coletiva) pode ser considerada como de risco infeccioso, a competência concorrente pode ser sempre entendida como prevalente.

Ainda, e partindo do pressuposto de que a competência material sobre a saúde seja entendida como preeminente no cenário de crise, precisariam ser pactuados os limites normativos de cada ente (de modo preferencialmente equilibrado com as competências legislativas) – por exemplo, questões essenciais relativas à organização do espaço nacional (como funcionamento de rotas de transporte público interestadual e de aeroportos) à cargo da União; as matérias de cunho civil/organizacional não-essenciais (como determinação de isolamentos sociais em domicílio) no âmbito estadual; e questões locais (como funcionamento de praças públicas) com os Municípios.  

Tenhamos em mente que não estamos diante de uma escolha aberta, na qual podemos definir por um modelo centralizado ou fragmentado de gestão de crise. A própria Constituição dá o caminho a ser seguido – um caminho descentralizado, mas unificado – com a particularidade de que a Federação não se trata de uma fórmula acabada, mas que deve ser edificada continuamente e cooperativamente pela União, Estados e Municípios. 

Na crise normativa do Coronavírus, portanto, a voz do Congresso será fundamental para o estabelecimento de estratégias sólidas, que garantam segurança jurídica e institucional em meio às tantas incertezas que nos assolam. 

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é advogada, doutoranda e professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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