Opinião

Unificar eleições municipais e gerais por causa da Covi-19 prejudicaria democracia

Autor

  • Leonardo Bruno Pereira de Moraes

    é sócio do escritório Bornhausen & Zimmer Advogados professor doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

27 de março de 2020, 13h02

Em razão do estado de calamidade pública decorrente da pandemia ligada à Covid-19, o Congresso Nacional iniciou discussões acerca do futuro das Eleições 2020. Isso porque, as medidas de isolamento social em vigor na maioria dos estados brasileiros, e que tendem a permanecer durante tempo indeterminado, impossibilitariam a realização das eleições de 2020 nas datas estabelecidas pelo artigo 29, II, da Constituição Federal, ou seja, o primeiro domingo de outubro (primeiro turno) e último domingo de outubro (segundo turno) deste ano.

Não há problema em alterar as datas das eleições de 2020 por meio de proposta de emenda à Constituição. O dispositivo que regulamenta a data da eleição não é uma cláusula pétrea da Constituição Federal, pois sob a perspectiva constitucional, é vedada a PEC que vise abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Sendo assim, contanto que a PEC mantenha a periodicidade das eleições, não haveria inconstitucionalidade.

Ocorre que diversos congressistas têm sugerido a unificação das eleições para prefeitos e vereadores com as eleições para presidente, governadores, deputados federais, deputados estaduais e senadores. Essa ideia resultaria na extensão dos atuais mandatos dos prefeitos e vereadores até 2022, quando ocorreriam as eleições gerais de 2022. Nesse sentido, muitos argumentam pela redução dos gastos eleitorais, concentrando a logística das eleições em somente um semestre a cada cinco anos. Todavia, a explicação parece simplista demais e como dito pelo jornalista Henry Louis Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Vejamos.

O Brasil é um Estado federal, divido entre União, estados e municípios, com competências diferentes estabelecidas pela Constituição Federal. Além disso, o Brasil adota um sistema de governo presidencialista, replicado para os entes federados, estados e municípios, que têm governadores e prefeitos eleitos diretamente pelos respectivos eleitores. Veja-se que a autonomia administrativa e política dos estados e municípios é bastante expressiva em relação às outras democracias ocidentais, por vezes organizadas como um estado unitário, por vezes tendo representantes do Poder Executivo local não eleitos diretamente.

No entanto, ainda é possível traçar alguns paralelos. Por exemplo, em outras democracias ocidentais que compartilham de um sistema presidencialista ou semipresidencialista, destaca-se que as élections municipales em França, as eleições autárquicas em Portugal e as mayoral elections nos Estados Unidos não coincidem com as eleições presidenciais. Há, em todos os casos, o reconhecimento da importância das discussões locais, que não devem ocupar os mesmos espaços das discussões políticas de âmbito nacional.

Por que é importante diferenciar os debates eleitorais? Uma das principais preocupações no contexto da crise da democracia representativa é justamente o reducionismo eleitoral, ou seja, a insuficiência da participação da sociedade apenas nos pleitos eleitorais, porque não teria capacidade de influir nas tomadas de decisões de seus representantes. O cenário amplo é retratado pelo professor Carlos Blanco de Morais, da Universidade de Lisboa, no recente livro O Sistema Político (2018, p. 94). O jurista português relembra passagem de Jean Jacques Rousseau, em Do contrato social (2012, p. 92), que afirma: “O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente enganado, ele o é somente durante a eleição dos membros do Parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, ele não é nada”.

Muito embora a referência ao reducionismo eleitoral tenha seu direcionamento inicial às novas formas de oxigenar a democracia representativa, não há como negar o seu impacto na proposta de afastar os cidadãos brasileiros das urnas durante cinco anos. O resultado prático de uma proposta de emenda à Constituição que viesse a criar as eleições gerais de 2022 seria afastar, ainda mais, a sociedade brasileira das discussões políticas.

Do mesmo modo, os temas locais merecem ser debatidos com profundidade. A crise da Covid-19 mostra que os municípios têm importante papel no cumprimento dos objetivos traçados pela Constituição Federal. No final das contas, os municípios são as unidades da federação mais próximas da população, que conhecem as peculiaridades da região e, em vários casos, estão mais preparados para lidar diretamente com a sociedade.

As eleições municipais também retratam realidades programáticas distintas das eleições estaduais ou nacionais. A sociedade e os eleitores, no momento das eleições municipais, voltam a sua atenção aos problemas da cidade. Seja uma dificuldade de conseguir vagas em creches, o atendimento básico de saúde ou entraves de mobilidade urbana. Cada uma das cidades brasileiras tem seus problemas específicos, enfrentados pela política local.

Sob outra perspectiva, as eleições estaduais e nacionais normalmente envolvem fatores econômicos e sociais mais amplos. Nessa ocasião, debate-se a política macroeconômica, as reformas constitucionais, as políticas púbicas de âmbito estadual e nacional, que podem ser sintetizadas como: as discussões sobre visões diferentes de nação. Verifica-se que as competências constitucionais do Congresso Nacional e do presidente da República são absolutamente distintas daquelas das Câmaras de Vereadores e dos prefeitos municipais, o que impacta diretamente no conteúdo das discussões eleitorais em cada período.

Deste modo, unificar as eleições causaria grande confusão para o eleitorado, uma vez que se estaria a discutir temas completamente distintos em um mesmo momento. Além disso, há uma questão de ordem prática. Nos anos de eleições estaduais e nacionais, o cidadão já deve escolher candidatos para ocupar cinco cargos diferentes, quais sejam: presidente, governador, senador, deputado federal e deputado estadual. De acordo com uma pesquisa do instituto Datafolha (28 de setembro de 2018, TSE: BR-08687/2018), às vésperas das eleições de 2018, 58% dos brasileiros não lembravam em quem haviam votado para deputado federal e 55% não lembravam em quem haviam votado para deputado estadual. Não seria difícil concluir que parte desse esquecimento decorre da quantidade de votos dados nas eleições.

Imagine se o eleitor tiver que votar para mais dois cargos eletivos? Para além da confusão do conteúdo eleitoral anteriormente exposta, deve-se levar em consideração também essa adição de mais cargos a serem disputados ao mesmo tempo. Se não é possível extrair uma conclusão negativa imediata, certamente não causa um bom prognóstico.

Finalmente, deve ser levado em conta um último aspecto democrático. Frisa-se: realizar uma reforma constitucional dessa natureza em meio à crise da Covid-19 impede que haja qualquer debate democrático sobre o assunto. Trata-se, como se almejou demonstrar, de uma mudança significativa nas regras do jogo eleitoral. Não é uma decisão simples e que não deveria ser tomada a toque de caixa, sem um debate sério sobre o assunto.

Em síntese, a proposta de unificação das eleições não é uma prática adotada em França, em Portugal ou nos Estados Unidos, democracias ocidentais que compartilham do sistema de governo presidencialista ou do semipresidencialismo; a unificação das eleições poderá causar um afastamento maior do brasileiro em relação à democracia representativa, por aumentar o lapso de tempo entre o exercício do direito de voto; a unificação das eleições deverá ter como resultado a mistura de discussões locais e nacionais no mesmo momento eleitoral, o que seria potencialmente prejudicial ao próprio debate político, e deve causar ainda maior confusão ao eleitorado brasileiro; em último lugar, implementar uma reforma constitucional no meio do estado de calamidade causado pelo Covid-19 não parecer ser a alternativa mais democrática, pois limita a participação da sociedade.

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    é sócio do escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados, professor, doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SC, e membro do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC.

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