Diário de classe

Nas fragilidades globais, a crise do Direito se desvela (mais forte)

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28 de março de 2020, 8h00

Nas empoeiradas propostas teóricas sobre os destinos políticos e econômicos do mundo no pós-Segunda Grande Guerra, alguns cenários figuram como lugar-comum. Quero dizer, com uma variação aqui e outra ali, a privilegiada visão de quem percebe as sucessões de acontecimentos a partir do presente não difere muito, colocando o Estado como agente central do desenvolvimento econômico e, ainda, das (políticas) condições de possibilidade para minorar as desigualdades – inclusive as de renda – mas não apenas. Até aqui, nada de novo, claro, como também não parece inédita a ideia de que esse mesmo ideário, em fins dos Anos 80 do século passado, contrastou com o declínio daquelas propostas em choque não apenas com o liberalismo a mover essas economias ascendentes, mas, mais que isso, com o neoliberalismo econômico1.

Evidentemente, ainda que tardiamente, o Brasil e a América Latina, no geral, não se furtaram a esse mesmo contexto que, na atualidade, parece cada vez mais agudo. A polarização que discute limites e papeis do Estado, entre nós, vem na esteira de recentes processos eleitorais (e recalls) mal resolvidos. A agenda de reformas (e a discussão em torno delas), as relações (ou as tensões) entre os Poderes da República e o apelo às maiorias (como uma espécie de hedge político) são bons exemplos dessa condição que, entre tantos outros fatores, parece blindar jogos de linguagem – no sentido wittgensteiniano – possíveis – como não poderia deixar de ser – a todos.

Nesse contexto, independente das doxas idealizadoras que moldam o debate (e que para este pequeno texto pouco importam), fato é que a pandemia que começou na China e alcançou o mundo traz um importante dado a essa discussão entre extremos: nas “condições normais de temperatura e pressão” do capitalismo financeirizado do século XXI, o modelo que faz da liberdade e da igualdade uma dicotomia (privilegiando a primeira) parece sustentar-se, ainda que frágil e constrangedoramente. Por todos os exemplos possíveis, fiquemos com São Paulo, a cidade mais rica do país, que faz conviver cerca de 25 mil pessoas sem-teto junto àqueles mais endinheirados, no topo da pirâmide, nas mesmas fronteiras. Mas, diante das emergências impostas por momentos como esse, nem mesmo o mercado – e sua pretensa ambição por autonomia – espera tão-somente às ações estatais que garantam um livre agir. Quer mais. Quer, veja-se, uma espécie de Estado de bem-estar para mercados.

Embora tudo isso seja uma surpresa para muitos desavisados desse mundo polarizado, em que se crê na rigidez de tipos-ideais, essa trama não deixa de ser a repetição, em ondas, das mesmas tendências de sempre: nas crises, a mão invisível do mercado é substituída pela mão bem visível do Estado. Na França e na Itália, por exemplo, os governos estudam estatizar companhias aéreas para evitar falências. Já na China e nos Estados Unidos, outro exemplo, mesmo com discursos ideologizados tão divergentes, a receita foi (ou é) a mesma: injetar dinheiro na economia. Somente nos EUA, são cerca de 2 trilhões de dólares, em que generosas fatias desse montante serão destinadas ao mercado. E por aqui? Entre nós, as escolhas (políticas) são bem parecidas: além da redução de juros para incentivar tomadores de crédito e da suspensão do pagamento de dívidas, há também muito dinheiro para socorrer pontualmente empresas consideradas estratégicas. Vai custar caro. E ao mundo todo, como sugere o ex-economista do FMI, Kenneth Rogoff, ao propor não apenas financiamentos (por parte dos Estados) como, até mesmo, alguma impressão de dinheiro. Um verdadeiro welfare state para mercados.

Diante desse cenário tão caótico quanto paradoxal, é tentadora a discussão em torno da (ausência) de prioridades estatais em momentos como esse, como o ignorado traço transdisciplinar imposto a tudo isso, a ampliação das desigualdades e as fragilidades institucionais que se revelam maiores na crise, por exemplo. Mas não é disso que trata esse pequeno texto. Como é próprio desse espaço, trata, claro, do universo jurídico.

A ocasião é oportuna, penso. Momentos como esse agudizam tibiezas cotidianamente verificadas, afinal de contas, em muitos aspectos. O Direito pode ter se colocado perplexamente refratário às viragens linguísticas do início do século XX, mas – embora pudesse ser remédio a muito do que hoje se vê – certamente não se põe imune a contextos tão delicados como este – condição, aliás, que não pode ser naturalizada por uma mera descrição das circunstâncias.

Sobre isso, fiquemos com um exemplo, embora divergente para certa parcela da academia, já conceitualmente bem delimitado pela Crítica Hermenêutica do Direito: o ativismo judicial. Saldo de confusas percepções – como um certo bovarismo institucional2, recepções equivocadas e mixagens teóricas desastrosas –, ativismos3, em suas especificidades, não decorrem de crises – sejam elas quais forem, claro –, mas são por elas potencializadas. Esse é o ponto. Basta pensar, para isso, nas muitas demandas que, nos tribunais, não resistem às três perguntas elaboradas por Lenio Streck para diferir este fenômeno da judicialização da política4 – e são produto de limites – inclusive financeiros, mesmo em tempos de paz – do próprio Estado.

Ou seja, em meio à crise global e a seus efeitos por aqui – entre eles, a evidente ampliação das já abissais desigualdades – também se ampliará, por todo esse caldo, a crise do Direito e – arriscando – também a da própria democracia – tão íntima da jurídica quanto tensionada por jogos de linguagem a propor visões de mundo cada vez mais extremadas e, no limite, também menos públicas. Parece paradoxal, é verdade. Mas a cotidianidade tem mostrado, infelizmente, que esse declínio é possível. As malfadadas condições de possibilidade para isso estão aí.


1 Refiro-me à proposta que defende a absoluta liberdade de mercado, associada a uma restrição à intervenção estatal sobre a economia.

2 O termo dialoga com a personagem Madame Bovary, criada por Gustave Flaubert. Procura explicar uma certa alteração do sentido da realidade, em que alguém considera-se outro indivíduo. Em HOLANDA, Sérgio Buarque de Raízes do Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977, p. 124, o bovarismo é “[…] um vício de raciocínio […] um invencível desencanto em face das nossas condições reais”.

3 Falo de ativismo judicial, mas sem perder de vista, de maneira abrangente, aquelas decisões equivocadas (e relacionadas à crise provocada pelo coronavírus), como a apontada por Streck em relação à (não) proibição dos cultos religiosos do Pastor Silas Malafaia, frente às necessidades de contenção da pandemia, no Rio de Janeiro. Ver STRECK, Lenio Luiz. Coronajúris II: juízes, Malafaia, a saúde pública e a estagiariocracia. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-21/streck-coronajuris-ii-juizes-malafaia-saude-publica-estagiariocracia. Acesso em: 21. 03.2020.

4 Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2020. Sinteticamente:

  • O direito é exigível?
  • O direito é universalizável?
  • Há transferência de recursos que fira a igualdade e a isonomia?

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